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Reféns do ataque mortal do Hamas em 7 de outubro de 2023, no kibutz Nir Oz, em Israel | Foto: Reuters/Amir Cohen/Arquivo
Edição 258

Israel na encruzilhada

Para trazer mais reféns de volta para casa, o país precisa manter o cessar-fogo — o que leva à permanência do Hamas no poder

Miriam Sanger
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Das 251 pessoas que foram sequestradas no sul de Israel pelo Hamas durante o maior ataque terrorista já ocorrido no país, 59 continuam reféns em Gaza e, destes, apenas 22 continuam vivos. Esses são números chocantes para a população local: embora já tenham sido sequestrados israelenses no passado, pela primeira vez são tantos e, em sua grande maioria, civis. Segundo o analista político sênior Amit Segal, “62% dos israelenses sequestrados desde a criação de Israel, em 1948, foram levados entre as 8 e as 11 horas da manhã do dia 7 de outubro de 2023”.

Mundo afora eles são chamados coletivamente de “os reféns”. Em Israel, no entanto, cada um tornou-se conhecido por seu nome, sua história e também, semana após semana, por sua chocante experiência em cativeiro. 

Alguns eventos e aspectos foram citados nos depoimentos de todos os libertados, como a angústia pela absoluta falta de controle sobre seu destino, as constantes mudanças de local, a fome e a falta de higiene, a tortura física extrema infligida a todos os homens, a ameaça sexual imposta (e por vezes praticada) contra as mulheres, e o assédio moral permanente. A idade dos reféns não foi levada em consideração pelos algozes, e também crianças e idosos foram expostos a eles, inclusive com a separação física entre pais, filhos ou irmãos. 

Nem todos foram capturados pelo Hamas: parte deles foi levada por “civis palestinos” e, outra parte, por diferentes grupos terroristas baseados em Gaza, sete deles reconhecidos internacionalmente, como a Jihad Islâmica e as Brigadas Mujahideen. Isso explica o fato de cada refém ter passado por experiências e tormentos diferentes.

Histórias de terror

Or Levy, libertado em 8 de fevereiro, passou praticamente todos os dias de cativeiro (490 no total) acorrentado em um túnel baixo que não lhe permitia ficar de pé, e foi obrigado a reaprender a caminhar dois dias antes de ser devolvido a Israel. Capturado por terroristas de um abrigo antiaéreo na beira de uma estrada próxima ao Festival Nova — onde ele, sua mulher, Einav, e outras pessoas tentavam se esconder dos terroristas —, somente depois de sua libertação ele foi informado de que Einav não sobreviveu àquele dia.

@radiorenascenca Or Levy, de 33 anos, foi um dos três reféns libertados este sábado pelo Hamas, em troca com 183 prisioneiros israelitas. Momentos depois de ser entregue à Cruz Vermelha, reencontrou o irmão e os pais. Este 492 dias em cativeiro. 🔗 Saiba mais no link da bio de @renascenca #renascença #informaçãoparadecidir #guerraisraelhamas ♬ som original – Renascença

Eli Sharabi foi libertado junto com Levy e Ohad Ben Ami. A aparência dos três era igualmente assustadora: traziam o rosto acinzentado, resultado de quase um ano e meio sem exposição à luz solar, sem cuidados médicos ou alimentação adequada, e os olhos projetados do crânio como resultado da magreza extrema. Horas antes, os três foram forçados a participar da gravação de um filme produzido pelo Hamas no qual agradeciam pela libertação e celebravam sua futura reunião com a família. Ao contrário dos terroristas que o filmavam, Sharabi ainda não sabia que sua mulher e suas duas filhas adolescentes haviam sido assassinadas no próprio dia 7 de outubro, dentro da casa da família no kibutz Be’eri.

Casa da família Sharabi: a esposa e as duas filhas foram mortas durante a invasão do Hamas | Foto: Miriam Sanger

Assistir aos três homens adultos cadavéricos caminhando com visível dificuldade foi um espetáculo agonizante, o qual provocou críticas até mesmo do presidente Donald Trump: “Eles estão em condições terríveis. Parecem sobreviventes do Holocausto”. Essa comparação foi repetida milhares de vezes em todo o mundo.

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Não apenas homens foram mantidos por longos períodos nos mais de 500 quilômetros de túneis escavados pelo Hamas sob a Faixa de Gaza. Naamá Levy (leia reportagem na edição 252 de Oeste), soldada de 19 anos sequestrada da base militar de Nahal Oz, foi mantida sozinha e no escuro por meses. Ao se reunir com outras reféns, elas perceberam que Naamá havia perdido a noção da realidade. “Ainda estamos vivas?”, perguntou. Algumas mulheres também relataram, além de assédio e abuso sexual, tortura. “Amarraram meus pés e mãos como um frango em dois cabos de madeira e me bateram com um bastão, especialmente na sola dos pés”, contou Amit Soussana, em depoimento às forças de segurança de Israel e também no Uvdá, famoso programa de documentários da TV local. “Mais tarde, entendi que os terroristas achavam que eu era oficial do exército”. Na realidade, Amit é advogada e foi libertada, junto com outras mulheres e crianças, durante o primeiro acordo de cessar-fogo desta guerra, em novembro de 2023. Ela foi uma das únicas reféns a assumir publicamente ter sido estuprada em cativeiro.

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Encenações macabras

Os reféns libertados durante o primeiro acordo — que foi desrespeitado pelo Hamas poucas semanas depois de ter sido efetivado, o que levou ao recomeço da guerra — foram obrigados a acenar e sorrir para fotos e câmeras, e até mesmo a abraçar terroristas encapuzados. Já para as libertações resultantes do segundo cessar-fogo, iniciado em 19 de janeiro deste ano, o Hamas criou absurdas e degradantes cerimônias. Elas eram realizadas sobre um palco em meio a um bairro em ruínas de Gaza, em frente a um amplo público, e registradas de todos os ângulos possíveis — com o uso, inclusive, de drones. 

As cerimônias começam com o desfile das vans que transportam os reféns, nas quais eles são filmados em conversas “amigáveis” com terroristas. Em Israel, esses membros do Hamas estão sendo jocosamente chamados de “tartarugas-ninja”, por causa de sua vestimenta que deixa apenas os olhos visíveis — denotando, segundo as forças de segurança israelenses, seu profundo medo de serem reconhecidos. A caminhada de poucos metros entre o carro e o palco é sempre especialmente assustadora para os reféns, em razão da enorme multidão que os envolve tentando tocá-los e fotografá-los enquanto grita palavras de ordem, como o conhecido “Allahu Akbar” (“Deus seja louvado”), as mesmas ouvidas incansavelmente no dia 7 de outubro toda vez que um judeu era assassinado. Mil e duzentas pessoas foram brutalmente assassinadas naquele dia.

Em um palco com slogans políticos como “o sionismo não vencerá” ou imagens do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, com dentes de vampiro e sangue nos olhos, os reféns recebem um “certificado de libertação” assinado também por um representante da Cruz Vermelha, além de uma foto tirada no cativeiro e um pôster com paisagens de Gaza. As cenas geradas nesses eventos são usadas nas campanhas de desinformação do Hamas pelo mundo para exibir “a gratidão e as boas condições dos reféns”.

A encenação chegou ao ápice com Omer Shem Tov, jovem de 22 anos que, 17 quilos mais magro do que no dia 7 de outubro, recebeu ordens do cinegrafista do Hamas para beijar a testa de dois dos terroristas com ele no palco. Shem Tov foi raptado do Festival Nova e permaneceu isolado em túneis durante quase todos os 505 dias de cativeiro. Os reféns Guy Gilboa-Halal e Evyatar David foram trazidos à praça para assistir à libertação de Omer e de outros três israelenses. O vídeo dos dois, alquebrados e implorando para que o governo israelense concorde em negociar a segunda fase do cessar-fogo, que poderá incluir a libertação de novos reféns e o fim da guerra, provocou enorme indignação em Israel. No mundo, esse vídeo foi pouquíssimo divulgado.

No mesmo dia, foram libertados, discretamente, outros dois reféns: Avera Mengistu e o árabe israelense Hisham al-Sayed, aprisionados em Gaza por mais de dez anos. Ambos sofrem de problemas mentais e entraram em territórios palestinos por vontade própria em momentos distintos. Suas famílias descreveram que os dois estão com a cognição profundamente afetada — especialmente Hisham, que perdeu a capacidade de falar e de escrever.

A infame procissão da família Bibas

O governo de Israel emitiu advertências ao Hamas após cada cerimônia semanal degradante. Antes da entrega dos primeiros quatro reféns mortos — os quais foram levados de Israel com vida e assassinados em Gaza —, realizada no último dia 22, Netanyahu emitiu um comunicado exigindo que nenhum tipo de evento fosse realizado. O Hamas não o atendeu.

Um dos corpos devolvidos era do jornalista e ativista pela paz Oded Lifshitz, de 83 anos, também sequestrado no dia 7 de outubro. Por décadas, ele foi membro da ONG israelense Caminho da Recuperação, que transportava palestinos doentes de Gaza para serem tratados em hospitais israelenses. Sua mulher, Yochevet, também sequestrada, foi libertada em novembro de 2023. “Levamos um tremendo golpe daqueles que sempre defendemos”, disse ela no enterro do marido.

O caixão de Oded dividiu o palco do Hamas com os de Shiri Bibas e seus dois filhos, Kfir e Ariel, raptados aos 9 meses e 4 anos de idade, respectivamente, do kibutz Nir Oz, juntamente com o pai, Yarden, libertado no dia 1º de fevereiro.

O Hamas exibiu uma criatividade mórbida inédita. Os caixões pretos, com fotos de identificação de cada refém, contavam com alças muito mais baixas do que o normal, fazendo com que quase tocassem o chão enquanto eram transportados. Foram entregues com chaves que não os abriam. Em Israel, depois de escaneados para garantir que não carregavam bombas (estavam, infantilmente, repletos de folhetos de propaganda antissemita), eles tiveram que ser arrombados. Algumas horas depois, os israelenses receberam uma notícia inesperada: os restos mortais de Oded e das crianças foram confirmados, mas não os de Shiri. Alegando confusão, o Hamas os enviou apenas no dia seguinte.

A autópsia mostrou que os bebês não morreram por causa de um ataque aéreo israelense, como alegado pelo Hamas: os meninos foram estrangulados e seus corpos foram mutilados para simular o resultado de um bombardeio. Até este momento, não foi divulgada a causa da morte de Shiri. Seu marido, Yarden, depois de ter passado dias pedindo distância da imprensa e silêncio da população em geral em respeito à sua família, veio a público pedir para que fosse feito de tudo para que o mundo soubesse o que aconteceu aos seus dois filhinhos ruivos, que se tornaram um dos símbolos da barbárie de 7 de outubro. 

Shiri, Ariel e Kfir foram enterrados na manhã do dia 26, na cidade de Rishon LeZion, em Israel. Dezenas de milhares de israelenses saíram às ruas com balões laranja e bandeiras de Israel, em sinal de solidariedade à família Bibas.

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Israel na encruzilhada 

O governo israelense está agora diante de uma encruzilhada na qual precisa decidir qual caminho seguir: retomar a guerra para continuar seu plano de extinguir o poder do Hamas ou prosseguir em direção à Fase 2, que prevê a retirada de seu exército de Gaza em troca de mais alguns reféns.

“Mais alguns reféns”, que fique claro: mesmo que o acordo atual preveja até mesmo uma Fase 3, é improvável que o país consiga reaver todos os sequestrados, uma vez que cada um deles é uma valiosíssima moeda que o Hamas há de usar por um tempo ilimitado. 

“Não importa se são 251, 60 ou um refém: o Hamas nunca abrirá mão dessa moeda de negociação”, conta Segal. Segundo ele, “os planos do governo indicam que primeiro tentarão trazer de volta o maior número possível de sequestrados e, em seguida, retomar a guerra com força total, já que a única forma de expelir o Hamas de Gaza é à força”. As negociações entre os dois, no momento, seguem no sentido de apenas estender a Fase 1 do acordo, ou seja, manter o cessar-fogo e a troca de reféns por terroristas palestinos.

A luz no fim do túnel certamente existe, como já existiu ao fim de outras duríssimas guerras enfrentadas por Israel. Mas os israelenses precisarão ainda de muita paciência e resiliência até alcançar um novo período de paz — que, sem dúvida, chegará.

Leia também “Quinze meses num túnel”

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