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Foto: Shutterstock
Edição 256

Em defesa do crime

Facções criminosas expandem seus tentáculos nos governos do PT e também encontram guarida em decisões de tribunais superiores no Brasil

Silvio Navarro
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Em novembro de 2023, o jornal O Estado de S. Paulo revelou ao país que Luciane Barbosa Farias, de 37 anos, conhecida no mundo do crime como “Dama do Tráfico”, circulava nos ministérios do governo Lula da Silva. Ela é casada com um dos líderes do Comando Vermelho, preso na cidade de Tefé, no Amazonas. Numa das viagens a Brasília, teve as despesas pagas pela União e fez uma galeria de fotos com deputados de esquerda no Congresso Nacional. Imediatamente, o PT promoveu uma campanha para colar o rótulo de fake news na notícia.

Pouco mais de um ano depois, no final de janeiro, o Tribunal de Justiça do Amazonas decretou a prisão definitiva de Luciane, condenada a dez anos em regime fechado por tráfico de drogas — um dos crimes que levaram o marido, Clemilson Farias, apelidado de “Tio Patinhas”, para a cadeia por 30 anos. Documentos da Polícia Civil e do Ministério Público Estadual contêm imagens do traficante com metralhadoras de guerra, com calibre para derrubar helicópteros (veja abaixo). Luciane aparece como braço financeiro da facção para lavar dinheiro.

Tio Patinhas posa ao lado de metralhadora capaz de derrubar helicópteros | Foto: Reprodução

Não há registro até hoje de alguma demissão ou investigação sobre os quatro assessores que receberam a Dama do Tráfico nos gabinetes de Brasília. Ela já respondia por crimes na ocasião. As visitas foram aos Ministérios da Justiça e Segurança Pública, comandado naquele ano por Flávio Dino, e dos Direitos Humanos e da Cidadania, então chefiado por Silvio Almeida. No caso da pasta de Dino, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, os anfitriões eram do primeiro escalão: Elias Vaz (Secretaria de Assuntos Legislativos), Rafael Velasco Brandani (Secretaria Nacional de Políticas Penais), Paula Cristina da Silva Godoy (Ouvidoria Nacional de Serviços Penais) e Sandro Abel Sousa Barradas (Diretoria de Inteligência Penitenciária). Dessa lista de auxiliares de Dino, a principal figura é Velasco, com quem o ministro trabalhou no governo do Maranhão. Ele foi levado a Brasília para promover a “humanização penitenciária”, o que inclui políticas de desencarceramento em massa.

O nome de Luciane foi omitido das agendas oficiais, mas ela mesma fez questão de registrar tudo em sua conta do Instagram. Também esteve ao lado de Guilherme Boulos (SP), então líder do Psol, e de outros parlamentares de esquerda na Câmara.

Guilherme Boulos, então líder do Psol, ao lado da Dama do Tráfico | Foto: Reprodução/Redes Sociais

ONGs do crime

A pergunta que qualquer pagador de impostos faz diante de um caso como esse é: por que os ministérios receberam a Dama do Tráfico — e até pagaram pela visita? A única resposta oficial até hoje foi que ela representava uma ONG de defesa dos direitos de detentos, com queixas sobre revistas íntimas para visitantes e a qualidade da comida. Chama-se Instituto Liberdade do Amazonas, criado no ano eleitoral de 2022. Segundo a polícia amazonense, a ONG era financiada pelo Comando Vermelho, presente em 23 Estados do país.

Na virada deste ano, o Estadão avançou no tema. O jornal mostrou que não se tratava de um caso isolado. Outra ONG, batizada Pacto Social & Carcerário SP, de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, é ligada ao Primeiro Comando da Capital (PCC), a mais poderosa facção do país. O dono da ONG é um ex-presidiário, condenado por assassinato. Sua bandeira, como vista na estampa de camisetas, é “Vidas Presas Importam”. Há fotos de líderes com o ex-ministro Silvio Almeida no Instagram.

A presidente da ONG Pacto Social & Carcerário (à direita) ao lado do ex-ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida (à esquerda) | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Qual é a missão dessa ONG? A mesma da “Dama do Tráfico”: conseguir reuniões com o governo Lula, nos Ministérios da Justiça e Segurança Pública e na Secretaria de Direitos Humanos. Também estiveram em audiência pública no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Segundo investigadores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo, essas ONGs fazem parte de uma nova estratégia na estrutura das facções. Elas foram criadas para buscar pontes com políticos e governos de esquerda e tentar afrouxar regras em penitenciárias, o que facilita o contato dos líderes presos com quem está nas ruas. Isso acontece por meio das visitas íntimas e de advogados dos membros das facções. Trata-se de um modelo que se espalhou pelo país nos últimos anos. Ou seja, as ONGs dedicadas ao lobby em defesa de presidiários se multiplicaram.

Integrantes da ONG Pacto Social & Carcerário participaram de evento do CNJ, em abril do ano passado. A diretora do Ministério da Justiça estava à mesa, e dirigentes da ONG estavam ao lado de Janira Rocha, ex-deputada estadual expulsa do Psol | Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ

Boa parte da cúpula do PCC está trancafiada na unidade de Presidente Venceslau (SP). A maior autoridade do Brasil na investigação do PCC é o promotor Lincoln Gakiya, responsável por prender, monitorar e cuidar da transferência dos integrantes da facção desde 1996. Há décadas, ele e a família vivem sob segurança de policiais militares 24 horas por dia. Gakiya já foi alvo de dezenas de ordens de assassinato encontradas em recados por escrito ou em anotações no verso das roupas de quem entra e sai dos presídios.

Ele afirma que o objetivo das facções é usar as ONGs para “influenciar as políticas públicas do sistema carcerário”. As entidades entraram no radar há muitos anos, quando o Ministério Público avançou sobre o chamado “Setor dos Gravatas” do PCC, termo usado para identificar os “advogados mensageiros” — 39 foram presos na época. Desde então, foi descoberto o “Projeto ONGs”. Assim como os advogados são reconhecidos como “gravatas”, as ONGs são tratadas como “setor de reivindicações” pelo PCC. As investigações avançaram a partir de 2021, quando foi encontrado um cartão de memória de celular com a namorada de um detento.

“A gente não sabia exatamente o que eles pretendiam com isso, mas imaginávamos que seria a criação de uma organização que pudesse defender os interesses da facção. Agora, com a Operação Fake Scream (“falso grito”), realizada em janeiro, descobrimos a ONG Pacto Social & Carcerário SP”, afirmou o promotor.

O nome “Fake Scream” é uma referência ao documentário O Grito, exibido pela Netflix. O filme fala sobre as condições das cadeias brasileiras. O cineasta Rodrigo Giannetto recebeu dinheiro do PCC, conforme o Ministério Público apurou. Segundo o Estadão, a Agência K2, que contratou o cineasta, também atende o rapper Oruam, filho de Marcinho VP, do Comando Vermelho.

Cartaz do documentário da Netflix “O Grito” | Foto: Reprodução

“Achamos uma manifestação de intenção da ONG de atuar no julgamento do ex-guerrilheiro chileno Maurício Norambuena na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Isso tudo prestando contas aos presos de Presidente Venceslau. As manifestações eram gestadas de dentro para fora: os próprios presos determinavam para a ONG.”
(Lincoln Gakiya, promotor)

Notícia publicada no Estadão (15/01/2025) | Foto: Reprodução/Estadão
Notícia publicada no Estadão (22/1/2025) | Foto: Reprodução/Estadão
Notícia publicada no Estadão (16/1/2025) | Foto: Reprodução/Estadão
Notícia publicada no Estadão (14/11/2023) | Foto: Reprodução/Estadão

Proteção suprema

Além dos políticos de esquerda, a preocupação com o bem-estar dos bandidos faz parte do cotidiano da imprensa tradicional e, nos últimos anos, contaminou o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Na Corte, o exemplo mais claro foi a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635. Depois de ficar parada por muito tempo, ela voltou a ser julgada nesta semana. O que significa a tal ADPF? Foi um caminho jurídico que a esquerda descobriu no período da pandemia para impedir que a polícia fizesse operações aéreas ou sem aviso prévio em favelas do Rio de Janeiro. O relator é o ministro Edson Fachin, que analisa o pedido do PSB para “reduzir a letalidade policial”.

Desde essa época, a polícia não consegue sobrevoar com helicópteros os gigantescos complexos de favelas, terrenos demarcados pelo narcotráfico. Mais: tem de comunicar previamente que vai subir os morros do Rio em busca de bandidos. Dez em dez especialistas em segurança pública afirmam que essas medidas facilitam a fuga ou colocam os criminosos em posições favoráveis para atirar de cima para baixo contra os agentes.

Em seu voto, distribuído na quarta-feira 5 ao plenário do STF, o ministro Edson Fachin fala em “regulação da atividade policial”. Diz que o tribunal não criou nesses anos todos, pós-pandemia, dificuldades para a polícia: “Imputar problemas crônicos e de origem anterior a medidas impostas por esta Corte consiste não apenas em grave equívoco, mas em inverdade”. Por fim, determina que o governo fluminense crie comitês — provavelmente povoados de especialistas de esquerda — para monitorar “o uso excessivo ou abusivo da força legal e eventos com vitimização de civis, em contexto de confronto armado, com a participação de forças de segurança”. Em resumo: Fachin está preocupado em frear a polícia.

Apesar dos relatos negativos dos governos estadual e municipal, o relator, ministro Edson Fachin, é favorável às restrições da polícia
Ministro Edson Fachin | Foto: Marcelo Camargo/ABR

Em agosto de 2023, o STF também privatizou o espaço público ao proibir que Estados e municípios removessem compulsoriamente pessoas em situação de rua e as levassem para abrigos. A decisão também vedou o recolhimento forçado de bens e pertences desse público, bem como o uso de “técnicas de arquitetura hostil” para impedir sua permanência.

Foi com esse argumento de “arquitetura hostil” que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo recomendou à prefeitura da capital a retirada de um muro construído na região da cracolândia. Em ofício, a Defensoria alegou que a estrutura restringia “a livre circulação de pessoas em vias e espaços públicos sem qualquer justificativa legal, já que limita de diferentes formas o uso do espaço público, o acesso à água potável e a banheiros”.

Apesar disso, o muro não impede a passagem de usuários de drogas, como pode ser observado na imagem abaixo. Em contrapartida, proporciona maior segurança a moradores e pedestres, reduzindo a incidência de assaltos, um problema recorrente na região.

Imagem aérea da região da cracolândia, em São Paulo | Foto: Reprodução

Enquanto a polícia enfrenta barreiras impostas pelo STF, a pedido de partidos e ONGs de esquerda, o narcotráfico tem sofisticado as técnicas de guerrilha. Circula com frequência nas redes sociais uma entrevista a um podcast de Rodrigo Pimentel, ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Ele afirma que os bandidos recebem aulas de técnicas de combate e tiros na Favela da Maré.

Esse contraste fica evidente quando um ministro de Estado, no caso Flávio Dino, agora do STF, entra na Favela da Maré sem a escolta adequada. O local é conhecido como ponto de venda de drogas e armas. Dino disse que estava a convite de uma ONG. Ou quando o presidente Lula da Silva, então candidato, posa para foto usando o boné com as letras “CPX” em campanha no Complexo do Alemão, base estratégica do Comando Vermelho no Rio de Janeiro.

Presidente Lula com um boné escrito “CPX” | Foto: Reprodução/X

Sobre contrastes, aliás, já que as ONGs e o governo federal permanecem alinhados em defesa de quem está atrás das grades, como ficam os presos políticos do tumulto de 8 de janeiro? A título de comparação, a Dama do Tráfico, operadora financeira do Comando Vermelho no Amazonas, foi condenada a dez anos de prisão. Já a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos foi condenada a 17 anos por ter escrito as palavras “perdeu, mané”, com batom, na estátua de pedra em frente ao Supremo. As duas têm a mesma idade.

O discurso da esquerda é batido e bastante conhecido: é preciso cuidar da raiz da criminalidade, que é fruto da pobreza e do racismo. A partir daí, surge a demonização da polícia — por exemplo, quando o presidente do Supremo exige que os agentes usem câmeras corporais — e a romantização do bandido. Quantas reportagens de jornais exibem manchetes como “Jovem é morto depois de atirar em policiais”? O atirador nunca é retratado como criminoso. E o policial morto nunca vira notícia.

Notícia publicada na TV Paranaíba (6/5/2022) | Foto: Reprodução/TV Paranaíba
Notícia publicada no R7 (7/6/2024) | Foto: Reprodução/R7

A política do desencarceramento

Segundo Roberto Motta, colunista de Oeste e especialista em segurança pública, um dos maiores instrumentos do “desencarceramento” — como ele define “a política oficial e não oficial de soltar o máximo possível de criminosos presos” — é a audiência de custódia. Esse procedimento, que precisa ocorrer em até 24 horas, tem como principal função verificar o bem-estar do criminoso e procurar uma justificativa para soltá-lo.

Desde a implementação desse modelo, o número de presos soltos após flagrante tem crescido significativamente. Em janeiro de 2024, esse número ultrapassou a marca de meio milhão — uma média de soltura entre 40% e 50% de todos os criminosos que passam pelo procedimento.

O impacto disso se reflete no aumento da reincidência criminal, uma vez que diversos casos demonstram que indivíduos soltos nessas audiências voltam a cometer crimes em poucos dias.

Motta explica que a legislação, a jurisprudência e o discurso oficial sobre o combate ao crime no Brasil partem da premissa de que os criminosos são vítimas de uma sociedade capitalista opressora, sendo esta a verdadeira responsável pelo crime. Segundo ele, essa visão tem consequências gravíssimas e está na raiz da crise de criminalidade sem controle no país.

Essa postura ideológica resultou em uma série de políticas que favorecem a impunidade, como a progressão de regime, a saidinha, a visita íntima, o fechamento dos hospitais psiquiátricos de custódia, a contagem em dobro do tempo de pena para criminosos presos em “condições degradantes” e a caracterização da polícia como uma instituição opressora, que deve ser vigiada permanentemente com câmeras penduradas no pescoço.

Tudo isso se torna temática para a criação de mais ONGs e seus financiadores milionários, sejam narcotraficantes, sejam fundações estrangeiras na área de educação ou direitos humanos. O argumento é a forma virtuosa, “meio intelectual, meio de esquerda”, de encarar o mundo — adotada por quem desconhece a realidade e sofre as consequências do mundo do crime.

Leia também “As lambanças de Sidônio”

11 comentários
  1. Coriolano Santos Marinho
    Coriolano Santos Marinho

    Triste país onde o crime, mais organizado que o próprio governo, sequestrou os poderes do Estado e transformou a delinquência num negócio milionário, longe do arrocho tributário que sufoca os honestos pagadores de impostos. Essa matéria é um libelo crime acusatório contra os poderes constituídos e sua falsa governança. Sem meias palavras ou o país enfrenta e vence o crime ou vai virá um Estado de delinquência.

  2. ELIAS
    ELIAS

    O Brasil já é indubitavelmente um narco estado. E as chamadas Autoridades Constituídas não fazem qualquer tentativa de disfarçar essa condição.

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Depois dessa reportagem de Silvio Navarro, alguém tem dúvidas sobre quem são essas Almas sebosas relacionadas e o que elas merecem? Ou vão ficar esperando ter suas casas invadidas, suas famílias estupradas e assassinadas ????????

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Silvio sempre traz excelentes dados. Parabéns por mais um artigo de primeira qualidade.

  5. LUIZ ANTONIO DE SANTA RITTA
    LUIZ ANTONIO DE SANTA RITTA

    Não custa lembrar que Fachin também é o relator do RE 1.523.757/DF sobre visitas íntimas. Sendo totalmente contra, possibilitando os Gravatas atuarem livremente.

  6. Lrc
    Lrc

    Ora, ora, o que fazem bandidos? Bandidagem, óbvio. Não poderia ser diferente.

  7. Rachel Marotta Romualdo da Silva
    Rachel Marotta Romualdo da Silva

    Quando a Suprema Corte passa a legislar e reprimir o governo , como fez no governo Bolsonaro, perseguindo um espectro político e inocentes, entendemos que estamos nos afundando enquanto país e sociedade.
    O texto é impecável , pode ser concluído com a célebre frase do medonho ministro, que entrará para a história ,reproduzindo o triste fim da justiça e da lisura que se espera de um funcionário publico .

  8. Fernando Caram Patrus
    Fernando Caram Patrus

    Basta ver a origem do crime organizado no Brasil. O casamento está fazendo bodas de ouro! E em comemoração pelo aumento do poder com posição em todas as instituições brasileiras.

  9. Marcos Marcioni
    Marcos Marcioni

    Enquanto lula tem mais vinte e um meses pela frente, o crime deita e rola.

  10. Célio Antônio Carvalho
    Célio Antônio Carvalho

    Parabéns caro Sílvio Navarro. É chover no molhado um elogio ao seu trabalho. Irreparável, contundente, nada mais.
    Obrigado.

  11. MNJM
    MNJM

    Silvio excelente texto. O Senado no neiventender é o responsável por essa situação crítica que vivemos. O atual colegiado do STF é o câncer maligno do país . Apoiam bandidos, o Fachin inventou a Lei do CEP para trazer de volta o maior corrupto do país, ao poder. Proibiu o acesso da polícia aos mortos no RJ . impondo medidas restritivas absurdas , a bandidagem tomou conta. Culpado são os políticos que elegemos. Temos um governo que tem bandidos como seus eleitores . O que esperar?

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