Nesta semana, nosso colega Cristyan Costa conseguiu um furo de reportagem para Oeste: a carta de Débora dos Santos a Moraes. Cito a matéria publicada em nosso site na tarde da última quarta-feira, 26: “Em 6 de outubro de 2024, a cabeleireira Débora dos Santos, de 39 anos, escreveu uma carta endereçada ao ministro Alexandre de Moraes […]. No documento, de três páginas, Débora comenta a sua participação no 8 de janeiro […]. Débora pode pegar até 14 anos de cadeia.”

A carta da cabeleireira de Paulínia (SP) — mulher sem antecedentes criminais, com trabalho e residência fixos e mãe de duas crianças, Caio, de 10 anos, e Rafael, de 8 — estava, até então, encartada nos autos sigilosos do processo.
Suas mal traçadas, todavia, não sensibilizaram o relator da ação criminal, o ministro Alexandre de Moraes… se é que as tenha lido o ministro golpista — e assim o predico em consonância com os livríssimos petistas, inclusive o presidente Lula, que persistem em alardear, como arapongas a cantar, a inapropriada e própria convicção de ter sido “golpe” o impeachment da ex-presidente Dilma (PT) e, par ricochet, “golpista” o ex-presidente Temer (MDB), o que, necessariamente, torna “golpista” o seu nomeado ao Supremo Tribunal Federal (STF): Moraes.
Passo ao texto da própria Débora, que foi obtido por Oeste em primeira mão:
“Excelentíssimo Ministro Dr Alexandre de Moraes, que esta o encontre com saúde e paz.
Me chamo Débora e venho através desta carta me comunicar amistosamente com vossa Excelência. Não sei ao certo como dirigir as palavras a alguém de cargo tão importante, portanto peço que o Dr. Desconsidere eventuais erros.
Sou uma mulher cristã, tenho 39 anos, trabalho desde os meus 14 anos de idade, sou esposa do Nilton e temos dois filhos […] que são meu coração batendo fora do peito. […]. Sou uma cidadã comum e simples e […] jamais compactuei com atitudes violentas ou ilícitas. […] em momento algum eu adentrei em quaisquer Casa dos poderes, fiquei somente na praça […] encantada com as construções tão gigantescas e bem arquitetadas. […]. Repudio o vandalismo, contudo eu estava ali porque eu queria ser ouvida, queria maiores explicações […]. Por isso no calor do momento cheguei a cometer aquele ato tão desprezível (pichar a estátua). […] me arrependo deste ato amargamente, pois causou separação entre eu e meus filhinhos.
Nesse período de um ano e sete meses de reclusão […], perdi a chance de ajudar o Rafinha na alfabetização, não o vi fazer a troca dos dentinhos de leite, perdi dois anos letivos dos meus filhos e momentos que nunca mais voltarão. Meus filhos estão sofrendo muito, choram todos os dias por minha ausência, passam por psicólogos a fim de ajudá-los a organizar os sentimentos. Um castigo e uma culpa que vou lamentar enquanto eu viver.
Excelentíssimo Ministro Dr Alexandre de Moraes meu conhecimento em política é raso ou nenhum, não sabia da importância daquela estátua […]. Se eu soubesse, jamais teria a audácia de sequer encostar nela. Minha intenção não era ferir o Estado Democrático de Direito, pois sei que o mesmo consiste na base de uma nação. Portanto venho pedir perdão […].
O que mais almejo é ter minha vida pacata e simples de volta e ao lado da minha família.”
Ao terminar a leitura, este articulista foi fulminado pelo nojo acrescentado em seu cotidiano desamparo existencial, pois, a despeito de um eventual cosplay em razão do cocuruto sempre lustroso, dúvida nenhuma mais restava: Moraes é a caricatura de Mussolini, o primeiro fascista.

Provo o quanto afirmo:
Mussolini tinha uma preocupação doentia com a seriedade e a solenidade de um tribunal. Il Duce — chamado de “sinônimo de Itália” pelo jornal britânico The Times em 1925 — era intransigente com cada aspecto, rito, procedimento e todo mise-en-scène do aparato jurídico que serviu para reprimir e prevenir qualquer dissensão e, nesse sentido, aplicar o código penal militar como em tempo de guerra, vale dizer: prisões compulsórias, executoriedade imediata das sentenças e impossibilidade de recurso.
Pelas instruções do ditador italiano, o sigilo da fase de instrução deveria impedir qualquer direito efetivo à defesa, de maneira que, até a véspera de um processo, os réus não poderiam conhecer todas as provas, disponibilizadas em parte apenas no tribunal quando tudo já estivesse decidido pelos juízes trajados em uniformes de gala. As audiências, em um salão amplo e austero do monumental Palácio da Justiça da Piazza Cavour, deveriam ser, aos pés de um grande crucifixo, rápidas, cronometradas e massacrantes.
Vencedor, em 2018, do Strega, o mais importante prêmio da literatura italiana, com o primeiro volume da sua magnífica trilogia biográfica de Benito Mussolini, o professor napolitano Antonio Scurati registra um acontecimento paradigmático de há quase um século (SCURATI. M: O Homem da Providência. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022, p. 231-235):
“Contradizendo a solenidade do aparato de morte, frustrando suas expectativas pomposas, […] (o)s réus da sessão da manhã são Giuseppe Piva, gesseiro de Forli […], e o pedreiro de Bari Cataldo D’Oria, suspeito de ter chamado o Duce do fascismo de ‘catinguento’. Dois coitados, ambos semianalfabetos (Dorio escreveu uma comovente súplica por clemência repleta de tropeços gramaticais). Mais esgotados pela prisão preventiva e mortificados por sua inadequação à solenidade da encenação do que assustados pela eventual condenação, os dois, incapazes de se desculpar com uma frase formulada em italiano correto, tímidos e sem proferir palavra, assistem da sua jaula de animais mansos e inofensivos ao rito celebrado contra eles por altos oficiais severos que, com o peito carregado de medalhas, usam palavras graves cujo significado eles ignoram. […] Dorio e Piva respondem com o olhar plácido e apagado de um bovino […]. A audiência, contudo, é breve, brusca, e visa de maneira desesperada evitar que se repita no tribunal a insolência da frase ofensiva. […]. O general Sanna, inflando o peito coberto de medalhas, em um silêncio que o jornal do Partido Nacional Fascista definirá como ‘religioso’, profere a sentença: Dorio e Piva são ambos ‘culpados tanto de apologia ao crime quanto de ofensa à pessoa do primeiro-ministro’. […].
Mussolini foi bem claro […]: não se trata mais apenas de reprimir a dissidência. O objetivo é mais ambicioso: é necessário reeducar um povo, corrigir uma nação. […]. A nova música deve ser tocada em partituras mais sutis. Agora a segurança pública deve se entranhar na fibra mais íntima da vida cotidiana de milhões de italianos, em suas ocupações serenas e pacíficas […]. Arrebentar a cabeça dos poucos que ainda vão gritar em público por liberdade é coisa antiga, […] agora se trata de estrangular ainda na garganta o resmungo de milhões de murmuradores em potencial, antes que ele chegue aos lábios. Aliás, antes até que invada a mente.”

Os jornais dos exilados políticos protestaram contra o “processo judicial” reputando-o como “farsa”. Na edição de 17 de março de 1927, o jornal de oposição a Mussolini publicado em Paris, o La Libertà, repercutiu a condenação: “Um único delito: o pensamento. Aliás, a suspeita de um pensamento.”
Tem razão Cazuza quando enxerga o futuro repetir o passado: a carta escrita, na prisão (“preventiva”), pela pobre cabeleireira Débora quase condenada, em nosso Brasil de hoje, pelo crime de golpe de Estado repete a carta (Ibidem, p. 236) do pobre pedreiro Cataldo, igualmente escrita dentro da prisão (“preventiva”), às vésperas da sua condenação pelo crime de ofensa ao chefe de Estado:
“Sou emputado por ofensa ao Duce mas por favor acridite que sou inocente… Por isso recomendo que faça esse favor de mim conseder a liberdade provisória porque tem muito tempo que estou aqui dentro e ainda num sei nada da Causa, mas preciso muito de trabalho sendo forasteiro e tendo a mulher duente sem ninguém que ajuda.“
Não bastasse, qualquer semelhança entre a presente carta da brasileira Débora dos Santos e aquela (Ibidem, p. 237), datada de 5 de abril de 1927, da italiana Clotilde Ferdinandi, esposa de outro preso “preventivo”, Luigi Melandri, não é mera coincidência:
“Sua Ex.ª Enea Noseda…
Sou a mulher do preso político Luigi Melandri… Encontro-me na mais grave miséria e sou responsável por três crianças e uma velha tia… Todo dia fica mais grave a situação da minha pobre família privada do único sustento… Eu não peço anistias nem clemências, apenas o desenrolar veloz da ação judiciária.“
Também não é mera coincidência o fato de que, tal como acaba de acontecer com Débora, a carta de súplica de Clotilde tenha sido rejeitada ou ignorada pelas autoridades judiciais fascistas.
Por isso, saibam todos os entusiastas e defensores de Moraes: nunca é tarde demais para mudar de opinião… nem motivo de vergonha.
Basta nos lembrarmos do retardatário arrependimento de Winston Churchill quanto às palavras que proferira em 1926:
“Não pude deixar de ficar fascinado, como tantas outras pessoas, pelo comportamento cortês e simples de S. Ex.ª Mussolini… Seu único pensamento é o bem-estar duradouro do povo italiano… É perfeitamente absurdo declarar que o governo italiano não repousa sobre uma base popular ou que não seja amparado pelo consenso ativo e prático das grandes massas… Se eu fosse italiano, tenho certeza de que teria ficado inteiramente do seu lado do início ao fim da sua luta.”
Existe uma famosa cantiga italiana do século 19 que, da sua origem camponesa, quando entoada pelos trabalhadores rurais sazonais que deixavam as suas casas e familiares nas regiões de Vêneto e Emilia Romagna rumo aos plantios de arroz nas margens do Rio Pó, fora apropriada como protesto à Primeira Grande Guerra e, depois, serviu de hino à resistência antifascista ao longo da Segunda Guerra Mundial: Bella Ciao.
Da versão antifascista dessa canção popular, destaco a estrofe final:
“Questo fiore
Del partigiano,
o bella ciao,
bella ciao
Bella ciao, ciao, ciao
Questo fiore
Del partigiano
Morto per la libertà!“
Em português: “Esta flor do combatente… Ó, querida, adeus; querida, adeus; querida, adeus; adeus; adeus… Eis a flor daquele que morreu lutando por liberdade”.
Receba, ó, Débora, portanto, este artigo como uma flor.
Leia também “O golpe em processo”
Bravo!!
Débora merece essa belíssima homenagem.
Parabéns Pavinatto
Débora merece essa linda homenagem.
Parabéns Pavinatto!
Mais do que um artigo. Pavinatto escreve uma ode, ou seja, um poema lírico, suave, sutilmente alegre à Débora pelo o que nos representa hoje. Pela liberdade que lhe foi tirada durante dois anos por um crime político supostamente cometido ao pichar a estátua com um batom. A imagem do objeto foi compartilhada aqui e pelo mundo. O batom simboliza hoje sobremaneira a liberdade que o art. 5º Da Constituição concede ao povo brasileiro, mas pisado por quem deveria acatá-lo. Simboliza a perseguição sem fim contra toda a direita e contra os apoiadores de Bolsonaro. Essa perseguição precisa acabar. Débora está condenada por um golpe que não existiu e um crime que não cometeu. Débora não está livre. A sentença que o “Sumo Magister” lhe impôs de 14 anos de prisão continua em vigor. Ele do alto de sua “Sumidade Autoritária” apenas a transferiu — numa combinação com Godet — para a prisão domiciliar depois de toda uma comoção e pressão nacional. Lá, porém, ela continua incomunicável: não pode usar as redes sociais, não pode dar entrevistas, não pode entrar em contato com acusados pelo 8 de janeiro, não pode usar as redes sociais e esta presa àquela maquininha que os grande criminosos costumam usar. Ali, diante de seus dois filhos, afastados dela e traumatizados por dois anos por vontade de um homem e seus aliados. Mas a tirania, esta sim, golpista e fascista, deu um tiro no próprio pé. Despertou a atenção do mundo e alertou a Lei Magnitsky por crimes contra os direitos humanos. Débora, você é hoje o nosso símbolo tendo por emblema o batom. Dia 6 de abril, os brasileiros unidos e perseguidos estarão a Av. Paulista vestidos de verde e amarelo clamando por liberdade e pelo retorno da justiça ao Brasil.
Pavinatto, obrigado pela coragem em ser a nossa voz. Contra este ditador que vem destruindo a vida de tantos brasileiros.
Brilhante texto. Parabéns Pavinatto. Inacreditável como a História para se repetir em ciclos. Não tem como não fazer associação entre o que aconteceu na Itália fascista de Mussolini e o Brasil de hoje de Alexandre de Moraes.
Parabéns Pavinato 👏👏👏👏
Aqui a História se repete como farsa, Pavivi. A reencarnação do Duce desta vez, e ainda por enquanto, encontrou oponentes com voz alta e forte nesta revista e nas incontroláveis redes sociais que, contrariando o silêncio italiano do século passado, tem a coragem de contar a verdade e associar, jocosamente, um malvado ao Ovo da Serpente. A pompa e a circunstância da corte são demolidas pelos incompreensíveis apartes do Amigo do Amigo de Meu Pai e outros. O Mussolini original deve estar se revolvendo em sua tumba.
Como sempre incisivo, pontual e magnífico!
Parabéns pela coragem, Pavinato!
Pavinatto, parabéns por compartilhar conosco seus conhecimentos e sensibilidade. Sentimentos antagônicos de esperança por contar com suas reflexões e descrença em nossas instituições.
Excelente Pavinato !
Obrigado por mostrar a história se repetindo através do “salvador” da democracia brasileira: Xandão
muito bom Pavinato !! excelente artigo
que a Débora possa receber esse artigo como uma flor !!!
Pavinatto! Que texto! Obrigado!
Pavi, estou emocionada com a beleza e a verdade de seu texto. Por favor, continue a nos agraciar com sua inteligência e perspicácia.
Lindo texto Pavi 👏👏❤️
O artigo não está aparecendo pra mim
Interessante que sempre achei essa semelhança e de uma forma sublime e única o gênio Pavinatto a descreveu. Parabéns!!!
Parabéns texto brilhante.
Parabéns, Pavinatto. Belíssimo texto!!
Ele voltou!
Belíssimo 👏🏻👏🏻
Artigo espetacular, pobre Débora nas mãos de um STF sem compaixão alguma.