No quarto episódio da primeira temporada da série Downton Abbey, em conversa sobre o risco de perder a propriedade que dá nome à série, o conde de Grantham diz à filha mais velha, lady Mary Crawley, que se ele tivesse comprado o castelo, sem dúvida, o daria. Entretanto, disse ele, o seu patrimônio advinha do esforço de seus antepassados que “trabalharam para construir a grandiosa dinastia” da família.
Enfatizando implicitamente o valor da tradição incorporado a Downton, dirigindo-se à filha e olhando o castelo, explica: “Tenho o direito de destruir o trabalho deles [dos antecedentes]? Ou de depauperar tal dinastia? Eu sou o curador, minha querida, não o proprietário. Devo me esforçar para merecer a tarefa que me foi designada”.
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Você não precisa ser herdeiro de um castelo ou descendente de uma dinastia para agir como um guardião do legado positivo que lhe foi legado por pessoas que você jamais conheceu.
Essa cena de Downton Abbey é belíssima por permitir a minha analogia: faz parte da responsabilidade individual preservar as coisas boas que sobreviveram aos testes do tempo, aprimorá-las (se for o caso) e transmiti-las para as gerações vindouras.
Esse tesouro herdado pode ser a história, o idioma, a culinária, o vestuário, o folclore, a música, a dança, a pintura, artes marciais. Pode ser hábitos, costumes, ética, tomando sempre o cuidado de cuidar, mas também de usá-lo como parâmetro para construir algo novo. Tradição não pode nem deve ser, portanto, algo estático, imóvel, fossilizado.
É nesse sentido profundo e caridoso que “tradição significa transmissão, por gerações sucessivas, de um patrimônio de valores comuns — espirituais, culturais, religiosos —, mantidos sempre no que têm de essencial, corrigidos quando necessário, além de incessantemente melhorados e acrescentados”. Desse entendimento, advém a constatação contraintuitiva, porém verdadeira, do filósofo Juan Vázquez de Mella segundo a qual “tradição é o progresso hereditário” (Galvão de Souza, José Pedro et al. Dicionário de Política, T. Queiroz Editor, 1988, p. 533).
Estando vinculada às raízes do indivíduo, a tradição é nutriente e também colheita do labor humano. É o elo com o passado vívido, uma grande conversação com os antepassados que nos permite ter uma noção mais ou menos exata da razão por que somos quem somos. Essa experiência contextualiza a nossa existência e nos desperta para o sentido de dever e responsabilidade que temos como guardiões da tradição positiva que nos foi legada. Afinal, como observou o escritor inglês G. K. Chesterton, “tradição significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos antepassados. É a democracia dos mortos” (Ortodoxia, Mundo Cristão, 2008, p. 80).
Ao mesmo tempo, impõe-se a obrigação de reformar o que pode ser reformado e de descartar o que deve ser descartado — algo que os conservadores bem sabem e que foi apontado como característica do conservadorismo brasileiro no século 19 pelo historiador João Camilo de Oliveira Torres no livro Os Construtores do Império.
“O próprio conservadorismo é um modernismo, e é nisso que reside o segredo do seu sucesso”
Tradição e inovação não são inimigas — são complementares. Até porque não se aprimora algo que está congelado no tempo. É possível, assim, entender por que “a tradição autêntica possui um movimento natural em direção ao mais perfeito”, de acordo com a afirmação do professor Ibsen Noronha em seu livro Da Contra-revolução e Seus Inimigos (Resistência Cultural, 2018, p. 31).
Na literatura, podemos observar esse movimento natural num período de 2.500 anos, da Ilíada de Homero ao Fausto de Goethe, dentro da tradição dos grandes livros apresentada em The Great Books (Icon Books, 2007), do filósofo inglês Anthony O’Hear.
Com base nessa tradição e nesse livro é que o professor português Miguel Monjardino, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (IEP-UCP), desenvolve há anos um projeto de leitura com jovens estudantes na Ilha Terceira dos Açores. “Tradição dos Grandes Livros” também é o nome de seis cadeiras da graduação em Ciência Política e Relações Internacionais do IEP-UCP, onde fiz o mestrado e faço atualmente o doutorado.
Tradição é alicerce do edifício, que pode ser clássico ou moderno. Vale para sociedade, cultura, artes, política. O grande poeta T. S. Eliot era conservador e foi o grande modernista literário junto com James Joyce. Em 1922, ambos inauguraram o modernismo: Eliot com seu poema Terra Devastada; Joyce com seu romance Ulisses. Antes deles, o nosso Machado de Assis já demonstrara, com Memórias Póstumas de Brás Cubas, que é possível inovar a partir da tradição, inclusive sendo influenciado pela tradição do humor inglês.
No ensaio “Tradition and the individual talent”, Eliot fez uma observação intrigante, porém precisa: a tradição não pode ser herdada, mas conquistada com trabalho árduo. E conquistá-la exige um senso histórico, que é a percepção da presença do passado, do intemporal e do temporal. O que faz um escritor ser tradicional, segundo Eliot, é ele escrever não somente para a sua geração, mas tendo em vista algo grandioso, como a grande literatura europeia e a da própria pátria, como se ambas constituíssem uma ordem simultânea. É essa postura que permitirá ao escritor ter consciência do seu lugar em sua época (Selected Essays by T. S. Eliot, Faber and Faber Limited, 1932, p. 14).
Nesse ensaio, segundo Roger Scruton, Eliot trata a tradição “como algo vivo, e assim como todo escritor é julgado por todos os que o precederam, do mesmo modo o sentido de tradição sofre alterações, já que novas obras são acrescentadas a esta última” (Uma Filosofia Política — Argumentos para o Conservadorismo, É Realizações, 2017, p. 236). O comentário, embora literário, fornece as bases para o seu entendimento político acerca da tradição, ele que se definiu como “classicista em literatura, monárquico em política e anglo-católico em religião”.
Scruton parte desse “aparente paradoxo” para exaltar a importância do poeta como “pensador social e político”, pois Eliot “entendia que o projeto conservador adquiria sentido precisamente em condições modernas — condições de fragmentação, heresia, descrença. O próprio conservadorismo é um modernismo, e é nisso que reside o segredo do seu sucesso” (p. 236).
Mas são essas e outras condições modernas, como ressentimento, vitimismo, cultura do cancelamento, que tentam destruir a tradição que lhes faz frente. Revolucionários odeiam-na porque ela representa um obstáculo à transformação da sociedade que eles almejam. O patrimônio de valores comuns, operando como um organismo vivo, faz com que os indivíduos estejam alertas a respeito das ameaças aos seus modos de vida e das tentativas de destruir os laços com a família, com os amigos, com suas origens. Uma vez destruída a tradição, todo o resto vem abaixo.
No Brasil, onde parte da tradição foi destruída, caricaturada, ridicularizada, esse trabalho de destruição do que restou é mais fácil e o labor de sua restauração e preservação, mais difícil. Difícil, mas possível.
Devemos, portanto, ser curadores da tradição virtuosa que nos foi legada e nos esforçar para ser merecedores dessa responsabilidade, cumprindo, assim, aquele contrato de que falava Edmund Burke: entre os mortos, os vivos e os que hão de nascer.
Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).
Artigo excelente. Parabéns ao autor.
Caro Bruno! Feliz é o colunista que consegue extrair de seus leitores, deliciosas histórias. Parabéns a você e aos seus leitores com seus lindos depoimentos.
Excelente artigo.
Tenho 70 anos e compactuo completamente com o artigo excelente do Bruno Garschagen e comentário postados. Maravilha aqueles tempos … Hoje sou um idoso que ainda teima em buscar aquela criança, que um dia fui …
Quero manifestar outra experiência- se me permitem.
Um dia desses minha netinha chegou em casa com um convite de sua Escola para a família participar do Halloween. Minha filha me mostrou uma mensagem que mandou para direção da escola avisando que a filha dela – minha neta- não participaria da tal comemoração. Indignada com a recusa do “convite” a Diretora quis saber qual seria a causa. Minha filha educadamente respondeu: a senhora pode me dizer o quê exatamente esse Halloween tem a haver com as nossas tradições e cultura? A senhora pode me dizer onde exatamente dia das bruxas – que teve origem com o povo celta- se encaixa na nossa história, como brasileiros? Após um silêncio de sepultura a Diretora se rendeu e respondeu: é apenas uma festinha. No dia seguinte passei por uma grande Loja de Hambúrgueres -que apesar de revências um tal KING – me parece ter proprietários brasileiros. A promoção do Halloween era um sanduiche por 10 reais para quem se apresentasse vestido à caráter e com uma constrangedora vassoura( isso mesmo uma vassoura) no meio das pernas. Para mim isso era caso de polícia pelo constrangimento causado àqueles pobres adolescentes , todos eles – pelas roupas e fantasias- de classe média alta. Esses ridículos episódios são retratos humilhantes da nossa submissão cultural e intelectual de pais e responsáveis que compactuam com esses eventos teratológicos. Precisamos de mais artigos como este e talvez de um grande movimento para salvar o quê ainda resta de nossa combalida dignidade.
Excelente texto.
Supimpa o seu artigo, embora retrate uma “fotografia” com fundo muito triste …
As tradições é que marcam e fazem a História e um País sem as suas vivências registradas e/ou perdidas jamais criará laços para o futuro …
Saudosos os tempos de primário em que o Professor era o baluarte, o farol, o esteio, de toda uma geração …
Sabia-se, de cor e salteado, quase todos os Hinos, e aí daquele que apenas viesse a balbuciar ou cantar para dentro, certamente tomaria um pito do Professor e dos Pais …
Cantigas de roda ao anoitecer … A fogueira de São João a iluminar os rostos das crianças …
Tinha-se tempo para tudo …
À tardezinha, na varanda da Vó, Estórias eram como quase que vividas de tão bem contadas … E é claro à espera do doce logo após …
Quando não, ao pé do Rádio, ouvia-se atentamente “Juvêncio o Justiceiro do Sertão” e o menino “Juquinha” …
E já com que a chegada da Televisão a porta do vizinho era a “serventia da casa” e torcer para que o vizinho (anfitrião) não mudasse de canal …
Logo ali em frente à casa pulava-se o rio para ver quem era o melhor saltador de rio …
Também a bicicleta do vizinho, do amigo, emprestada, deixava suas marcas, pois o tamanho não lhe servia e os tombos eram certos …
O cavalo alazão dava o seu baile quando estava à busca da sua querida …
Assim, muitas Histórias e Estórias todos temos e hoje a chamada tradição se perdeu no tempo …
Mas como disse o articulista : “Tradição e inovação não são inimigas — são complementares. Até porque não se aprimora algo que está congelado no tempo” …
Ótima reflexão, e ótimos comentários dos leitores. A mídia tradicional (TV, revistas, jornais) infelizmente induz o povão a deixar as tradições e partir para o que chamam de novo/moderno/atual/popular, e a esquerdalha usa bem essas ferramentas
Ótimo texto e alerta para a necessidade de mobilizar-nos na manutenção das tradições.
Esse texto do Bruno Garschagen é uma das mais importantes reflexões que já li. Quantas não tem sido as ocasiões em que tive esses pensamentos ao lembrar dos valores que me foram transmitidos pelos meus pais e avós. Espero que o autor nos autorize a divulgar estas reflexões tão importantes nos dias de hoje. Só posso aplaudir este lindo texto.
Excelente análise, e advertência a nós, conservadores, que não devemos esmorecer diante desse quadro dantesco de vandalismo contra as tradições, a família, os costumes e tudo o mais, que compõem uma sociedade sólida e estruturada nos verdadeiros valores. Obrigada!
Um belo,lindo artigo do Bruno.Ótima sugestão para se fazer um precioso cartão de Natal para os parentes e amigos.E necessário para os filhos.Obrigado Bruno.
Brilhante. Bruno descreve com elegância a ponte que liga o passado e o futuro através do presente, chamada conservadorismo.
Ótimo artigo !
Uma satisfação sua leitura.
Texto que a alma conservadora se delícia em ler! Que alegria por Bruno ser Brasileiro!
Muito bom.
Excelente!
Como o excelente artigo registra sabiamente a culinária como elemento da tradição quero dar um depoimento: morei próximo a uma cidade turística de Goiás muito famosa e conhecida. Feriados prolongados e férias de julho e finais de ano a cidade era destino certo. Nos restaurantes era visto em abundância a pungência da culinária local e regional. Os turistas se deliciavam com os cardápios e variações do Peixe na Telha (Tucunaré) ; a Galinhada em suas diversas versões; o Frango com Pequi ; a Panelinha; os pastéis de Guariroba; o Empadão Goiano de recheio espetacular e as belas peças de carne bovina expostas nos açougues para churrasco, dentre outras tantas variedades. Havia uma casa ( e outras tantas) especializada em Caldos de todos os tipos ,mas sempre com os ingredientes da cozinha local. Época de frio ficavam lotadas. Recentemente , depois de anos distante, voltei à mesma cidade e não encontrei mais “nenhum” absolutamente “nenhum” desses pratos nos bares, lanchonetes e restaurantes. A cidade está infestada de letreiros amarelos e vermelhos expondo seus hambúrgueres americanos; suas pizzas de mesma nacionalidade; comidas chinesas e japonesas à rodo e fila e mais filas para “saborear” os sanduiches com cara de Tio Sam e gosto de sem gosto escondido nos molhos vermelhos , amarelos e seus picles e bacons acebolados nas caixinhas de papelão com glorioso e volumoso copo de refrigerante Cola com dez colheres de açúcar. Perguntei com tristeza a alguns moradores pelos restaurantes e biroscas antigas e a resposta foi sempre a mesma: “fechou”. Lembrei-me da honrosa e solitária luta de um Prefeito do interior de Minas – numa cidade histórica- que para não permitir a morte do prato de Frango com Ora Pro Nobis ofereceu um desconto no IPTU aos moradores que plantassem em seus quintais e tal iguaria. Deu certo e não fechou. Atitudes simples e positivas podem nos salvar a todos dessa avalanche que pretende nos tornar súditos colonizados até pela culinária além mar.
Junior sou baiano e como sabem temos uma culinária vasta e saborosa.
Seu depoimento me fez sentir a dor da sua (nossa) perda,
é como se na Bahia não tivéssemos mais acarajés.
Muitíssimo triste isso.
Estamos perdendo nossa história
e um país sem história
é como alguém sem alma
Depoimento impressionante!
Que história emblemática!!!
Excelente artigo Bruno! A música é um bom exemplo de tradição/inovação. Miles Davis foi um dos grandes inovadores, ou mesmo revolucionários!, do jazz e o fez com os pés fincados na tradição e no legado de Ellington e Charlie Parker. Os Beatles, grandes inovadores na música popular, também o fizeram com base no tradicional rock and roll, na soul music e em elementos da música erudita dodecafônica e concreta.
Isso aí Bruno!!!!
Brilhante e tocante comentário. No afã de não deixarmos morrer a tradição abrimos nossa torrefação /cafeteria La Siesta 34 (nome em homenagem às nossas famílias) em São Bento do Sapucaí. Aqui servimos o melhor do café brasileiro arábica com pão de queijo, tostex, bolo de fubá e etc. Amamos manter a tradição da culinária brasileira
Moro em São José dos Campos/SP, vou sempre para Piranguinho/MG (a capital nacional do pé-de-moleque), onde mora e trabalha meu filho. É meu caminho para o sul de Minas, e jamais soube da existência deste estabelecimento. Da próxima ida para Piranguinho, vou entrar na cidade, para saborear uma excelente arábica, com bolo de fubá, pois adoro ambos.