Pular para o conteúdo
publicidade
Edição 44

Quem defenderá a liberdade de expressão?

O livro 'The Free Speech Wars' captura a traição progressista desse princípio mais do que fundamental

Jim Butcher
-

The Free Speech Wars, uma coleção de ensaios editados pela historiadora Charlotte Lydia Riley, não é uma cartilha neutra sobre os debates e argumentos atuais acerca da liberdade de expressão. Ao contrário disso, o livro, recém-lançado na Europa, é uma intervenção amplamente unilateral, destinada a restringir a liberdade mais do que fundamental.

A editora e historiadora Riley dá o tom em sua introdução. Ela apresenta a liberdade de expressão apenas como um princípio entre muitos outros e diz que com frequência está em conflito com os objetivos de justiça social. Nesse sentido, afirma, a defesa da liberdade de expressão é muitas vezes uma forma de encobrir o preconceito de extrema direita.

Quase todos os 22 ensaios, escritos por comentaristas, acadêmicos e ativistas, seguem o exemplo dela. Ou seja, eles exploram como a liberdade de expressão foi transformada em arma por forças malignas e perguntam como podemos limitá-la. A única exceção ao ataque geral ao princípio da liberdade de expressão é um ensaio escrito em sua defesa por Jodie Ginsberg, ex-CEO da Index on Censorship.

Riley deturpa os principais argumentos em nome da liberdade de expressão desde o início. Ao contrário de sua caricatura grosseira, nenhum defensor da liberdade de expressão negaria às vítimas de violência sexual a oportunidade de conversar em um “espaço seguro” apenas para mulheres. O problema surge quando os espaços públicos em geral, como salas de aula ou mesmo universidades, são considerados espaços seguros. Isso significa que a linguagem dentro da sala de aula ou em um câmpus universitário pode ser policiada por códigos de fala e o acesso pode ser restrito por motivos de identidade.

Da mesma forma, a crítica dos defensores da liberdade de expressão à política do No Platform — a recusa de “fornecer uma plataforma a um palestrante por causa de suas opiniões ou afiliações” — é mal interpretada aqui como uma crítica à recusa das organizações em convidar certos palestrantes. “Eu continuo, infelizmente, sem ser convidada para fazer o discurso principal na conferência do Partido Conservador ou apresentar o Oscar”, escreve Riley, “mas isso não significa que alguma das organizações usou o No Platform comigo.”

Contudo, os críticos das políticas do No Platform não acham que as organizações deveriam ter de convidar alguém para falar. É prerrogativa delas escolher a quem convidar. Em vez disso, os críticos do No Platform se opõem às tentativas de ativistas de pressionar um grupo ou organização a retirar de alguém — um acadêmico crítico de gênero, por exemplo — um convite para falar no câmpus. E o fazem apenas porque discordam das opiniões do orador convidado.

De modo semelhante, Riley entende mal a história recente das guerras de liberdade de expressão. Por isso ela sugere que a defesa da liberdade de expressão de hoje pode ser parte de uma “reação contra o movimento pelos direitos civis e pelos direitos das mulheres, ativistas LGBTQ, campanhas pelos direitos indígenas pós-coloniais dos últimos 50 ou 60 anos”.

Eles sempre consideram o público crédulo e passivo, e nunca judicioso ou independente

A cobertura dos debates de The Free Speech Wars, ou debates cancelados, sobre direitos baseados no sexo e no transgenerismo, é similarmente unilateral. Pessoas que definem uma mulher como uma fêmea humana adulta são demonizadas como “transfóbicas” em vários ensaios, e não defendidas em nenhum. Um ensaio cita feministas críticas de gênero específicas e as rotula de “vigaristas” representando para seus “fãs”, “extraindo dinheiro por meio de doações e vendas on-line de camisetas”. Esses “indivíduos carismáticos” são convidados para a TV e escrevem artigos sobre suas opiniões “como se fossem legítimos”.

Isso não é análise. É um insulto. Como tal, é inteiramente típico dos ataques estridentes e personalizados tão característicos das guerras culturais mais amplas. Na verdade, tal é a maldade com que os argumentos sobre o transgenerismo são conduzidos que uma discussão racional da ideia de que uma pessoa pode nascer no corpo errado, ou de que as crianças podem consentir em intervenções médicas controversas, tornou-se quase impossível.

Previsivelmente, os ensaios em The Free Speech Wars fantasiam a ameaça da extrema direita e afirmam que a liberdade de expressão está sendo usada para justificar a promoção do ódio. Assim, somos informados de que as pessoas que apoiam a liberdade de expressão “querem ser capazes de insultar os outros, ou gritar slogans para contar mentiras deliberadas, ou incitar a violência, sem enfrentar repercussões”. Aparentemente, “não é exagero descrever [Jordan] Peterson ou [Donald] Trump, [Boris] Johnson e [Nigel] Farage como os principais propagadores de um movimento neofascista”. Também somos informados de que “o resultado da votação do Brexit” forneceu terreno fértil para “ideólogos protofascistas” que armam a liberdade de expressão para fins reacionários.

Os artigos não são realmente sobre liberdade de expressão como tal. São sobre aquilo que é visto como o problema da liberdade de expressão e como podemos resolvê-lo limitando o que pode ser dito ou escrito.

Tomemos, por exemplo, um ensaio que aborda o caso da Charlie Hebdo, a revista satírica francesa alvo de um assassinato em massa, em janeiro de 2015, por islâmicos. Nele, a “retórica anti-islã” da Charlie é vista como o problema, não os pistoleiros islâmicos que mataram dez jornalistas e cartunistas, bem como um trabalhador da manutenção e um policial, pelo “crime” de blasfemar contra Maomé. Em um notável ato de culpabilizar a vítima, o autor ainda afirma que a Charlie está “na vanguarda de um movimento global para defender o direito de difamar os outros em nome da liberdade de expressão”.

The Free Speech Wars é dominado por uma visão negativa da liberdade de expressão. Seus colaboradores só veem os danos da liberdade de expressão, nunca seus benefícios. Eles sempre consideram o público crédulo e passivo, e nunca judicioso ou independente. Apenas um ensaísta se preocupa com os malefícios da censura, salientando que a pena do censor costuma ser voltada contra as minorias. Mas, além disso, há pouco sobre o poder da palavra para desafiar e inspirar, e menos ainda sobre a importância de permitir que diferentes pontos de vista sejam apresentados e julgados democraticamente.

A liberdade de expressão acarreta riscos, é claro. Mas as guerras pela liberdade de expressão os reduzem a pouco mais que uma ameaça. O livro apresenta a liberdade de expressão como a ferramenta de pessoas más, o público como crédulo e as minorias como vítimas. E faz isso para justificar o policiamento e a restrição do discurso.

A liberdade de expressão é muito importante para ser traída dessa forma. Se levada a sério, protege o direito das pessoas de apresentar seus casos ao público. Assim como os que contribuíram para The Free Speech Wars são livres para fazê-lo. E, no entanto, é esse direito que a maioria deles parece ter a intenção de negar aos outros.

Leia também o artigo “O paradoxo da linguagem ‘inclusiva’”


Jim Butcher é palestrante e autor.

8 comentários
  1. Rafael Lippi
    Rafael Lippi

    A tentativa de calar alguem só evidencia a incapacidade de contra-argumentar os fatos apresentados por este.

  2. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    É uma idiota tentando convencer as pessoas a se tornarem idiotas. O filtro do que se fala é a Justiça.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Muito bom o texto. O mundo está cheio de idiotas como a autora do livro mencionado no artigo.

  4. Lucas Scatulin Bocca
    Lucas Scatulin Bocca

    Para quem ainda dá crédito à esquerdista/progressistas (“aceita” q querem discutir racionalmente e que buscam a verdade e de forma civilizada/pelo diálogo/ com argumentos e pelo convencimento sem violência), eu estou vendendo terrenos na lua…

  5. Geraldo Ballone
    Geraldo Ballone

    A grande importância do tema exige um texto mais inteligível.

    1. Claudia Aguiar de Siqueira
      Claudia Aguiar de Siqueira

      Excelente.

    2. Francisco Pessoa de Queiroz.com
      Francisco Pessoa de Queiroz.com

      concordo. texto mais simples e objetivo.

  6. Joviana Cavaliere Lorentz
    Joviana Cavaliere Lorentz

    Chocante. Arautos da queima as bruxas.
    Tempos desafiantes.

Anterior:
Raquel Gallinati: ‘Fui a primeira mulher a representar os delegados de São Paulo’
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 248
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.