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Edição 257

Envenenaram a árvore do Brasil e seus frutos

Há uma série de inconsistências na denúncia da Procuradoria-Geral da República, o que torna a peça de Paulo Gonet precária e frágil juridicamente, além de politizada

Adalberto Piotto
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A teoria dos frutos da árvore envenenada é um princípio jurídico que defende que provas obtidas ou procedimentos de investigação feitos de forma ilícita são contaminados e não podem ser usados no processo, tendo como destino o arquivamento ou a anulação de tudo.

Essa tese vem de um ensinamento bíblico que não tergiversa ao dizer que uma árvore envenenada não dá bons frutos. O preceito se transformou em um princípio jurídico pela Suprema Corte dos Estados Unidos e é utilizado em todo o mundo ocidental democrático, cujos valores do Estado Democrático de Direito não permitem concessões ou reinterpretações do devido processo legal, o que garante a ampla defesa e um julgamento justo a qualquer um, de qualquer espectro político ou linha de pensamento, sob quaisquer acusações. A isso se dá o nome de civilização.

Relembrado tal fundamento jurídico inequívoco, aceito e também referendado pelo Supremo Tribunal Federal, vale perguntar: que Estado Democrático de Direito sério permitiria o atual estado de coisas que vivemos no Brasil?

Ilustração: Shutterstock

Para entender o momento brasileiro, depois da denúncia do Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, alguns oficiais militares de alto posto e ex-assessores de seu governo, amplamente questionada por quem defende a legalidade, recorro à tese da árvore envenenada.

Dois casos públicos expõem meu questionamento que pretende, antes de tudo, salvar verdadeiramente, dessa estapafúrdia relativização que nos foi imposta, a democracia e as instituições, a começar pelo STF, que até antes de 2019 esteve na vanguarda de pacificar entendimentos, garantir a Constituição e a segurança jurídica do país.

Começo com o ministro Luís Roberto Barroso, hoje presidente da Corte. Do alto de um palco mambembe de um convescote da União Nacional dos Estudantes, a UNE, que de agremiação histórica se tornou num puxadinho radical e ideológico da esquerda que há muito não representa os estudantes, disse em julho de 2023: “Derrotamos o bolsonarismo”. Ao lado dele estava ninguém menos que o mais radical e ideológico ministro de Lula, Flávio Dino, da Justiça e da Segurança Pública, hoje convertido em ministro da Corte, contra quem também pairam acusações de se omitir no enfrentamento do vandalismo do 8 de janeiro de 2023.

Luís Roberto Barroso e Flávio Dino participam da abertura do 59º Congresso da UNE, em Brasília, DF (12/7/2023) | Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Num segundo caso, vem Alexandre de Moraes, ministro relator do primeiro e de uma série de inquéritos abertos de ofício. No seu “mandato”, Moraes negou por diversas vezes que advogados e acusados tivessem o devido acesso aos autos e às eventuais provas e depoimentos de delação premiada que citavam o investigado. Por muito tempo, criou a excrescência da defesa impossível. Como se defender se não se sabe do que está sendo acusado? Em um sem-número de vezes, porque a decretação de sigilo dos inquéritos foi a tônica de sua atuação, derrubou perfis de redes sociais, ameaçou plataformas e tirou o X do ar, bloqueou contas bancárias, apreendeu passaportes de jornalistas e determinou busca e apreensão em gabinetes de parlamentares da oposição de direita, em casos de notória irregularidade processual de afronta à liberdade de expressão, aos direitos legais e à inviolabilidade parlamentar. A conversa de um de seus juízes auxiliares com um perito do TSE, revelada pelo jornal Folha de S.Paulo, em que determina que o tal perito “seja criativo” para fazer acusações à Revista Oeste, onde só havia encontrado “matérias jornalísticas”, é soberana ao demonstrar o desvirtuamento da investigação. E ao tornar qualquer crítica ao sistema eleitoral ou à Corte um crime, afrontando todos os direitos de liberdade guardados em cláusula pétrea pela Constituição, deslumbrado pelo poder inaudito a um ministro do STF, Moraes disse: “Ainda tem muita gente para prender e muita multa para aplicar”. Como assim? Já julgou e condenou? Houve direito à defesa?

A denúncia de Gonet, em que a mera semântica da sagrada língua portuguesa derruba a tese do “golpe”, impossível também juridicamente pelo Direito ensinado nas escolas para novos advogados, será julgada, se aceita pelo STF, pela Primeira Turma, por decisão dele próprio, o juiz Alexandre de Moraes, o que provocou protestos de outros ministros exigindo que o caso seja analisado pelo Pleno composto dos 11 ministros.

Gonet Lula
Paulo Gonet foi o indicado pelo presidente Lula para assumir a PGR | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Uma constatação prática: a Primeira Turma é formada por Alexandre de Moraes e Flávio Dino, além de Cristiano Zanin, ex-advogado de Lula, Cármen Lúcia, da “censura até segunda-feira”, e Luiz Fux. Se o julgamento for para o pleno, Luís Roberto Barroso é o presidente. Que frutos podem sair dessa árvore suprema? Num questionamento mais objetivo, que condições terá esse Supremo de julgar sob o estrito senso da lei, do Direito brasileiro, e o princípio da inalienável isenção? Temos ministros que se julgam vítimas e alguns que já falaram demais, fora dos autos, contra um dos lados do pensamento brasileiro, justamente o que será julgado. Não obstante, à sombra da tal árvore, têm acontecido jantares e encontros secretos ou não com o governo Lula, num afastamento sem precedentes da liturgia do cargo.

É necessário igualmente fazer duas reflexões sobre crimes reais cometidos por expoentes da esquerda e sobre leis perfeitas que foram reinterpretadas ou invalidadas na prática, com o dedo definitivo do Supremo que reescreveu a história do país.

1. A Lei do Impeachment foi desfigurada e fatiada no julgamento de Dilma Rousseff, do PT. Em agosto de 2016, a sessão de cassação da ex-presidente foi presidida pelo então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, hoje ministro da Justiça. Rasgando a lei, Dilma foi deposta do cargo, mas não perdeu os direitos políticos, o que causou protestos veementes de ninguém menos que o senador Fernando Collor de Mello, um ex-presidente punido integralmente pela lei.

Dilma Rousseff diante dos senadores, durante sessão de julgamento do impeachment (31/8/2016) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

2. A Lei da Ficha Limpa, soberana em garantir candidatos de passado ilibado, foi atropelada pela tese “suprema” do CEP, apresentada pelo ministro Edson Fachin e referendada pela Corte, que anulou os julgamentos que condenaram Lula em Curitiba e devolveu o ex-presidente à eleição de 2022, dando início ao desmonte da Lava Jato. Lula, do PT e principal beneficiado, estava preso depois de condenado em três instâncias por crimes de corrupção.

Especialistas em Direito, juristas renomados pela seriedade na defesa apartidária do Estado Democrático de Direito e do devido processo legal, têm apontado uma série enorme de inconsistências e narrativas na denúncia da Procuradoria-Geral da República, o que torna a peça de Paulo Gonet precária e frágil juridicamente, além de politizada. Seria como uma colcha de retalhos de pano rasgado e gasto, torcido e distorcido, que tenta se emendar com costura grosseira para subsidiar a qualquer custo a tese do golpe, transformar automaticamente críticos em subversivos e manifestantes em golpistas. Em outras palavras, o mantra de prender Bolsonaro a qualquer custo.

Paulo Gonet, presidente da PGR, Flávio Dino, ministro da Justiça, e Luís Roberto Barroso, presidente do STF, durante evento em Brasília, DF (8/1/2024) | Foto: Jose Cruz/Agência Brasil

Em que pese o ato de vandalismo explícito e condenável contra as sedes dos três Poderes no 8 de janeiro, data em que o ex-presidente estava fora do país e nenhum líder, força armada ou plano para o dia seguinte foram identificados, fato é que a conta do golpe não fecha. É uma narrativa que o rigor do Direito não contempla e que pretende fazer de indícios provas cabais. Mais que isso, a falta de individualização de conduta e de julgamento justo às centenas de detidos, porque já imputadas penas abusivas, deveriam mobilizar o país inteiro em nome de uma anistia. Mas a árvore envenenada de parte da imprensa, da Academia e da sociedade contamina o debate público e joga contra a pacificação do país.

A tese da árvore dos frutos envenenados nunca pareceu tão real. E, como esta coluna fala de economia e negócios, perguntei a alguns advogados que lidam com empresas e fundos de investimento o que esse estado geral do Brasil, sob o atual Supremo Tribunal Federal, pode representar aos investidores. Um deles resumiu a situação ao me dizer que, antes de a Justiça brasileira ter se transformado, ele fazia uma análise técnica e setorial. Hoje, ao ser perguntado por estrangeiros sobre como é investir no país, vai direto ao ponto: “Há dez anos, a jurisprudência era essa. Há cinco anos, mudou. A mais recente diz outra coisa. E nada garante que o entendimento não mude novamente amanhã”. Faz sentido. Tempos atrás, o Supremo arrebentou o ato jurídico perfeito, a coisa julgada em matéria tributária. Ao mudar o entendimento da lei, obrigou empresas que haviam vencido em todas as instâncias a pagarem retroativamente o imposto, agora novamente devido.

Capa da Revista Oeste, edição 231 | Foto: Revista Oeste/IA/Freepik

Como prever o passado?

Quem vai plantar numa terra que está sendo envenenada com insegurança jurídica? Não há pau-brasil que resista.

Por fim, disseram-me os mesmos advogados e juristas que, se a denúncia contra Bolsonaro for adiante como está, se for julgada pelo STF em vez de ser enviada à primeira instância, onde teria uma análise técnica e isenta por juízes litúrgicos e no foro adequado, o risco é de que todo o sistema jurídico brasileiro fique imprevisível. Não haverá mais padrões legais dos limites de uma acusação pelo Ministério Público ou a garantia do sagrado direito de defesa como regra constitucional inalienável.

E a Constituição e os códigos de Justiça podem até ser passíveis de aprimoramento e de reforma. Nunca fontes de imprevisibilidade e insegurança.

Leia também “O apagão de Lula 3”

2 comentários
  1. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Como já disse e volto a afirmar: atualmente temos a pior composição do STF e agora incluo a PGR e a PF. Que vergonha. Cadê o asteroide?

  2. Paulo Cesar F Viana
    Paulo Cesar F Viana

    O nome correto ‘é “kangaroo trial”

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