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Edição 29

A crise do liberalismo

A liberdade individual, entendida como quebra de todos os tabus e restrições “obsoletas” ou “irracionais”, produziu o mundo bizarro da política de identidade, da ideologia de gênero e do Estado controlador

Rodrigo Constantino
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No jovem século 21, a democracia liberal, o sistema que combina o governo da maioria com os direitos individuais, entrou em uma crise de legitimidade. E isso não ocorreu por conta de alguma deturpação dos valores liberais, e sim por causa de sua aplicação fiel. Ou seja, o liberalismo não foi usurpado por progressistas com suas políticas de identidade; essa agenda, cada vez mais distante do ideal de liberdade individual, seria uma consequência das próprias premissas liberais. Eis a tese que Patrick Deneen defende em Why Liberalism Failed.

Para Deneen, os sintomas da crise são evidentes: desigualdades crescentes, esgarçamento do tecido social, enfraquecimento de instituições como família e tradição, perda de confiança nas autoridades, desilusão com o progresso e recrudescimento da polarização política. Para Deneen, não seria o caso de reforma, mas de aposentadoria do liberalismo. É uma tese um tanto radical e controversa, sem dúvida. Mas mesmo os liberais clássicos, que certamente olham com desgosto para aquilo em que se transformou o atual “liberalismo”, podem extrair reflexões úteis da obra.

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Seu principal argumento é que o conceito de liberdade mudou na era moderna, deixando de ser algo ligado ao autocontrole de nossas emoções e instintos para se tornar uma ideia de total ausência de restrições e freios a essas paixões. Antigamente era reforçada a ideia de que, para ser livre, era preciso se habituar a virtudes, especialmente a autodisciplina. Hoje, liberdade significa, para muitos, a abolição de restrições externas, inclusive normas e hábitos incutidos na tradição.

Isso costuma levar ao oposto do que se pretendia: menos liberdade individual. O filósofo irlandês Edmund Burke foi certeiro ao constatar: “A sociedade não pode existir, a menos que um poder que controle a vontade e o apetite seja colocado em algum lugar, e quanto menos exista interiormente, mais dele existirá exteriormente. Está ordenado na constituição eterna das coisas que homens de mente intemperante não podem ser livres. Suas paixões forjam seus próprios grilhões”.

O avanço da lógica do liberalismo é a fonte de sua instabilidade mais profunda

Em nome da liberdade, acabamos com um modelo de asfixia estatal. Deneen explica melhor seu ponto: “O liberalismo, portanto, desmonta um mundo de costumes e o substitui pela lei promulgada. Ironicamente, à medida que o comportamento se torna desregulamentado na esfera social, o Estado deve ser constantemente ampliado por meio de uma expansão das atividades legislativas e regulatórias. ‘O Império da Liberdade’ se expande rapidamente com uma esfera cada vez maior de controle estatal”.

Para o autor, uma característica central da filosofia liberal é o reconhecimento da arbitrariedade de quase todas as fronteiras. Limites baseados na geografia, na história e na natureza devem ser cada vez mais apagados sob a lógica do liberalismo. Sua suposição básica é que as bases de nossa ordem civilizada herdada — normas aprendidas nas famílias, nas comunidades, por meio da religião e de uma cultura de apoio — inevitavelmente se desgastariam sob a influência do Estado social e político liberal. Os pilares liberais teriam alimentado o próprio monstro que hoje ameaça as sociedades liberais.

As liberdades que o liberalismo foi criado para proteger — direitos individuais de consciência, religião, associação, expressão e autogoverno — estão amplamente comprometidas pela expansão da atividade governamental em todas as áreas da vida. E, para o autor, isso não é um desvio da ótica liberal, mas sim uma consequência inevitável de suas premissas. As bases do liberalismo foram lançadas por uma série de pensadores cujo objetivo central era desmontar o que eles concluíam ser normas religiosas e sociais irracionais na busca da paz civil. Ao minarem tais pilares, os liberais teriam posto em risco a própria liberdade que tanto valorizam.

Uma sucessão de pensadores liberais pregou as três revoluções básicas de pensamento, redefinindo a liberdade como a libertação dos humanos da autoridade estabelecida, a emancipação da cultura e tradição arbitrárias e a expansão do poder humano e domínio sobre a natureza por meio do avanço da descoberta científica e da prosperidade econômica. O sucesso é inegável, mas foi o próprio sucesso que plantou as sementes do atual fracasso, segundo Deneen.

O afrouxamento dos laços sociais em quase todos os aspectos da vida — familiar, na vizinhança, comunal, religioso e até nacional — reflete o avanço da lógica do liberalismo e é a fonte de sua instabilidade mais profunda. O indivíduo atomizado, independente, racional, arrogante, que vai dominar a natureza e se livrar de todas as amarras “irracionais”, acaba sendo um indivíduo paradoxalmente mais dependente do Estado para tudo. Todos os laços se tornam fracos; as relações, flexíveis, calcadas no egoísmo. E o resultado prático é a substituição de instituições sociais pelo Estado para regular cada detalhe de nossa vida.

Em nome da liberdade, as democracias liberais produziram um monstrengo que asfixia nossas liberdades mais básicas

É assim que o autor explica o aparente paradoxo: “Individualismo e estatismo avançam juntos, sempre se apoiando mutuamente e sempre às custas de relações vividas e vitais que contrastam tanto com a rigidez do indivíduo autônomo quanto com a abstração de nossa condição de pertencer ao Estado”. Longe de haver um conflito inerente entre o indivíduo e o Estado — como muitos modernos sugerem —, o liberalismo estabelece uma conexão profunda: seu ideal de liberdade só pode ser realizado por meio de um Estado poderoso.

Uma população que buscava preencher o vazio deixado pelo enfraquecimento dos laços sociais, de associações locais que forneciam um senso de pertencimento, era suscetível a uma disposição fanática de se identificar completamente com um Estado distante e abstrato. A cultura deu lugar a essa visão atomizada que permitiu o avanço dos tentáculos estatais. A cultura é a prática da temporalidade plena, uma instituição que conecta o presente ao passado e ao futuro. A cultura nos educa sobre as dívidas geracionais e nossas obrigações. Sem esse elo, somos desconectados daquela sensação de destino comum e compartilhado.

O liberalismo valoriza o “cidadão do mundo”, sem apego territorial, uma das fronteiras arbitrárias que limitaria nossas liberdades. Ele adota uma visão abstrata do ser humano, um indivíduo abstrato, racional, sem apego à cultura, “livre” de qualquer restrição geográfica. Mas são as famílias e as pequenas comunidades que preparam o ambiente adequado para o florescimento humano, o que requer cultura, disciplina, limites e normas. O foco liberal em escopos mais abrangentes e abstratos acaba servindo como um fardo a esse florescimento individual.

“O individualismo liberal exige o desmantelamento da cultura; e, conforme a cultura enfraquece, o Leviatã cresce e a liberdade responsável diminui”, resume o autor. Perseguir aquilo que se deseja, sem nenhum senso de dever para com o coletivo, num ambiente de egoísmo exacerbado, passou a ser uma meta liberal, mas o resultado prático acaba sendo menos liberdade. Deneen prefere uma definição mais clássica de liberdade: “A liberdade é a capacidade aprendida de governar a si mesmo usando as faculdades superiores da razão e do espírito por meio do cultivo da virtude”.

O progressismo, uma espécie de segunda onda do liberalismo, alega que é preciso mais ativismo estatal ainda para garantir aquele ideal liberal do “indivíduo autônomo”. Mas Deneen afirma que não se trata tanto de um desvio, e sim de um resgate dos objetivos liberais. A obsessão pelo indivíduo livre de todas as amarras “artificiais” e “empoderado” para realizar seus desejos subjetivos acabou parindo esse modelo progressista atual, com um Estado inflado para viabilizar tais metas. É um legado de John Stuart Mill, entre outros.

Mesmo discordando de certas conclusões do livro, a verdade é que não dá para negar a crise do liberalismo hoje. Em nome da “liberdade individual”, entendida como quebra de todos os tabus e restrições “obsoletas” ou “irracionais”, chegamos ao mundo bizarro da política de identidade, da ideologia de gênero e do Estado de bem-estar social que vai cuidar de todos do berço ao túmulo, para permitir que cada indivíduo possa, efetivamente, “ser livre”.

Em nome da liberdade, as democracias liberais produziram um monstrengo que asfixia nossas liberdades mais básicas. Talvez seja mesmo imprescindível resgatar o conceito de liberdade responsável, calcada na autodisciplina, no controle sobre os desejos, nos limites impostos pela cultura.

Leia também o artigo “Democracias em transe”, de Selma Santa Cruz

 

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