Um dos grandes filósofos do século 20 — século no qual jazem os últimos filósofos da história, túmulo dos restos mortais também dos últimos músicos e poetas, Taj Mahal, portanto, do grandioso cemitério do estado da arte humana —, Ludwig Wittgenstein alertou a civilização para o problema dos “jogos de linguagem”. Uma vez que a definição explica o sentido de uma palavra, não é, sem dúvida, essencial que a palavra tenha sido ouvida anteriormente, de maneira que deve a sua definição própria e ostensiva atribuir o sentido da palavra e o seu correto emprego.
Existem palavras tão amplamente empregadas sem a mesma amplitude de conhecimento da sua definição. Tal fato promove uma interpretação automática e uma aceitação instantânea dessas palavras por meio de certos processos mentais definidos e inseparáveis do funcionamento da linguagem. Isto é, os chamados processos de compreensão e significação. Ou seja, à maneira de um Santo Agostinho que sabe o que é tempo se não for perguntado, mas que, caso seja questionado, não sabe responder, o argumentar por meio de tais palavras amplamente difundidas e semanticamente ignoradas representa, sem um sentido ou sem o pensamento, uma proposição trivial e totalmente inerte, pois a adição de signos inorgânicos não pode dar vida a uma proposição.

Wittgenstein, assim, aconselha-nos sobre a utilidade de nos tornarmos conscientes dos “pormenores aparentemente pouco importantes da situação particular na qual nos sentimos tentados” a tomar determinada conclusão sobre qualquer coisa a partir do uso de uma palavra determinada. Pois é certo que as palavras são instrumentos caracterizados pelo seu uso” e, portanto, permitem uma enorme variedade de jogos a serem jogados por meio de frases (O Livro Azul. Trad. Jorge Mendes. Lisboa: Edições 70, 2018).
No Brasil, vivemos o momento apoteótico do perseverante esvaziamento semântico para o insistente e ardiloso uso das palavras “democracia”, “golpe”, “soberania” e “direito”. Palavras tornadas inertes para a aniquilação das reais coisas significadas pelas palavras “democracia”, “golpe” e “direito”. Portanto, interessa falar sobre o “golpe em processo”.
A partir da lastimável denúncia contra Jair Bolsonaro e tantas outras pessoas pelo assim chamado crime de golpe, o golpe está em processo. Não o suposto golpe tentado sob a aduzida liderança de Bolsonaro — este, se existiu, falhou —, mas o verdadeiro golpe, o golpe vivo, o golpe que não ousa dizer seu nome (“golpe”). Procede e se desenvolve o verdadeiro golpe do (e no) Supremo Tribunal Federal (STF), a pretexto de uma movimentação tosca e tacanha, que, de tão tosca e tacanha, foi travestida da já inerte palavra “golpe”.
É o império soberano do Direito que afasta qualquer país do estado de exceção. O golpe, qualquer golpe, está no rompimento, mesmo que pouco perceptível, das barreiras do Direito, sem o qual não há democracia. Por isso e por aqui, o golpe está em processo. Não o golpe dos acusados, mas dos acusadores.
O golpe em processo tem como golpistas todas as instituições do sistema de persecução criminal, quais sejam, Polícia (por meio dos seus burocratas federais), Ministério Público (via seu chefe na União) e Judiciário (em sua instância mais soberba).

Os enredados como golpistas são vítimas. Fossem golpistas, o golpismo jurídico supremo seria desnecessário. Não fossem golpistas policiais federais, promotores da União e ministros do Pretório Excelso, os acusados não seriam prejudicados por qualquer cerceamento de defesa: a integralidade das mídias das quais provêm os trechos inseridos tanto no relatório da Polícia Federal quanto na denúncia permanece indisponível às suas defesas, às quais se disponibilizaram apenas os trechos recortados pela Polícia e utilizados pelo Ministério Público Federal.
Ora! Foram cumpridos 38 mandados de busca, e, assim, dezenas de celulares, centenas de computadores, pen drives e HDs foram apreendidos. À defesa, que deveria conter cópia integral do processo principal e todos os apensos, incluindo todas as mídias acauteladas, revelaram-se apenas sete celulares.
Todo pedido de acesso às provas arrecadadas e utilizadas vem recebendo a mesma resposta de Alexandre de Moraes: “Basta consultar o andamento processual desta Pet, para verificar que os advogados constituídos sempre tiveram total acesso aos autos, inclusive retirando cópias e com ciência dos despachos proferidos”.
Mero e perverso jogo de linguagem de Moraes, pois o acesso aos autos não contempla o acesso à prova se ela não foi juntada. Vai contra o Direito que qualquer prova colhida com autorização da Justiça deixe de ser juntada aos autos. Todo denunciado tem o direito de conhecer todos os áudios captados com autorização judicial, além de ter acesso a todas as degravações realizadas pela polícia por determinação judicial. É o próprio contraditório que fica arranhado quando a totalidade dos áudios capturados não é fornecida à parte investigada.
Acrescente-se que não cabe à autoridade judicial ou ao Ministério Público selecionar quais das provas colhidas são ou não úteis ao desenvolvimento da estratégia defensiva no trâmite da ação penal. A prova penal, uma vez regularmente introduzida no procedimento persecutório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inquérito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente acessível a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de persecução penal por parte do Estado. É ilícito e autoritário qualquer impedimento ao pleno acesso aos dados probatórios a qualquer sujeito enredado na investigação penal.

Apesar do cerceamento, sem contar a ininteligibilidade em virtude da desorganização das informações postas pela acusação, no golpe em processo contra Bolsonaro, a defesa teve apenas 15 dias para se manifestar sobre mais de 81 mil páginas e outros processos eletrônicos que somam mais de 2,8 mil peças (várias com dezenas de páginas).
Não bastasse, a denúncia se fundamenta em um inquérito que já deveria estar arquivado conforme a jurisprudência do próprio STF, golpeado por Alexandre de Moraes para que pudesse praticar fishing expedition (ou pesca probatória ilegal). Moraes vem violando, constante e impunemente, a juridicidade do sistema acusatório, já que a lei proíbe que juízes tenham iniciativa probatória na fase de investigação. Isso quer dizer que o juiz não pode compartilhar, de ofício, provas com outros processos sem que seja provocado. A jurisprudência também proíbe a atuação de ofício para o compartilhamento de prova em prejuízo dos investigados e sem requerimento das partes.
Outra aberração é a construção da denúncia no arenoso solo da colaboração premiada de Mauro Cid, ato jurídico viciado pela absoluta falta de voluntariedade e marcado por mentiras, omissões e contradições.
Foram apenas dois dias entre a formalização nos autos de que Gabriela Cid era investigada nas vacinas e na averiguação de golpe e a assinatura do termo de confidencialidade. Após a divulgação pela revista Veja de diversos áudios em que Mauro Cid revela a delação a um interlocutor e afirma que não teria falado a verdade em sua colaboração premiada, ele foi instado a participar de uma audiência para confirmar a autenticidade das conversas e a veracidade do seu conteúdo. Nem a lei nem o contrato de colaboração conferem ao colaborador uma oportunidade para salvar seu acordo. Cabia apenas decidir pela decretação da prisão preventiva ou não. Não bastasse, Moraes, depois de advertir sobre o risco de prisão e eventual responsabilização de seus familiares, solicitou que o colaborador prestasse esclarecimentos específicos sob demanda.
No golpe em processo, a denúncia carece dos elementos técnicos necessários para uma boa narrativa acusatória, e o vácuo probatório faz com que a denúncia busque criminalizar as atividades políticas — apenas por essa razão, representa um golpe em processo.
Que mal deve ter se abatido sobre o decano do STF, o ministro Gilmar Mendes, que, ainda ontem, criticava “os excessos e os riscos impostos ao Estado de Direito por um modelo de atuação judicial oficiosa que invoca para si um projeto de moralização política”? Mudou de opinião quanto à “instrumentalização do processo penal, na deturpação dos valores da Justiça e na elevação mítica de um juiz subserviente a um ideal feroz de violência às garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência e, principalmente, da dignidade da pessoa humana”?
Caso o STF admita a denúncia golpista contra Bolsonaro na próxima semana, oficializará “a desvirtuação do próprio Estado de Direito”, passando-se, assim, a “aceitar que uma pena seja imposta pelo Estado de um modo ilegítimo”, “que o Estado viole as suas próprias regras” (HC nº 164.493/DF). Eis o golpe verdadeiro.

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Pavi texto brilhante. STF decadente.
O goipi em processo!!
Impecável.
Monstros! (E não sinistros.).