Na vida dos irmãos gêmeos israelenses Eitan Cunio e David Cunio, de 34 anos, a arte e a realidade se misturam de forma dramática. Eles são tão grudados que até atuaram juntos em um filme, Youth, lançado em 2013. No longa-metragem, fizeram o papel de sequestradores. Dez anos depois, numa ironia do destino, David se tornou refém do Hamas na vida real. Foi levado do kibutz Nir Oz para a Faixa de Gaza no ataque de 7 de outubro de 2023.
Nascidos em 1990, em Israel, os gêmeos viveram uma infância feliz correndo pelos gramados daquele kibutz. Eles brincavam na companhia de mais dois irmãos: Lucas, hoje com 40 anos, e Ariel, com 27. Todos são filhos de Silvia, de 64 anos, e Luiz, 65.
Na trama, Eitan e David interpretam os irmãos Yaki e Shaul. Eles decidem sequestrar uma garota rica para salvar a família de uma crise financeira com o dinheiro do resgate.
A entrada de Eitan e David no mundo do cinema se deu por pura casualidade. A produtora estava à procura de gêmeos para os papéis e fez testes com dois irmãos de um kibutz vizinho. A dupla inicial não foi aprovada, mas indicou Eitan e David. “Eles não tinham a aspiração de se tornarem artistas, fizeram para experimentar, por curiosidade”, diz Silvia. “Deu certo.”
A fama repentina não os atraiu. Ambos preferiram a vida pacata do campo, casaram e continuaram a morar com as próprias famílias no kibutz. A simplicidade os acompanhava: David é eletricista e, Eitan, chefe-geral da limpeza.
Os irmãos não pensavam em grandes mudanças na rotina. Até que, em 7 de outubro, veio o ataque do Hamas. Ariel e a namorada, Arbel Yehoud, foram feitos reféns. Assim como David e sua mulher, Sharon, além das duas filhas gêmeas do casal, Yuli e Emma, de 3 anos. Sharon e as meninas retornaram em novembro de 2023. E Arbel foi libertada neste mês de janeiro. Eitan, que também estava no kibutz, não foi levado, porque os terroristas não conseguiram entrar no abrigo onde ele estava.
Atualmente, Ariel e David permanecem em cativeiro. E Eitan vive pela metade, como se também fosse um dos reféns. “Eitan já falou que sente sufocamentos, como se estivesse em um túnel”, conta Silvia, que estava em outra casa do mesmo kibutz. “Eles são muito unidos, sempre foram, assim como toda a família. Os três mais velhos se casaram, mas continuaram vivendo próximos, até que ocorreu aquele ataque brutal.”
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Conta-gotas
Ao perceber a invasão, Eitan foi com a mulher e as filhas para o abrigo da casa. Trancou-se atrás da porta de aço. Sem conseguirem entrar, os terroristas atearam fogo no local.
Horas depois, enquanto tentava, em vão, girar a maçaneta já derretida, ele chegou a se despedir das filhas. Sufocados, os quatro só conseguiram escapar com a chegada da emergência, depois de várias chamadas feitas por Silvia. Pelo celular, Eitan havia implorado para a mãe durante a invasão dos terroristas: “Salve-nos”.
“Nunca tínhamos imaginado a possibilidade de um ataque tão grande, com milhares de terroristas, mesmo morando em um kibutz próximo a Gaza”, conta Silvia, sobre a localização de Nir Oz. “Vieram saqueadores e terroristas. Foi impressionante, uma sensação opressora de se ver impotente, de temer por seus familiares.”
A família Bibas, outra que foi feita refém, também tem uma longa convivência com os Cunio. Shiri Bibas, por exemplo, mãe de dois filhos, vivia em contato com os gêmeos. Para se ter ideia, David e Eitan apresentaram Shiri a seu atual marido, Yarden Bibas. Este último, sequestrado no ataque de 7 de outubro, acabou de voltar do cativeiro.
A libertação recente de Arbel e de Yarden foi um alento para Silvia. Abatida, quase sem sair de casa, ela deixou de trabalhar como cabeleireira, maquiadora e manicure no kibutz. Mas, quando Arbel e Yarden foram levados para o Centro Médico Sheba, em Israel, lá estava Silvia para abraçá-los. “A emoção foi enorme, um sopro maior de esperança”, conta Silvia. “Agora, espero que meus filhos Ariel e David também retornem. Desde os atentados, alimento-me de esperança.”
Silvia faz parte do Fórum das Famílias dos Sequestrados e Desaparecidos do 7 de Outubro. Mas não tem ido às manifestações. Sua atual situação a está deixando extenuada. Como mãe, porém, mantém contato com o grupo e revela a exigência da qual seus integrantes não abrem mão: “Queremos que todos os reféns sejam libertados juntos. Não podem ser tratados como conta-gotas”.
Cabeça fora da água
Nesta semana, os terroristas do Hamas adiaram o cessar-fogo e afirmaram que, até segunda ordem, não liberariam mais reféns. A situação deixou os familiares apreensivos. Israel voltou a mobilizar tropas. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou que, em caso de recusa na liberação, o cessar-fogo será encerrado. “As ameaças do Hamas, que agora não quer seguir o acordo, nos coloca como pessoas que estão se afogando, mas que mantêm a cabeça fora da água”, desabafa Silvia. “É assim que me sinto.”
A condição de saúde dos reféns é uma preocupação em Israel. Principalmente ao se considerar o estado precário em que estavam Or Levy, Ohad Ben-Ami e Eliyahu Sharabi, os três últimos, quando voltaram para casa. O Ministério da Saúde, as Forças de Defesa de Israel e o Fórum das Famílias se preparam para diversos cenários dantescos, com base nos relatos dos reféns libertados. Sharabi, por exemplo, contou que passou o tempo inteiro acorrentado em um túnel. Outros reféns podem ter vivenciado situações piores.
Médicos israelenses alertam para a síndrome de refeeding (alterações no organismo com a realimentação) e prepararam protocolos de atendimento aos reféns. Assim como os sequestrados, os familiares também recebem suporte de psicólogos. Seis hospitais recebem os libertos — dois deles tratam os casos médicos agudos. O governo de Israel garante que haverá recursos para os reféns, caso necessitem de terapia da fala — especialmente se tiverem ficado em isolamento.
Algumas das vítimas soltas anteriormente e suas famílias ajudam no aconselhamento daqueles que agora passam pelo mesmo processo. Existe ainda um sistema governamental de apoio aos familiares de reféns que não sobreviveram. Mas muitas famílias, como a dos irmãos Cunio, perderam tudo. “A casa deles ficou totalmente queimada”, afirma Silvia.
Luz no horizonte
O representante do Fórum das Famílias no Brasil, Rafael Azamor, explica que a prioridade do grupo é garantir a devolução imediata dos sequestrados. “É fundamental que a Cruz Vermelha e outras instituições pressionem as autoridades para que as condições de saúde dos reféns sejam divulgadas, permitindo uma avaliação adequada da situação”, ressalta.
O cenário se agrava à medida que o tempo passa. Com base no acordo de cessar-fogo, ainda há 17 reféns a serem libertados nas próximas semanas. O restante, cerca de 70 pessoas, poderá ser libertado posteriormente. A maioria está em condições insalubres nos túneis de Gaza.
“Os civis, as crianças e os idosos deveriam ser os primeiros liberados, conforme o que foi acordado”, afirma Azamor, ao explicar que os terroristas descumpriram partes do acordo. “Mas algumas dessas famílias, como os Bibas, ainda não tiveram notícias ou provas de vida dos seus entes queridos.”
A sociedade israelense se engajou na missão de trabalhar pelo retorno dos que foram levados. Cada um à sua maneira. O cineasta Tom Shoval, por exemplo, que dirigiu os irmãos Cunio no filme Youth, lançou o documentário Uma Carta para David, com imagens de David antes de ser sequestrado. O filme será exibido no Festival de Cinema de Berlim, entre 13 e 23 de fevereiro. Outro documentário, intitulado The Cunios, já está em produção.
No novo filme de Shoval, são exibidas imagens de David no kibutz. Numa delas, o diretor encontrou outra coincidência, além da atuação dele como sequestrador na obra anterior. Em uma das cenas, David colhia laranjas em um pomar. De repente, olhou para uma trilha que terminava em um horizonte ensolarado e disse: “Aqui está a luz no fim do túnel”. Shoval considerou isso uma profecia.
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