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Pesquisa sobre picadas de cobras no Brasil foi retratada por desviar de protocolos éticos, gerando polêmica desproporcional | Foto: Shutterstock
Edição 261

A vida é mais que um protocolo

Estudo sobre a cobra jararaca mostra a fragilidade dos critérios científicos

Theodore Dalrymple
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Não posso dizer que sou um especialista em picadas de cobra no Brasil. Até bem pouco tempo atrás, eu nunca tinha pensado no assunto. Mas minha atenção foi atraída recentemente por um texto no Retraction Watch. Esse excelente site se dedica a expor falhas em artigos científicos, o que leva à sua retirada. Não exatamente na forma de uma eliminação stalinista completa dos registros, como se nunca tivessem existido, mas de uma destruição de sua reputação de tal forma que dificilmente sejam mencionados de novo — o que é uma espécie de morte científica.

O texto que me chamou a atenção no Retraction Watch foi sobre um experimento realizado no Brasil com uma cobra, uma víbora da espécie Bothrops jararaca, ou jararaca-da-mata, que (pelo que li) é responsável por 20 mil picadas por ano no Brasil, principalmente no Sudeste do país.

Picada de cobra é um assunto fascinante e, no primeiro ano da minha carreira, quando eu estava na África, vi vários casos de picadas de cobra, especialmente em crianças que andavam descalças no mato — e as que eram mordidas por mambas-negras em geral não chegavam ao hospital. A título de informação, a Austrália tem 15 das 20 espécies de cobras mais venenosas do mundo e conta 3 mil picadas por ano, com uma média de duas mortes anuais. Entre 2004 e 2015, o Brasil teve 116.842 picadas de cobra e 1.119 mortes delas decorrentes. Interprete isso como quiser.

A picada da mamba-negra é altamente letal, podendo causar morte em poucas horas se não tratada rapidamente | Foto: Shutterstock

A cabeça, o meio ou a cauda

Agora, o artigo sobre o Brasil que foi removido relata o trabalho de cientistas do Instituto Butantan de São Paulo sobre os fatores que causaram, ou melhor, incitaram a cobra a atacar. No início, eu estava inclinado a zombar da pesquisa: quem precisa saber disso? Tudo o que você precisa saber é: evite cobras se puder. Mas vai além disso.

Em que condições e em que circunstâncias é provável que você seja picado? Aprendi muitas coisas que não sabia com o artigo; por exemplo, que as cobras pequenas e não totalmente crescidas, pelo menos as Bothrops jararaca, têm maior probabilidade de picar do que as totalmente crescidas.

Parte do trabalho dos cientistas era determinar se o contato físico com uma cobra levava a uma picada e, em caso afirmativo, com qual parte da cobra: a cabeça, o meio ou a cauda. Para isso, eles estavam provocando o animal com um instrumento de manuseio de cobras, um gancho herpetológico. Mas, quando descobriram que esse instrumento tinha a tendência de ferir a boca das cobras mais jovens, mudaram de técnica e passaram a pisar levemente na cobra — com os pés devidamente protegidos, claro.

Essa nova técnica, que não foi incluída no protocolo original dos experimentos, não recebeu aprovação ética prévia. E foi essa ausência de aprovação que fez o artigo ser removido.

Cheiro de protocolite

Não foi alegado que os pesquisadores haviam falsificado seus resultados nem mesmo que haviam infligido um sofrimento terrível e inevitável às cobras. (Até que ponto as cobras são realmente capazes de sofrer é uma questão que deixo para os filósofos decidirem.) Na essência, a acusação era apenas de que eles não tinham obtido aprovação ética prévia para o novo método, que, de toda forma, variava muito pouco em relação ao que tinha recebido essa aprovação. Eles pressionaram de leve as cobras no chão com um pé, em vez de usar um instrumento de metal.

A acusação contra os pesquisadores foi a falta de aprovação ética prévia para um método levemente diferente, sem alegações de falsificação ou crueldade extrema às cobras | Foto: Revista Oeste/IA

Duvido que muitos leitores considerem isso um crime terrível. Basta dizer que não fiquei profundamente chocado com o fato. Concordo que, de modo geral, os cientistas devem se ater a um protocolo acordado e não desviar dele, pelo menos em nada considerado sério. Mas com certeza deveria haver alguma margem de manobra. Afinal, não estamos lidando com um caso como o do doutor Mengele, o médico da SS que se afogou em Bertioga em 1979.

O caso é educativo e tem importância além da questão da tempestade em copo d’água. Como não quero ser pedante, reproduzo quase em silêncio a seguinte declaração estranha no relatório sobre o caso no Retraction Watch:

“O doutor Alves-Nunes, pesquisador-chefe, pisou em 116 cobras 30 vezes cada, totalizando mais de 40 mil passos.”

Na verdade, 116 vezes 30 é 3.480, e não 40 mil.

De toda forma, me parece uma manifestação da burocratização do mundo o fato de uma falha tão pequena, se é que foi uma falha, levar a uma penalidade tão severa, uma vez que remover um artigo acadêmico é uma verdadeira penalidade ou desonra para os cientistas. Isso cheira a protocolite, a adesão inflexível dos editores da publicação a um protocolo sobre a remoção de artigos científicos. Os protocolos são muito bons em sua maneira de funcionar e muitas vezes são úteis, mas não substituem o pensamento ou o bom senso. A vida não pode ser vivida como se fosse apenas uma questão de seguir protocolos.

A remoção de um artigo por uma possível falha mínima revela um excesso de burocracia e adesão cega a protocolos, ignorando o bom senso | Foto: Shutterstock

A perna forte e a perna inchada

Outra coisa que me chamou a atenção no relatório do Retraction Watch foi o fato de o inestimável processo de remoção ter sofrido o que os americanos chamam de mission creep: algo que tem um objetivo claro — nesse caso, detectar fraude ou erro grave em pesquisas científicas — ter sido ampliado de modo a incluir outras considerações, inclusive de ordem moral. Esse desvio de missão é um fenômeno comum no mundo moderno.

Por exemplo, a Anistia Internacional foi criada com um objetivo limitado, mas digno, a saber: ajudar prisioneiros políticos no mundo todo que não defendiam a violência. Mas agora o céu é o limite para a instituição, pois, como disse um de seus funcionários, “os aspectos dramáticos da mudança climática expuseram com uma clareza espantosa quanto um ambiente saudável é essencial para o usufruto de todos os nossos outros direitos”. Não há nada que esteja fora do seu escopo, desde a mortalidade materna até o dever dos governos de aceitar uma quantidade ilimitada de refugiados. A organização acredita que tem o direito de emitir ditames morais para todos, independentemente dos custos de conformidade para qualquer pessoa. Sua autoridade moral não é fortalecida por isso, mas diluída; é como um médico que não consegue distinguir entre uma perna forte e uma perna inchada.

Mas, voltando à Bothrops jararaca, a cobra. Vale registrar que um dos comprimidos para pressão arterial que uma pessoa próxima a mim toma é consequência direta da pesquisa sobre o veneno da cobra feita pelo finado doutor Sérgio Henrique Ferreira, um dos maiores cientistas do Brasil.


Theodore Dalrymple é pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. É autor de mais de 30 livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações) estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.

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