Pular para o conteúdo
APENAS R$ 39,90/mês
publicidade
O presidente, em mais um discurso vazio, culpou terceiros pela alta do preço do ovo, chamou produtores de 'pilantras' e prometeu medidas intervencionistas para conter a 'inflação dos alimentos' | Foto: Shutterstock
Edição 262

A comédia das galinhas inflacionárias

Existe um princípio básico para entender a inflação: causa não é efeito

Ubiratan Jorge Iorio
-

Há poucos dias, em mais uma das costumeiras despensas repletas de abobrinhas que constituem os seus discursos, o presidente do nosso país fez duras críticas ao aumento do preço do ovo, que atingiu 15,39% em fevereiro. Prometeu investigar os supostos responsáveis por esse crime antipatriótico, a quem chamou de “pilantras”. Falando, como sempre, para uma plateia amestrada, que acha graça em tudo o que diz, afirmou que “tem alguém passando a mão”. E que o seu governo, além de caçar esses safados, está atuando junto aos produtores para reduzir o preço da carne e já discute medidas com o fim de conter a “inflação dos alimentos”. Já vi uma deputada governista dizendo que é preciso taxar as exportações do agro nacional.

Não existe “inflação dos alimentos”, nem de qualquer bem ou serviço. Esse é um velho equívoco de jornalistas e de alguns analistas. Quem, com mais de 40 anos, não se lembra da famosa “inflação do cafezinho” e do “cartel da pizza”? Foi no tempo daquela senhora ministra da economia no início da década de 1990 que promoveu o sequestro de 80% dos ativos financeiros dos brasileiros, sem ter a mínima ideia de que tal ato, profundamente autoritário, nem remotamente atacava a inflação. O que existe são aumentos acima da média do preço desse ou daquele produto, que não se constituem em causa de inflação, pois são apenas efeitos.

Não há culpados pela inflação, sejam eles “especuladores”, banqueiros malvados, galinhas ou “pilantras”. Só há um responsável por ela, que é o órgão emissor de moeda. Mas, pelo menos dessa vez, no mesmo discurso, o presidente do Brasil disse algo aproveitável, embora cômico, ao sair em defesa das simpáticas aves: ironizou a “explicação” absurda criada por seu séquito de bajuladores da imprensa, de que elas teriam parado de botar ovos por causa da onda de calor. Não há mesmo limites para o puxa-saquismo.

A inflação é culpa do emissor de moeda, não de “pilantras”, e o presidente, ao menos, ironizou a desculpa absurda sobre as galinhas | Foto: Shutterstock

Entre os aduladores da internet e das redações, preciso destacar o verdadeiro espetáculo de contorcionismo verbal proporcionado por uma comentarista de um conhecido canal de notícias da TV “estatizada”. Ao tentar explicar o aumento dos preços dos ovos, a tal jornalista simplesmente os atribuiu à prática dos católicos, durante a Quaresma, de abster-se do consumo de carne e substituí-lo por outros produtos, entre os quais ovos. Quanta ignorância econômica!

Segundo esse raciocínio, podemos assegurar que, quando chegar a Páscoa e os católicos voltarem a comer carne, o problema desaparecerá. Ou seja, o governo é inocente e a culpa é dos fiéis. Opa, espera aí! Segundo esse raciocínio, o preço da carne não deveria estar baixando, já que a demanda caiu? Por que, então, está subindo? E mais: por que “culpar” somente os cristãos, se algumas religiões de matriz africana têm o hábito de sacrificar animais, incluindo galinhas? Ora, se há menos galinhas, não há também menos ovos e, portanto, o preço do ovo não deveria também subir? Ademais, celebra-se a Quaresma no Brasil desde 1501, ano seguinte ao que a esquadra de Cabral aportou na Bahia no dia 22 de abril, já no período pascal, quando já estava encerrada a exigência de abstenção de carne. Portanto, a sazonalidade que a jornalista apontou como se fosse uma grande descoberta acontece aqui há exatos 524 anos. Por que então só serviria como argumento quando se quer defender o governo atual?

A batata e o caviar

A inflação, em qualquer época e lugar, é um crescimento da moeda e do crédito sem lastro em aumentos correspondentes na produção, na produtividade e na população. Ou seja, deve ser definida como a própria ampliação na oferta de moeda e crédito, e não da forma que se tornou usual — como um aumento contínuo e generalizado de preços. A utilização da palavra “inflação” com esse segundo significado tem gerado muitas interpretações incorretas ao longo dos anos, produzindo diagnósticos equivocados e terapias desastrosas. Causa não é efeito. Sendo a inflação a própria expansão monetária, só há um responsável por ela: o Banco Central.

Inflação é a expansão da moeda e do crédito sem lastro na produção, sendo responsabilidade exclusiva do Banco Central | Foto: Shutterstock

Inflação significa simplesmente que, se a moeda e o crédito são “inflados”, os agentes econômicos passam a dispor de mais dinheiro para comprar bens e serviços. Ora, a oferta destes últimos não cresce à mesma velocidade que a das emissões, pois, no mundo real, assim como tartarugas não conseguem acompanhar lebres, a oferta é mais lenta do que a demanda. Seus preços crescerão e continuarão a aumentar enquanto a causa persistir.

Como disse o professor Mises em uma das seis palestras que proferiu em Buenos Aires em fins de 1958, a batata é mais barata do que o caviar porque sua oferta é muito mais abundante. Em um processo inflacionário, a moeda e o crédito desempenham o papel da batata, e os demais bens e serviços, o do caviar. Para comprar as mesmas quantidades de produtos, serão necessárias cada vez mais unidades monetárias, assim como para comprar caviar se gasta mais do que para comprar batatas. É tão simples! Se há mais reais circulando sem lastro, nada mais natural do que o valor do real diminuir relativamente ao dos demais bens e serviços.

Uma das falácias mais repetidas é a de que a causa da inflação não é o excesso de moeda e crédito, mas a “escassez” de produtos. É verdade que um aumento de preços — que não deve ser confundido com inflação — pode ser causado tanto por expansões da moeda e do crédito como por escassez de produtos, ou por ambos. O preço do trigo, por exemplo, pode crescer temporariamente por causa de algum problema na safra. Mas não há caso, mesmo em economias de guerra, de aumentos generalizados de preços gerados por escassez universal de bens. Na Alemanha pós-guerra de 1923, por exemplo, os preços subiam astronomicamente, todos reclamavam contra a escassez generalizada, mas levas de estrangeiros entravam no país para comprar produtos alemães. A razão: muitos preços eram menores na Alemanha do que em seus países.

As quatro conclusões

Não existe “inflação dos alimentos”, ou “inflação” da cenoura, do chuchu, dos barbeiros, das pizzas, do cafezinho ou do petróleo. Por mais importante que seja na economia, nenhum produto é capaz de provocar aumentos permanentes nos preços de todos os demais. Sair em uma noite fria sem estar agasalhado costuma causar gripe, cujos sintomas — dores no corpo, prostração e entupimento nasal — apenas se manifestam dois ou três dias depois. Da mesma forma, a inflação nasce quando ocorre crescimento sem lastro na moeda e no crédito e se torna visível alguns meses depois, quando todos os preços começam a subir sem parar.

Inflação é resultado da expansão da moeda e do crédito sem lastro, e não um aumento de preços pela falta de produtos, como no falacioso caso da “inflação dos alimentos” | Ilustração: Shutterstock

Toda vez que vão ao supermercado, os brasileiros estão sentindo na pele que a inflação está corroendo o seu poder de compra. O IPCA (índice que mede a inflação) subiu 1,31% em fevereiro, o maior aumento para esse curto mês desde 2003, ou seja, em 22 anos. Com isso, o aumento do IPCA (que muitos chamam de inflação) acumulado nos últimos 12 meses ultrapassou 5%, superando o teto da meta anual de 4,5%.

É possível resumir o tamanho do problema que temos pela frente olhando para o comportamento de quatro variáveis. A primeira e a segunda são conhecidas: a política monetária que vem sendo seguida pelo Banco Central e a política fiscal que vem sendo praticada pelo governo. A terceira e a quarta, entretanto, são desconhecidas: as expectativas formuladas hoje quanto à política monetária e à política fiscal no futuro. 

Podemos dizer, então, que os preços dos bens e serviços vigentes hoje dependem da atual política monetária do Banco Central. Mas também dependem da política monetária que o Banco Central conduzirá amanhã. E, também, da expectativa, desconhecida, sobre o desempenho da política fiscal amanhã.

Não é preciso ser nenhum gênio para olhar para essas quatro variáveis mencionadas e concluir que: (1) a política monetária que vem sendo praticada, embora correta, não está sendo suficiente para manter os aumentos de preços dentro da meta; (2) a expectativa quanto à política monetária futura é de que precisará de um aperto maior; (3) o estado atual da política fiscal, ou seja, das contas do setor público, é calamitoso, fruto de uma concepçãoirresponsável; e (4) a expectativa quanto ao que vai acontecer com as contas públicas no futuro é de alargamento do déficit, pelo mesmo motivo.

Pilantras e bodes espiatórios

As conclusões, infelizmente, são bem desagradáveis. Existe um choque enorme entre a política fiscal do governo e a política monetária do Banco Central, como se as trombetas estivessem simultaneamente tocando um toque de avançar e outro de recolher, fazendo com que o exército não saia do lugar. O governo muito dificilmente vai agir para mudar o regime fiscal, seja por seu pensamento rupestre, seja porque no próximo ano haverá eleições. Considerando que a política fiscal tem sido desastrosa, surge uma pergunta importantíssima: o Banco Central, mesmo sendo autônomo no papel, conseguirá manter no futuro o aperto na política monetária? 

Se insistir em fazê-lo, vai precisar aumentar a taxa de juros para valores astronômicos em ano de eleições. Se ceder a pressões políticas para afrouxar a política monetária ou for forçado a abandonar o aperto pelo fato de a relação dívida/PIB ter atingido um ponto crítico, estará escancarando a porta para a inflação descontrolada.

Portanto, na linguagem dos economistas, a assombração da dominância fiscal está perambulando por aí à luz do dia. O que significa que a austeridade da política monetária passa a ser muito limitada ou mesmo ineficiente para conter os aumentos de preços. Quando o governo sanciona uma trajetória crescente de dívida para financiar o seu déficit, mesmo que o Banco Central execute uma política monetária correta, ele terá que abandoná-la e passar a monetizar a dívida.

Isso tudo quer dizer que, sem uma reforma profunda do setor público, que o atual governo jamais vai fazer, é melhor esquecer qualquer possibilidade de êxito. Vamos continuar condenados a assistir a ataques ridículos aos “pilantras”, às galinhas, aos católicos e aos bodes expiatórios da vez.


Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.
Instagram: @ubiratanjorgeiorio
Rede X: @biraiorio

Leia também “Vacinação contra o otimismo”

5 comentários
  1. Ana Cláudia Chaves da Silva
    Ana Cláudia Chaves da Silva

    A culpa de toda essa confusão é do bode velho de 9 dedos e de sua gangue de sanguessugas.

  2. Luiz Fraga
    Luiz Fraga

    Pois é, professor! Brasil a cada dia indo cada vez mais para o buraco; não se trata de pessimismo, são os fatos. E, agora,com as próximas eleições se aproximando e com urnas não auditáveis/nada confiáveis, onde é que iremos parar?!

  3. JOSE SALOMÃO KOERICH
    JOSE SALOMÃO KOERICH

    Gostei do texto. Porém devo confessar que o título é que me levou a le-lo. Imaginei que se tratasse de algo relacionado à primeira dama.

  4. Wagner Destro
    Wagner Destro

    Parabéns, Iorio. Seu texto é claríssimo!!

  5. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Muito bem elucidado

Anterior:
Qual será o futuro da Braskem?
Próximo:
Falta inteligência
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.