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alexandre de moraes; estados unidos
Alexandre de Moraes, durante sessão plenária do STF | Foto: Wilton Junior/Estadão Conteúdo
Edição 257

Ilusionistas de picadeiro

O STF finge ignorar a diferença entre um golpe de Estado e uma procissão de vilarejo

Augusto Nunes
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Em 23 de agosto de 1902, quando ainda se chamava Ribeirãozinho, Taquaritinga viveu seu mais glorioso momento: o pontapé inicial na revolta que liquidaria a República na pré-adolescência e entregaria a dom Luiz de Orleans e Bragança o trono que Dom Pedro II ocupou. Às 3 da madrugada, comandados por figurões municipais insatisfeitos com o desempenho do presidente Campos Salles, 200 homens armados aplaudiram a troca de regime, de hino e de bandeira, fora o resto. (Algumas testemunhas oculares juravam que, àquela altura, a tropa já passava de mil voluntários. Acho exagero: a população nem chegara a 5 mil.) O fato é que os insurretos invadiram a sede semideserta da delegacia de polícia, substituíram o doutor deposto por um político local previamente escolhido, tomaram de assalto a estação ferroviária e deram por concluída a primeira etapa da rebelião.

Presidente Campos Salles | Foto: Reprodução/Museu Paulista da USP

Pelo telégrafo expropriado da ferrovia agora a serviço da Coroa, os revolucionários enviaram a boa notícia a centenas de aliados distribuídos pelo território paulista e por outros Estados: Ribeirãozinho era monarquista de novo. Protegidos por meia dúzia de sentinelas, tanto comandantes quanto comandados atravessaram o fim da tarde, a noite, a madrugada e a manhã do dia 24 aguardando a aparição de mensagens igualmente alvissareiras. Nenhuma foi esperada com tanta ansiedade quanto a que seria expedida pelo comando central do movimento, baseado em São Paulo, para informar a hora exata do embarque para a capital, onde engrossariam a multidão que festejava a ressurreição do Brasil imperial. O primeiro e último telegrama remetido pelo QG chegou no meio da tarde de 24 de fevereiro — e com novidades desoladoras. Além de Ribeirãozinho, só pegara em armas Espírito Santo do Pinhal, outra pequena comarca paulista. A revolta havia naufragado espetacularmente. 

Passada a ressaca, os revoltosos da velha Ribeirãozinho se deram por satisfeitos com a vitória solitária. Nenhum envolvido no levante foi preso, os governos estadual e federal fizeram de conta que nada de tão grave acontecera e a vida seguiu seu curso. Em 2018, o samba-enredo da nossa escola homenageou a completa falta de juízo dos antepassados. Trecho: “Taquaritinga / amanheceu / muito invocada / e se rebelou: / pegou em armas / e resolveu / ser monarquia por um dia“. Nascido em 1949, as histórias que ouvi na infância e na pré-adolescência me ensinaram a demarcar fronteiras além das quais um projeto político ousado se transforma em alucinação. Perseguir uma miragem inatingível é sintoma de loucura. Aos 14 anos, testemunhei o confronto de 1964. E vi com nitidez a verdade desconhecida ou subestimada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal: golpe de Estado é coisa séria. Arquitetá-lo é tarefa demorada, complexa, perigosa. Desvendá-lo exige equilíbrio, serenidade, lucidez. Não é coisa para cérebros severamente avariados. 

Nem para portadores de estrabismo seletivo em altíssimo grau, informa a cachoeira de vogais e consoantes despejadas no Supremo Tribunal Federal por Paulo Gonet, procurador-geral da República. Cinco parágrafos bastam para alertar que o afilhado de Gilmar Mendes foi o melhor da classe em juridiquês. Um substantivo pedante, um adjetivo barroco, um verbo de polainas, uma citação em alemão, adornados pelo olhar superior de quem já foi escalado para presidir o Juízo Final e pronto: estará mais que provado que em 8 de janeiro houve uma tentativa de golpe de Estado, e golpe bem mais assustador que um congresso de degoladores do Estado Islâmico. Além da tentativa de destruição do Estado Democrático de Direito com batons inflamáveis. 

Como convém a um procurador-geral parecer sempre sóbrio, Gonet raramente sorri. Como o dono de um cargo de tais dimensões também não deve ter dúvidas, só em ocasiões especiais ele recorre à sabedoria do decano e mentor Gilmar Mendes. Pelo que se vê na denúncia, Gonet não perde tempo com dicionários ao topar com incertezas ortográficas. Juristas do primeiro time sabem desde o jardim da infância que ninguém, nem mesmo Bolsonaro, pode incomodar o STF com qualquer ultrage. A palavra não existe. Em contrapartida, um ultraje de grosso calibre pode ser a justificativa para mais uma prisão seguida de multa. Tudo somado, é ultrajante para os pagadores de impostos, que bancam também todas as contas dos altos servidores federais, constatar que, para Gonet, o certo é escrever “ultrage (com “g” de “Gilmar”) em vez de “ultraje” (com “j” de “Justiça” ou “jerico”). Escreva isso dez vezes naquelas páginas em branco da agenda, Excelência. De nada. 

Alexandre de Moraes, ministro do STF, e Paulo Gonet, procurador-geral da República | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

As acusações, cretinices, platitudes, denúncias, invencionices desfiadas no palavrório de Gonet, endossadas sem ressalvas por Alexandre de Moraes, não merecem respostas, explicações nem provas. Merecem perguntas. Muitas perguntas. Seguem-se dez exemplos:

  1. Alguém já sabe se Flávio Dino manteve a tropa estacionada no Ministério da Justiça no 8 de janeiro por estar ocupado com mais um devastador assalto à geladeira?
  2. Se escapassem ilesos de Brasília, os golpistas atacariam no dia seguinte o Sambódromo da Sapucaí ou a esquina da São João com a Ipiranga?
  3. Por que matar o convertido profissional Geraldo Alckmin em vez de convidá-lo a disputar o cargo de síndico com o apoio de Bolsonaro?
  4. Algum golpista foi designado para descobrir o que achavam do golpe os comandantes das principais guarnições militares?
  5. Se os golpistas vencessem, cassariam os mandatos dos governadores que apoiam o governo Lula e rebaixariam a vereadores os prefeitos do PT?
  6. Quem chefiava os kids pretos? A expressão não é racista? 
  7. O procurador não tem ninguém no PCC a procurar?
  8. O procurador não tem nada mais importante a fazer?
  9. Gonet e Moraes acreditam que Lula ficou multimilionário porque trabalha muito desde a infância?
  10. Se Lula morresse envenenado, quem seria condenado pelos golpistas a casar-se com Janja?

Fiquemos em dez. As perguntas a fazer são milhares.

Leia também “Vício anistiado”

32 comentários
  1. José Carlos Soares Bebiano
    José Carlos Soares Bebiano

    Ótimo comentário.

  2. WILSON ROBERTO DE MEDEIROS PEREIRA
    WILSON ROBERTO DE MEDEIROS PEREIRA

    Dizem que a mistura fatal para envenenar as “autoridades” seria um suco de manga com leite! kkkkkk!

  3. Jarlan Barroso Botelho
    Jarlan Barroso Botelho

    Excelente artigo do Mestre Augusto Nunes. Não podemos esquecer que nesse “gopi” (com “I” e sem “L”), as “tropas” eram formados por vendedores de água, DE ALGODÃO DOCE, por crianças, idosos com bíblias, e por “ferozes cabeleireras” armadas com batons.

  4. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Esplêndido Augusto Nunes.
    Eu perguntaria onde anda, como vive… o General G Dias guarda-costas de Lula visto pela última vez em 08/01/2023 abrindo portas e servindo água para invasores dentro do Palácio do Planalto.

  5. Jose Nobrega Netto
    Jose Nobrega Netto

    É rir prá não chorar

  6. Nilson Abrao Porto
    Nilson Abrao Porto

    A população com dois neurônios está pagando caro pelos sem neurônios que apoiam essas arbitrariedades.

  7. Wagner Darlan Antas de Almeida
    Wagner Darlan Antas de Almeida

    Quem casaria com a Janja caso o Lula fosse morto. Essa foi a melhor piada. Kkkkk

  8. Adauto Levi Cardoso
    Adauto Levi Cardoso

    Com vocês , Mestre Augusto Nunes ! Artigo Sensacional.
    É rir para não chorar ….

  9. Yara
    Yara

    Obrigada, Augusto; estava precisando de umas boas risadas!

  10. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Augusto é fera. Não tem papas na língua. Fala a verdade nua e crua.

  11. ELIAS
    ELIAS

    Muito bom! Diante de uma farsa como essa que chamam de “golpe” , o melhor é recorrer ao humor crítico. Mas o veredito, sabemos, já está pronto e decidido.

  12. Jaime Busnello
    Jaime Busnello

    O pior de tudo é saber que a denuncia será aceita, julgada e a condenação é certa, sempre com a conivência do inútil senado da republica.

  13. Mariângela De Nicola Vieira Pinto
    Mariângela De Nicola Vieira Pinto

    Como é bom ler um artigo seu, Augusto. Amo nossa língua e você a trata com muito carinho e gosto. Quanto ao conteúdo, sério e bem humorado, deleitei- me com sua Taquaritinga. Assunto arrebatador. Completo!

  14. Cátia Deon Dall’Agno
    Cátia Deon Dall’Agno

    Kkkkkkkkkk

  15. Roberto Ferraz Kfouri
    Roberto Ferraz Kfouri

    Augusto, bom dia. Se o Capitao tivesse falado em Separatismo por exemplo, ai sim, estaria em desacordo com a Constituicao.
    Paboe mepabas.

  16. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo texto. Muito bom. Parabéns.

  17. Ana Claudia Brandão da Silva
    Ana Claudia Brandão da Silva

    Excelente artigo. Bom demais.

  18. Mucio Ricardo Caleiro Acerbi
    Mucio Ricardo Caleiro Acerbi

    Que aula do mestre Augusto Nunes! Perfeito!

    1. MNJM
      MNJM

      Excelente Mestre Augusto. Uma aula..

  19. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    A vala foi cavada com essa delação torturante de interpretação

  20. Wesley Lima da Motta
    Wesley Lima da Motta

    Mestre, sempre mestre Augusto Nunes! Acompanho desde o Roda Viva. Nada a acrescentar .Disse tudo em um texto(pela ironia rsr) quase desenhado. Parabéns!!! Grande abraço a todos da Oeste.

  21. Amaury G Feitosa
    Amaury G Feitosa

    Gonet .. por mais ignorantes que sejamos não merecemos “isto” …

  22. MARTIR FRANCISCO
    MARTIR FRANCISCO

    há o quão bom é ler artigo com esse. Comparativo, realístico, esclarecedor e ao mesmo tempo crítico com merecida razão

  23. José Rubens Falbot
    José Rubens Falbot

    PERFEITO, AUGUSTO NUNES

  24. Hygor Pedrosa Andrian
    Hygor Pedrosa Andrian

    Parabéns pelo texto !

  25. Paulo Henrique de Salles Cunha
    Paulo Henrique de Salles Cunha

    Sempre impecável

  26. Inteligencia Artificial
    Inteligencia Artificial

    Calma, calma…… voce nao ira mudar o sistema, pouco a pouco o castelo ira desmoronar e toda a verdade sera revelada. BOM FINAL DE SEMANA, APROVEITE A FAMILIA, VIVA COM UM SORRISO NA CARA E NAO PERMITA QUE A POLITICA NEFASTA DESTRUA A TUA CONVIVENCIA FAMILIAR.
    Uma família está dirigindo atrás de um caminhão de lixo quando um vibrador voa para fora e bate no para-brisa. Envergonhada e tentando poupar a inocência de seu filho pequeno, a mãe se vira e diz: “Não se preocupe, querido. Aquilo foi apenas um inseto.” “Uau”, responde o menino. “Estou surpreso que ele tenha conseguido voar com um pênis daquele tamanho!”

  27. Selma Rocha
    Selma Rocha

    Eles são um “ULTRAGE”, aliás, gostaria de saber como Alexandre de Moraes é ministro da mais alta corte de um país se mal sabe falar, a dicção do homem é um ULTRAJE aos nossos ouvidos, misericórdia. Deveria procurar um fonoaudiólogo e de quebra um psiquiatra.

  28. fabio de souza arcas
    fabio de souza arcas

    Bolsonaro é a cereja do bolo de Moraes, já está condenado, impressionante o quanto um Ministro pode ser vingativo , desprovido de qualquer sentimento de compaixão. Inocentes presos, mães de crianças, uma cabeleireira presa por escrever com baton na estátua do STF. A perseguição a Bolsonaro vai terminar da maneira que ele Alexandre quer.

    1. Marcos Antônio de Carvalho
      Marcos Antônio de Carvalho

      Moraes é um capitão do Mato revivido, saído dos porões da escravidão!!!!

  29. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Acompanho sua trajetória desde sempre e sou fã. Sou criteriosa na escolha dos artigos que chamo de primorosos. Este está entre os 50 mais dos seus 50 anos de escritor. Fora a crueldade do déspota Alexandre de Moraes e da covardia e pusilanimidade de todos os outros seres do stf e do ser da pgr, o que resta é o bloco do deboche, do escárnio e do sadismo. Estamos assistindo ao teatro dos horrores cometido pela turba dos farsantes. Tudo junto e misturado.

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