“Apertou o orçamento? O juro está alto? Pega o empréstimo do Lula.” Gleisi Hoffmann não se conteve ao anunciar o novo programa Crédito do Trabalhador. Seria uma extensão do empréstimo consignado, garantido com o FGTS, para todos os trabalhadores formais do setor privado. Gleisi acabou publicando uma imagem nas redes sociais com seu rosto e o do presidente Lula. Mais parecia um meme.
O entusiasmo da ministra de Relações Institucionais foi tamanho que atropelou um dos princípios básicos da administração pública: a impessoalidade. Tanto que foi obrigada a retirar a postagem poucas horas depois.
Na prática, o governo autorizou os bancos a pegarem como garantia os recursos acumulados pelos trabalhadores para conceder empréstimos aos mesmos trabalhadores. Cobrando juros mais do que dobrados em relação ao consignado tradicional. Tudo isso empacotado por marqueteiros como se fosse a panaceia para todas as dores financeiras dos brasileiros. Uma mistura perversa de populismo e crueldade.
“Um crédito a juros baixos para você fazer aquela reforma, trocar uma geladeira, comprar uma televisão e fazer o que você quiser”, disse Lula ao anunciar a medida. “Você pode resolver grande parte de seus problemas. Vamos à luta e boa sorte!”
Gleisi Hoffmann diz para o povo pegar 'empréstimo com Lula':
— Brasil Paralelo (@brasilparalelo) March 23, 2025
“Apertou o orçamento? O juro tá alto? Pega o empréstimo do Lula!” pic.twitter.com/7OK2HwVJf7
Quem precisa de sorte, na verdade, é a economia brasileira, que está dando sinais cada vez mais claros de desaceleração. Assim como a popularidade do governo, em queda livre desde o final de 2024. Segundo a mais recente pesquisa do instituto Futura Inteligência, o porcentual de eleitores que avaliam o trabalho do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como ótimo ou bom minguou para 26,8%. Os que consideram ruim ou péssimo chegou a 52,6%. O pior patamar desde o começo do mandato.
Em sentido contrário, o que está em forte alta é a inflação. Principalmente dos alimentos, que supera 7% ao ano. E em algumas cidades, como São Paulo, Goiânia e Campo Grande, já está em dois dígitos. Muitos brasileiros não conseguem mais sequer encher o carrinho do supermercado.
Com a inflação alta, os juros também subiram, alcançando o maior patamar dos últimos 20 anos. Isso inviabiliza financiamentos para a maioria dos brasileiros. Que, obviamente, estão cada vez mais descontentes.
Para tentar reverter esse cenário, o governo apelou para a única fórmula que conhece: abrir as torneiras do crédito. Subsidiar juros. E torcer para que os eleitores tomem mais dinheiro emprestado, aumentem o consumo e revigorem a atividade econômica. A velha história do governo que te quebra as pernas e depois te oferece a muleta.

O empréstimo mais absurdo do mundo
O problema é que essa operação toda está sendo feita com recursos que já são do trabalhador. Todos os meses o governo confisca 8% dos salários das carteiras assinadas de cerca de 47 milhões de brasileiros e enfia esse dinheiro em um fundo blindado. Quem produziu esse montante não pode sacar nada, a menos que seja demitido sem justa causa ou quando se aposentar. E, pior de tudo, a remuneração concedida pelo Executivo é de meros 3% ao ano. Astronomicamente longe dos 14,25% da taxa Selic. E quase metade do próprio IPCA, que já beira os 6%.
Na prática, a quantia fica retida por anos sendo corroída pela inflação. E, quando o titular consegue reaver o que é seu, o dinheiro vale muito menos.
Com a nova iniciativa do governo, os brasileiros poderão usar esse dinheiro como garantia para obter um empréstimo bancário. Com juros superiores a 3% ao mês. Superando, em muitos casos, 35% ao ano.
Na simulação de um empréstimo de R$ 5 mil dividido em quatro anos, o valor total a ser pago será de mais de R$ 9,5 mil. Quase o dobro. Um absurdo tão grande que até mesmo militantes de esquerda estão criticando a medida. A influenciadora digital Nath Finanças, membro do “Conselhão do Lula”, postou que a medida é “surreal” e uma “ideia errada”.

Outro presentão para os bancos
“Isso tudo é um contrassenso”, explicou a Oeste Cintia Senna, mestre em educação financeira. “O dinheiro já é do trabalhador, mas existem várias regras que impedem o acesso a esses valores. A medida permite, porém, uma autorização financeira para usar esse dinheiro, me oferecer um empréstimo sem risco nenhum. Em troca, me cobram juros.”
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) calculou que, com essa medida, poderá triplicar a concessão de consignado privado, chegando a R$ 120 bilhões por ano em empréstimos oferecidos. Em termos de comparação, o saldo de crédito no Brasil nos últimos 12 meses cresceu R$ 680 bilhões. O novo programa do governo poderia aumentar em 25% esse total. Com um retorno também bilionário para as instituições financeiras.
“Podemos dizer que esse é mais um presentão para os bancos”, diz Senna. O segundo do governo Lula em poucos meses, após o Desenrola Brasil, que forneceu uma garantia de R$ 57,5 bilhões para quem renegociasse dívidas de milhões de brasileiros e limpasse seus CPFs.
“No caso das pessoas que não pagaram as parcelas renegociadas, e foram milhões, quem cobriu o rombo foi o governo. Ou seja, todos nós”, diz Senna. “Além do mais, claramente o Desenrola foi um programa que não resolveu o problema. O número de inadimplentes acabou aumentando.”
Segundo dados da Serasa, em agosto de 2023, quando o Desenrola foi lançado, cerca de 71,74 milhões de brasileiros estavam com o nome sujo na praça. Em janeiro de 2025, esse número saltou para 74,6 milhões.
Além disso, o comprometimento de renda das famílias chegou a 27%, o maior patamar da história, com exceção da época da pandemia. Quando estourou a crise de 2008, esse indicador das famílias americanas estava ao redor de 20%.
“Se quisessem ajudar os trabalhadores, seria muito mais lógico liberar o FGTS para saque”, explica Senna. “Dar a possibilidade para que as pessoas decidam a melhor forma de usar esses recursos. E não usá-los como garantia para endividá-las ainda mais.”
O governo Bolsonaro tinha tentado um modelo mais justo ao criar a modalidade saque-aniversário. O trabalhador poderia obter parte do FGTS em datas regulares. Pena que o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, sempre se disse drasticamente contra qualquer medida que pudesse entregar o dinheiro nas mãos de seus legítimos donos. “Vamos acabar com o saque-aniversário”, declarou no dia 5 de janeiro de 2023, durante a sua posse.
Financiamento de bets
No dia em que o Crédito do Trabalhador foi lançado, os juros futuros dispararam. E o dólar subiu. Sinal de que o mercado começou a fazer as contas. E não gostou nada da medida.
A previsão é que esse estímulo ao consumo via crédito aumente a inflação, aqueça demais a demanda e crie um descompasso com a produção. O que provocaria um novo ciclo de alta nos juros.
“As instituições financeiras colocam um limite de endividamento de 30% da renda mensal que pode ser destinada a empréstimo”, explicou a Oeste Eduardo Reis Filho, educador financeiro. Essa iniciativa excede isso, vai para 35% ou 40%. Isso vai ter consequências no futuro. Para que vai servir pegar um empréstimo comprometendo meu salário? Com certeza para aumentar meu consumo. Ou, no pior dos casos, para apostas em bets e no ‘Tigrinho’. Isso vai aumentar a inflação e a exportação de capital e dilapidar o patrimônio acumulado. Por isso o mercado está preocupado. Essa é uma medida típica de um governo que quer gastar muito e quer que a política do endividamento se torne popular.”
A dimensão da demanda mostra o tamanho das consequências que essa medida poderia acarretar. Poucas horas após a divulgação do programa, foram realizadas cerca de 70 milhões de simulações de empréstimos, quase 9 milhões de solicitações de crédito, e mais de R$ 340 milhões em empréstimos foram concedidos.

O dinheiro dos outros
“Em um país desenvolvido, essa seria uma medida espetacular”, diz Reis Filho. “Todos os grandes países fazem isso, trabalham com alavanca do crédito. Pena que aqui é Brasil. As pessoas já estão superendividadas, suas rendas estão muito comprometidas, e não têm educação financeira. O que pode acontecer no longo prazo é um aumento da insolvência. E os trabalhadores descobrirão quando mais precisarem, na demissão ou na aposentadoria, que seu FGTS já foi consumido. A população será prejudicada.”
O consignado privado se confirma mais uma medida descaradamente eleitoreira, criada por um Executivo que baseou seu mandato no lema “taxa e gasta”. Mas que está sofrendo uma grave crise de impopularidade, principalmente na Região Nordeste, sua tradicional base eleitoral. E, por não ter mais dinheiro para distribuir em programas sociais, está apelando para o crédito privado, usando os recursos dos próprios trabalhadores.
Margaret Thatcher costumava dizer que o problema do socialismo é que um dia o dinheiro dos outros acaba. O problema do petismo é que, um dia, o dinheiro dos brasileiros vai acabar.
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