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Queda de avião em Ubatuba, em São Paulo | Foto: Divulgação/Polícia Militar
Edição 256

Imprudência no ar

O aumento de acidentes com aviões de uso privado no Brasil expõem o descumprimento de regras da aviação

Fábio Bouéri
Fabio Boueri
lucas cheiddi
Lucas Cheiddi
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Por que tantos aviões estão caindo? Esse foi o assunto mais pesquisado pelos brasileiros no último fim de semana, 8 e 9. A questão parecia refletir o misto de curiosidade e perplexidade com a série de acidentes aéreos entre o fim de 2024 e o início de 2025. Pouco mais de três anos se passaram desde a trágica morte da cantora sertaneja Marília Mendonça, cujo avião se despedaçou em Minas Gerais, depois de bater em um cabo de alta tensão. As recentes quedas de pelo menos três aeronaves chamaram a atenção do público e colocaram as autoridades em alerta.

Afinal, a aviação executiva brasileira vive uma crise de segurança? Ou a tensão é apenas uma percepção pontual depois de três episódios emblemáticos? Para especialistas, as estatísticas preocupam. Em 2024, o Brasil bateu o recorde de acidentes aéreos. Foram 175 ocorrências, de acordo com o Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Sipaer), ligado à Força Aérea Brasileira (FAB).

O mais grave, porém, é o que pode estar por trás desses números. Na opinião dos entrevistados que trabalham na aviação comercial e pediram anonimato, está ocorrendo uma possível negligência de pilotos e proprietários de aeronaves da aviação geral, que abrange todos os tipos de aeronaves, exceto as que são usadas em voos regulares, de companhias como Latam, Gol e Azul.

O fator neblina

O fantasma da negligência talvez tenha assombrado, por exemplo, a manhã do penúltimo domingo de 2024. Foi quando o empresário Luiz Cláudio Galeazzi, dono e piloto de um turboélice Cheyenne 400, perdeu o controle de sua aeronave minutos depois de decolar do Aeroporto de Canela (RS). Sob forte neblina, o avião bateu em uma chaminé e caiu em uma das principais avenidas da vizinha Gramado. Galeazzi e nove familiares morreram. A viagem interrompida tinha como destino Jundiaí (SP), onde dois dias depois eles comemorariam a ceia de Natal. 

acidente avião gramado (RS)
Local onde avião de pequeno porte caiu em Gramado, RS (22/12/2024) | Foto: Divulgação/Defesa Civil

Relatório preliminar do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) diz que o acidente em Canela foi consequência da “desorientação espacial” do piloto, seguida de uma colisão da aeronave com um obstáculo (a chaminé). “Aquela região de serra é uma área perigosa em razão da neblina”, diz um comandante de jato comercial com especialização em segurança de voo pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). “Voar naquelas condições e sem um copiloto significa aumentar os riscos”

A opção pela pista mais curta

No dia 9 de janeiro deste ano, foi a vez de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, entrar no radar do noticiário por mais um acidente com cenas impressionantes. Um jato Cessna Citation, procedente de Goiás, tentou pousar no aeroporto local, mas acabou ultrapassando os limites da pista e só parou, em chamas, nas águas da praia do Cruzeiro.

Com mais de 27 anos de experiência, o piloto Paulo Seghetto morreu no acidente. A família que ele transportava, incluindo pai, mãe e dois filhos, sobreviveu e segue internada em um hospital em São Paulo. O Cenipa ainda analisa as causas do acidente. Mas, ao se referir ao tipo de ocorrência, classifica o episódio de “excursão de pista”. Na opinião de um instrutor de voo em uma das principais companhias aéreas da América Latina, chama a atenção o fato de o piloto usar o sentido inverso da pista na hora de pousar. “Pelas características da aeronave, o correto seria fazer a aproximação pelo mar e assim ganhar terreno na hora de pousar”, explica.

O aeroporto de Ubatuba tem uma única pista, mas duas cabeceiras. Para quem chega em direção à montanha, a pista tem 940 metros. Essa opção de percurso era a indicada para a aeronave. Pousar a partir do outro lado, no sentido do mar, significa 380 metros a menos, em razão da topografia que exige uma aproximação mais inclinada, reduzindo o aproveitamento da pista para 560 metros. Foi a direção com a pista mais curta que o piloto escolheu.

Avião de pequeno porte cai em Ubatuba, no litoral de São Paulo
Acidente próximo ao aeroporto de Ubatuba, no centro da cidade (9/1/2025) | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Na hora do rush

Quase um mês depois, numa manhã de sexta-feira, São Paulo acordou assustada. Um King Air F90, avião de pequeno porte que havia decolado às 7 horas do Campo de Marte rumo a Porto Alegre, perdeu a sustentação e desceu rasgando o asfalto de uma das avenidas mais movimentadas da zona oeste da capital. Era a hora do rush, o típico trânsito pesado da cidade. O veículo passou vertiginosamente, bateu no chão, depois em uma árvore, e explodiu. Gustavo Medeiros (piloto) e Márcio Louzada (passageiro e dono do avião) morreram.

Outras sete pessoas que estavam em um ponto de ônibus ficaram feridas. A tragédia poderia ter sido muito pior. A alguns metros do local, em uma pista transversal, imagens de segurança mostraram um congestionamento de carros, sugerindo a ideia de que o piloto, mesmo sob tensão, tentou minimizar os efeitos do desastre.

“As maiores causas de quedas de aviões, como essa de São Paulo, são problemas técnicos ou de manutenção e falhas humanas”, diz o capitão Marcondes Medeiros, especialista em segurança pública. “Assim que verifica um problema na aeronave, o piloto tem que procurar uma área de menor risco e impacto para a população. Provavelmente, foi o que ele tentou fazer nesse caso.”

“Sua escolha pode ter sido heroica, mas o fato é que aquele avião talvez não tivesse caído e matado duas pessoas se houvesse mais rigor nos cuidados com a manutenção e no cumprimento das regras”, afirma um especialista em engenharia aeronáutica. Dois dias depois do acidente, um documento da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) mostrou, com base em vistorias, que a aeronave apresentava “inconformidades” em relação ao computador de bordo, ao para-brisa e ao sistema de degelo.

A causa da queda ainda está sob a investigação do Cenipa. O avião foi importado dos Estados Unidos em novembro de 2024. A vistoria atesta a originalidade do projeto da aeronave. A Anac comunicou as inconformidades na véspera do acidente e exigia uma resposta em até cinco dias. A agência reiterou, no entanto, que a aeronave estava apta a operar.

Queda de avião no bairro da Barra Funda, em São Paulo (7/2/2025) | Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

‘O piloto decide da cabeça dele’

O episódio em São Paulo foi o 22º acidente aéreo em 2025, segundo o Cenipa. O número descarta a hipótese de mera impressão e demonstra que as ocorrências com aviões particulares estão se tornando mais frequentes. Vários motivos explicam a trajetória, diz a Associação Brasileira de Aviação Geral (Abag).

Da frota brasileira, 5% são aviões de linhas comerciais e 95% são de aviação executiva (80% disso é de aviação privada). Por probabilidade, é natural que a maioria dos acidentes aconteça com aviões menores. O segundo motivo seria o fato de que a aviação geral opera com uma estrutura incomparavelmente inferior à das grandes companhias aéreas, que trabalham em aeroportos mais seguros e equipados.

O terceiro fator seria a fiscalização menos rígida da aviação privada. “Quando um avião chega a Ubatuba, por exemplo, e o piloto vê que a pista é pequena e o tempo não está dando condições, um táxi aéreo tem o copiloto e uma estação de controle para adverti-lo. Num avião particular, não. O piloto decide da cabeça dele”, explicou o diretor da Abag, Raul Marinho, em entrevista ao site UOL.

Mais cedo ou mais tarde

Segundo os números do Cenipa, o fator que mais contribui para acidentes com vítimas é o “julgamento de piloto”. Ou seja, a decisão que ele toma de acordo com as circunstâncias. Ou a “inadequada avaliação, por parte do piloto, de determinados parâmetros relacionados à operação da aeronave”. Esse foi o motivo principal de 463 acidentes nos últimos dez anos.

Em segundo lugar (326 acidentes) está a “inadequação no uso dos comandos de voo da aeronave por parte do piloto”, seguida do “processo decisório” (244 acidentes) e da “atitude” (228), que têm relação direta com o descumprimento intencional de regras operacionais. Apenas 72 acidentes tiveram como principal motivo as condições meteorológicas.

“Se o comandante de um avião de pequeno porte não for estudioso e disciplinado, ele vai seguir as regras dele”, afirma um piloto com 13 mil horas de voo e 30 anos de experiência, quatro deles na FAB e oito na aviação geral. “Ele vai escapando. Vai colocando o avião em um estado indesejado mas, na última hora, consegue escapar. No entanto, mais cedo ou mais tarde, o acidente vai acontecer”.

Foto: Shutterstock

Equipe reduzida

Com vários anos de pilotagem no espaço aéreo norte-americano, o especialista afirma que o treinamento nos Estados Unidos é “by the book“. “Não tem conversa”, diz. “Você tem que seguir à risca. O que está escrito tem que ser feito. E as pessoas cumprem. No Brasil, infelizmente, há algumas variações estranhas. O treinamento e a avaliação do sistema norte-americano são muito parecidos com os do Brasil. O que faz diferença mesmo é a nossa checagem, não tão rigorosa como deveria ser.”

Em meio ao aumento do número de mortes em acidentes aéreos neste ano, a Anac, que é a agência responsável por fiscalizar todo o setor, desde profissionais até as aeronaves e a infraestrutura, está com a equipe reduzida. Atualmente, dos 1.755 cargos previstos, 1.237 estão preenchidos. Segundo o jornal O Globo, além do déficit de servidores, uma recente “reestruturação organizacional” teria afetado setores fundamentais de fiscalização, como o da aeronavegabilidade — que responde pela manutenção e supervisão de empresas, aviões e oficinas.

Enquanto se espera do governo federal maior atenção ao problema, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado de São Paulo (Crea-SP) anunciou a criação de uma força-tarefa para fiscalizar as empresas responsáveis pela manutenção de aeronaves, prestação de serviços de táxi aéreo, fabricação de peças e componentes aeronáuticos. Nenhuma instituição, no entanto, falou sobre o preparo dos pilotos, cuja formação às vezes começa e termina em precárias escolas de aviação.

Prudência e disciplina

O que se tem de concreto é a deficiência estrutural da Anac, associada a um aumento exponencial do número de aeronaves em circulação no Brasil e à consequente expansão do tráfego aéreo.

“São elementos mais do que suficientes para se pensar em medidas que comprometam pilotos e proprietários de aeronaves privadas a voar com mais responsabilidade”, diz o instrutor de voo de uma companhia multinacional. “É preciso colocar a prudência e a disciplina à frente de qualquer outro critério na hora de tomar uma decisão.”

Leia também “O fim de uma lenda”

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