Fernanda Torres, numa entrevista, deixou umas frases que me fizeram despertar para uma inevitável destinação do filme premiado. “O filme é uma reflexão sobre o que é viver num regime autoritário, onde qualquer um pode ser preso. O que significa viver num país que suspende os direitos civis.” Bingo! Ainda Estou Aqui — o título, perceberam, é sobre hoje, agora, usando um estereótipo de 54 anos atrás, sem ofender Moraes, que poderia bloquear a exibição do filme, a pretexto de atentar contra o Estado Democrático de Direito, se fosse um libelo direto, escrachado, à situação de hoje, focando a família do Clezão ou os dois filhinhos da Débora do batom.

Meu netinho de 4 anos veio visitar-me neste Carnaval, e a primeira pergunta que fez foi se Brasília tem Estátua da Liberdade. Respondi que sim; que iria lhe mostrar, na Praça dos Três Poderes. Pensei na estátua de Têmis, a deusa da Justiça, diante do Supremo. Mas depois desisti. Lembrei de Débora, a cabeleireira, há dois anos presa, a despeito de ter dois filhos menores, por escrever com batom lavável “perdeu, mané” na base da estátua. Poderia essa Justiça representar também a Liberdade? Também veio à memória o Clezão, que não teve a quem recorrer e foi chamado pelo Altíssimo, e tanta outra gente que não destruiu, não quebrou, não rasgou, não sujou, e foi condenada embora tenha apenas se manifestado, como garante a Constituição. Resolvi não mostrar a estátua a meu neto, para não causar confusão na cabeça dele. Mais alguns anos e ele poderá conhecer o registro histórico do que aconteceu no Brasil nesses tempos tão estranhos em que direitos e garantias fundamentais são suspensos dependendo do lado ideológico do atingido.
Enquanto isso, saúdo, como todos os brasileiros, a primeira vitória do cinema nacional no Oscar, com o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro para Ainda Estou Aqui, que retrata um episódio desencadeado em janeiro de 1971 de arbítrio, perseguição, autoritarismo. Exato meio século depois, o mecanismo de arbítrio, autoritarismo, perseguição voltou e ainda está aqui. O filme aumenta a indignação da cidadania, percebendo que o acontecido no passado não serviu para evitar a repetição de erros históricos. Os constituintes de 1988 cuidaram de blindar, pela Constituição, os direitos e garantias fundamentais, como livre manifestação do pensamento, direito de ir e vir, liberdade de reunião, vedação à censura, amplo direito de defesa, juiz natural, banimento de tribunal de exceção — enfim, para que nunca mais o brasileiro fosse submetido a perseguições sem que ficasse claro o crime que tinha cometido.
Vivemos de novo aqueles tempos do filme e, se olharmos para a estátua de Têmis, certamente indagaremos sobre a isenção do fiel da balança entre acusação e defesa. Uma Têmis que é deusa de um verdadeiro tribunal de Justiça, não de um tribunal político, como querem alguns de seus integrantes. Um deles chegou a expressar que o atual presidente da República deve muito ao tribunal. Tempos estranhos. Aplaudimos o filme que retrata um drama de 54 anos atrás, denunciamos um cisco no olho do passado, e fingimos não perceber uma trave diante dos nossos olhos. O Rubens Paiva de hoje é o Clezão.

Com o mesmo orgulho dos brasileiros, o presidente Lula aplaudiu o filme e não aproveitou a oportunidade para lamentar as semelhanças com o presente. Afinal, ele jurou defender a Constituição. Entende-se: ele está com sérios problemas de desaprovação crescente, por causa da alta dos preços e dos juros, provocada pelo desequilíbrio das contas públicas. Mas entra num círculo vicioso: em vez de cortar gastos, faz despesas populistas, como aumento do Auxílio Gás; compra de aprovação na escola, chamada de Pé-de-Meia; ampliação de meio circulante, com crédito consignado que estimula o endividamento; entre outras. Crente de que tudo se resolve com política, chamou a deputada presidente de seu partido para compor sua linha de frente, agora formada por Janja, Gleisi, Sidônio, Rui Costa e Lula. Como se não bastasse, ainda busca como reforço Guilherme Boulos, do Psol, supostamente para que a esquerda não abandone o Titanic, que já foi rasgado pelo iceberg. E tenta, com os dedos, tapar os furos na represa dos votos do centrão, depois que Gilberto Kassab e Paulinho da Força já disseram que o navio afunda. Não fala com os velhos amigos, como lembrou Kakay, e se aconselha com Janja. Lula insiste em dizer que primeiro semeou, e agora vai colher. Ainda não conseguiu colher o Fome Zero semeado no primeiro semestre do primeiro mandato. José Dirceu já deve estar antevendo o naufrágio.
Por coincidência, um jovem publicitário que brandia a Constituição para os policiais, na manifestação do 8 de janeiro, e que tem o mesmo nome do autor do livro que deu origem ao filme, o Marcelo da Constituição, vai ser preso para cumprir pena. Ele voltou para casa, em São Lourenço (MG), no dia seguinte e decidiu devolver a Constituição. A polícia local recomendou que devolvesse à Polícia Federal em Varginha e ele fez isso. Foi preso dois dias depois. Saiu com tornozeleira e foi condenado a 17 anos. Recorreu — mas recorrer ao mesmo tribunal? — e espera ser preso a qualquer momento. A arma para o golpe de Estado motivo da condenação foi a Constituição, assim como a de Débora foi o batom. Na verdade, a Constituição é a arma que nos garante democracia — e, com ela, liberdade de expressão, para que os tempos de Rubens Paiva ainda não estejam aqui.

Leia também “Pode Clezão recorrer?”
O artigo me emocionou muito.
Como podem artistas tão talentosos serem, na mesma medida, tão cínicos, tão covardes, tão omissos, tão insensíveis …?
Brilhante Alexandre Garcia que não tem cisco no olho. E com a arma mis poderosa, a linguagem, revela o ponto claro da hipocrisia.
Com todo respeito devido ao grande jornalista Alexandre Garcia, deve-se sempre lembrar que Clezão, foi vítima, por apenas exercer o direto de se manifestar, em um regime totalitário da Juristocracia, ao passo que R Paiva, fazia parte ativa e atuante de grupo terrorista armado, que matava, sequestrava, assaltava bsncos, etc., tudo com o objetivo de implantar no Brasil a ditadura do proletariado, aos moldes do que aconteceu em Cuba.
Com todo respeito devido ao grande jornalista Alexandre Garcia, deve-se sempre lembrar que Clezão, foi vítima, por apenas exercer o direto de se manifestar, em um regime totalitário da Juristocracia, ao passo que R Paiva, fazia parte ativa e atuante de grupo terrorista armado, que matava, sequestrava, assaltava bsncos, etc., tudo com o objetivo de implantar no Brasil a ditadura do proletariado, aos moldes do que aconteceu em Cuba.
Tristeza sem fim no pais dos poderosos sem carater. Q Deus tenha piedade dos injusticados
Permita-me discordar de você, Alexandre Garcia, meu mestre também, como diz Ana Paula. “Clezão é Rubens Paiva” – não é, um fazia parte de um grupo armado para destituir um regime e para isso, sequestrou, matou e virou bandido, o outro só participou de uma manifestação, foi preso, e morreu na prisão por omissão de socorro, sem nunca ter sido julgado.
Um filme fake. Jamais perco meu tempo e meu dinheiro para aplaudir militância Hj vivemos sim a ditadura da toga.
Só não concordo em dizer que o filme retrata o Brasil presente. Não foi essa a intenção dos autores, não foi essa a interpretação que deram nas entrevistas, quiseram dizer que era contra a ditadura do passado, que hoje não é mais assim, que o filme só pode ser produzido porque a democracia voltou ao Brasil. Canalhas. Estão contribuindo para a tese da “sem anistia”. Brasileiro consciente não vai depositar seus trocados na bilheteria de um cinema para ver essa falsidade ideológica.