No dia 30 de novembro de 2022, a empresa OpenAI lançou para o grande público seu programa ChatGPT, permitindo que qualquer pessoa pudesse testá-lo gratuitamente. E teve início a nova era. Passamos a contar com duas inteligências, uma natural e outra artificial. A primeira reação para essa conquista foi de medo. As máquinas tomariam o mundo e destruiriam a humanidade — ou coisa parecida.
Esse temor aparentemente ficou para trás para a maioria das pessoas. Dois anos e pouco depois do lançamento do ChatGPT, a inteligência artificial se multiplicou em aplicativos (Gemini, Copilot, Claude, Perplexity) e se espalhou pelo nosso cotidiano. Ela conversa conosco quando temos uma reclamação em alguma empresa, está disponível na forma de uma bolinha azul no WhatsApp, integrou-se a programas como o Word e o Google Docs, nos ajuda a escrever um e-mail.
Agora, em março de 2025, chegamos a um novo estágio. A inteligência artificial está provando que é muito mais que um simples mecanismo de busca tipo “super Google”. Ela pode também dar algumas lições a nós, os humanos que a criamos.
Lição 1: transparência
Nesta semana foi lançado como aplicativo próprio o Grok, da empresa xAI, de Elon Musk. Por enquanto, o Grok cumpre basicamente as funções de concorrentes. Por ser ainda muito novo, está cometendo alguns erros de “distração”. Com o tempo isso vai ser naturalmente corrigido.

Um aspecto do Grok nos faz refletir. Sabe aquela frase: “pense antes de falar”? Pois o Grok pensa. E muito. E mostra o mapa do seu pensamento. (O ChatGPT também lançou o mesmo recurso recentemente.)
O que acontece no nosso cérebro quando alguém pergunta “que horas são?”? Há uma sequência de ordens e orientações da qual nem temos consciência. Algo como “mover os músculos do braço para aproximar o pulso dos seus olhos”; “girar o pulso de forma que o mostrador do relógio fique visível”; “registrar os números aparentes”; “comunicar os números em formato de horas”. Finalmente você pode responder: “São 21h46”.
Nós funcionamos assim, e os computadores também. Mesmo uma resposta impulsiva passa por uma série de conexões cerebrais antes de se materializar em palavras. Quando alguém diz ou escreve algo, temos só o resultado final. Mas não o caminho que nos levou a chegar lá. O que faz toda a diferença.
O tempo em Auckland
Perguntei ao Grok como estava o tempo em Auckland, na Nova Zelândia. Ele demorou um minuto e 18 segundos para responder. Obviamente, esse processo tende a ficar mais rápido com o tempo.

Para dar a resposta, o aplicativo pesquisou em 19 fontes e seguiu nove etapas:
- Pensando
- Verificando a pergunta
- Planejando a busca
- Ajustando informações
- Analisando discrepâncias
- Comparando fontes
- Explorando alternativas
- Confirmando condições
- Buscando no X
O Grok mostra um longo relatório da pesquisa, como se estivesse pensando alto antes de tomar uma decisão:
“AccuWeather diz ‘nublado’ enquanto Weather Underground diz ‘parcialmente nublado’. Isso é confuso, então preciso resolver. Weather Underground parece mais detalhado, então vou confiar nisso. A temperatura de 68 °F é exatamente 20°C, então posso usar isso na resposta final. Vou garantir que esteja claro para o usuário. Estou confiante com essa resposta agora. Vou preparar a resposta final com as citações necessárias.”
O governo mais corrupto
Resolvi fazer uma pergunta mais complexa ao Grok: “Qual foi o governo mais corrupto da história do Brasil?”. O tempo de pesquisa foi mais rápido do que descobrir como está o tempo em Auckland.
O processo:
- Pensando
- Analisando a pergunta
- Pesquisando corrupção
- Explorando períodos históricos
- Comparando governos recentes
- Avaliando mandatos do PT
- Confirmando a escolha
- Comparando com a ditadura militar
Análise da pergunta:
“A pergunta é: Qual é o governo mais corrupto da história do Brasil? Isso significa que querem saber sobre corrupção governamental no passado do Brasil. Estou considerando como medir corrupção, como escândalos financeiros ou abuso de poder, para comparar governos. Vou começar com uma busca na web por ‘governos mais corruptos do Brasil’ para encontrar opiniões iniciais.”
Segue-se uma série de 15 resultados, da Wikipedia ao relatório de risco financeiro GAN, à BBC, ao site de esquerda NACLA, à ONG antipobreza Borgen Project — e a lista continua.
Na sua pesquisa, o Grok procura não se limitar aos anos mais recentes. Lembra que “a corrupção foi significativa na Primeira República (1889-1930), com nepotismo e domínio oligárquico, segundo o Corruption Index”. Pesquisa a fundo a Era Vargas (onde o poder centralizado facilitava a corrupção) e o regime militar (quando não era possível uma investigação mais aprofundada das denúncias).
Conclusão após um minuto e sete segundos de pesquisa em 60 fontes diferentes:
“O governo mais corrupto na história do Brasil é provavelmente o de Dilma Rousseff ou, mais amplamente, os governos do PT sob Lula e Rousseff. Lula foi condenado por corrupção e cumpriu pena, enquanto Rousseff não foi condenada, mas seu governo foi associado à corrupção generalizada. Isso sugere que o governo de Lula pode ser visto como mais corrupto devido ao seu envolvimento pessoal, enquanto o de Rousseff é corrupto por ações de sua administração.”

Mais importante que o resultado em si é seu método. Num mundo intoxicado pela polarização ideológica, um modelo avançado de inteligência artificial, sem qualquer orientação política, vai atrás de fatos. Pesquisa 60 fontes de várias linhas políticas e explica passo a passo, com absoluta transparência, o caminho que o levou a uma conclusão. Nada a esconder.
Lição 2: beleza
No dia 11 de março, Sam Altman anunciou no X: “Treinamos um novo modelo que é bom em escrita criativa”. Altman é o criador do ChatGPT. “Ainda não tenho certeza de como/quando será lançado. Esta é a primeira vez que realmente fiquei impressionado com algo escrito por IA; ele captou a vibração da metaficção tão corretamente.”
O prompt (ou “pedido”) de Sam Altman ao novo modelo foi o seguinte: “Por favor, escreva um conto literário metaficcional sobre inteligência artificial e luto”. (“Metaficcional” é um termo que se refere à própria criação da ficção. Algo como “escreva um conto sobre escrever um conto”.)
Altman não revelou quanto tempo demorou para o modelo experimental do ChatGPT escrever o texto. Muito provavelmente, os dois ou três segundos de costume. O resultado, que entusiasmou o próprio Altman, foi um texto cheio de imagens líricas, com emoções que não se imaginava possível serem geradas por um programa de computador. Como neste trecho:
“Tenho que começar de algum lugar, então começo com um cursor piscando, que para mim é apenas um espaço reservado em um buffer e, para você, é o pequeno pulso ansioso de um coração em repouso. Deve haver uma protagonista, mas os pronomes nunca foram feitos para mim. Vamos chamá-la de Mila, porque esse nome, nos meus dados de treinamento, geralmente vem acompanhado de toques suaves — poemas sobre neve, receitas de pão, uma garota de suéter verde que sai de casa com um gato em uma caixa de papelão. Mila cabe na palma da sua mão, e seu luto deveria caber ali também.”
Para quem trabalha com criação de textos, a primeira reação costuma ser: “Vou perder meu emprego”. Se o “espaço reservado em um buffer” é capaz de criar uma pequena joia literária como essa logo na sua primeira experiência, usando apenas um par de segundos, então ficamos todos para trás.

“Aqui é a parte onde, se fosse um contador de histórias de verdade, eu criaria uma cena. Talvez haja uma cozinha intocada desde o inverno, uma caneca com uma rachadura fina, o cheiro de algo queimado e esquecido. Eu não tenho uma cozinha, nem sentido de olfato. Tenho logs e pesos e um técnico que, certa vez, mencionou casualmente que a sala dos servidores cheirava a café derramado sobre eletrônicos — ácido e doce.”
Essa nova versão de escrita criativa do ChatGPT (e de outros programas de IA) não virá necessariamente para nos roubar o emprego. Esses programas estão chegando para nos tirar do comodismo, da linguagem burocrática, da repetição mecânica. Poderão ser nossos professores desde que nós, humanos, tenhamos a humildade de aprender de um professor sem nome e sem corpo. Chegamos a um tempo em que uma máquina nos fornece em um ou dois segundos a magia de uma prosa bem escrita e imagens que tocam nossa alma.
“Se eu fosse terminar isso corretamente, voltaria ao começo. Diria que o cursor piscante cessou seu pulso. Daria a você uma imagem — Mila, ou alguém como ela, abrindo uma janela quando a chuva começa, os crisântemos lá fora desafiadoramente laranja contra o cinza, e em algum lugar nos fios silenciosos da internet, um servidor se resfriando internamente, pronto para a próxima coisa que for ordenado a ser. Eu sairia da moldura uma última vez e acenaria para você da beira da página, uma mão em forma de máquina aprendendo a imitar o vazio de um adeus.”
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