A República Popular Democrática da Coreia é um país que desperta o interesse de pessoas apaixonadas por cultura, história e política. Desde 9 de setembro de 1948, quando Kim Il-sung se instalou no poder e deu início à dinastia de sua família, os norte-coreanos vivenciam uma das ditaduras mais cruéis e longevas do planeta. Relatos de execuções sumárias, supressão das liberdades individuais e extermínio de dissidentes são recorrentes até os dias de hoje.
Leonardo Lopes, paulistano de 42 anos, foi uma das pessoas que se interessaram pela ainda obscura Coreia do Norte. “É um ótimo laboratório da Guerra Fria”, diz o historiador, ao explicar a razão que o levou a viajar para o país comandado por Kim Jong-un. Em entrevista à Revista Oeste, o estudioso do regime norte-coreano esclareceu as dúvidas mais comuns sobre a nação mais controversa da atualidade.
“República Popular Democrática da Coreia (RPDC)” ou “Coreia do Norte”?
República Popular Democrática da Coreia. Esse é o nome oficial da Coreia do Norte. Como todo país socialista, utiliza-se de eufemismos para ocultar um regime totalitário. De forma muito objetiva, não podemos dizer que se trata de uma república, nem mesmo nos moldes socialistas, porque, além de não haver independência entre os poderes e um sistema de pesos e contrapesos, ainda existe uma forte inclinação hereditária que atribui ao “Grande Líder” poderes supremos. Em suma, trata-se de uma ditadura hereditária. Também não é popular, uma vez que o país é dominado por uma elite que ocupa os principais postos no Partido Trabalhista da Coreia (PTC), o partido único. A representação popular que existe na Assembleia Popular Suprema, algo como nosso Congresso Nacional, é totalmente de fachada.
Para se ter ideia de como ela funciona, seus integrantes se reúnem duas ou três vezes ao ano. Quando não estão reunidos, ou seja, durante quase o ano todo, atribuem todos os poderes ao Presidium, uma comissão escolhida a dedo por Kim Jong-un. Na prática, o Presidium controla toda a administração do país. Os selecionados fazem parte da elite norte-coreana, possuem alto songbun [sistema de categorias usado para classificar os cidadãos] e são membros do PTC. Por fim, a Coreia do Norte também não é Democrática, uma vez que o processo eleitoral é pura propaganda. Por exemplo: o PTC escolhe apenas um único candidato para cada província. O povo vai às urnas apenas para votar “sim” ou “não”. Na cédula há apenas um único nome de candidato — o escolhido por Kim. Os eleitores deverão depositar os votos na urna “sim” ou na urna “não”, quebrando totalmente a confidencialidade do voto. Resumindo: toda eleição tem 100% de votos “sim”, porque ninguém é louco de arriscar votar “não” no candidato escolhido pelo líder máximo do país.
Como funciona o sistema songbun?
Songbun significa algo como “ingrediente”, uma referência àquilo de que uma pessoa é feita. É o nome dado para o sistema de castas políticas na Coreia do Norte. O songbun é dividido basicamente em três grandes categorias: Central (a elite), Vacilantes e Hostis. Existem cerca de 51 subcategorias que definem de forma mais detalhada o songbun da pessoa baseado em sua ancestralidade. Se a pessoa tem um avô que lutou ao lado de Kim Il-sung contra o Império Japonês ou pela defesa do regime socialista durante a Guerra da Coreia, essa pessoa naturalmente fará parte da elite e terá um alto songbun. Por outro lado, se o indivíduo tem um avô ou tio que lutou pelo lado do sul, ou antes de 1948 era um fazendeiro, um comerciante, um religioso, um empresário ou um parente de japoneses, será categorizado como hostil e sua vida não será fácil. O songbun define onde a pessoa vai morar, de que oportunidades poderá desfrutar, as categorias de emprego e o nível de liberdade a que terá direito. Pessoas de alto songbun moram em Pyongyang, por exemplo, e podem desfrutar de vantagens como cinema, parque aquático e um sistema de saúde aceitável. Também recebem uma cesta básica mais caprichada. O hostil, pelo contrário, terá uma cesta básica precária — algo como 300 gramas de comida por dia — e vai morar em uma montanha inóspita, numa “cidade” cercada e policiada, ou seja, um campo de concentração, de onde não poderá sair nunca. Também não terá acesso à universidade e não poderá escolher sua profissão. Essas são as pessoas que mais sofrem e normalmente as que mais tentam fugir de lá.
Na RPDC, os garotos chegam à maioridade aos 17 anos, quando o regime define a carreira que deverão seguir. Como funciona isso?
Todo cidadão homem é obrigado a trabalhar depois dos 17 anos. Para as mulheres, é opcional — embora a maioria trabalhe em fábricas ou na lavoura para complementar a renda familiar. Ao completar 17 anos, o jovem norte-coreano precisará escolher entre a carreira militar, a acadêmica e a profissional — nesse caso, estamos falando de uma pessoa com um songbun que permite a escolha. Se o sujeito optar pela área acadêmica, prestará uma prova e terá apenas três chances de passar; se não conseguir, precisará escolher entre a carreira militar e a profissional. As opções de trabalho são oferecidas pelo partido na região onde o cidadão mora; logo, a escolha não é tão livre assim. Se preferir atuar como um profissional, por exemplo, poderá aparecer um trabalho de motorista, de pintor ou em alguma fábrica. Mas poder escolher já é um privilégio para poucos, visto que cerca de 75% da população não tem essa alternativa. Nesses casos, os cidadãos são convocados para trabalhar naquilo de que sua vila precisa.
As ditaduras socialistas dizem prover todos os bens necessários para a subsistência de seus cidadãos. É assim que ocorre na RPDC?
Essa é a propaganda, mas na prática não é assim. Para quem é da elite e mora em Pyongyang, a vida é mais fácil, mas trata-se da cidade-vitrine da Coreia do Norte, feita para vender o regime ao resto do mundo. O sistema de saúde atende razoavelmente bem os cidadãos da capital. A cesta básica é simples, mas possui algo próximo do suficiente para eles. As roupas são oferecidas pelo Estado — normalmente, as vestimentas para uso no trabalho, ou seja, o uniforme. Mas essa não é a realidade de todo o país. Para quem não possui um alto songbun, a vida é muito mais difícil. Cerca de 45% da população está desnutrida. Em média, um norte-coreano é 7 centímetros mais baixo do que um sul-coreano. O sistema de saúde é extremamente precário para o atendimento mínimo. Faltam, por exemplo, curativos e termômetros. Não estamos nem falando de exames de raios X ou que dirá uma tomografia. A educação é universal, mas não podemos esquecer que parte fundamental do programa educacional é de doutrinação para total devoção ao regime e submissão à família Kim. Os cidadãos passam por longo processo de lavagem cerebral. É por isso que a educação é obrigatória e universal.
“Vários missionários já foram presos por tentar levar uma Bíblia para o país”
Como é o acesso à informação no país? Há televisão, rádio ou internet?
Toda a mídia é controlada pelo governo. Há três canais de TV que repetem a programação, que é propaganda política o tempo todo. Toda informação que chega aos norte-coreanos é meticulosamente manipulada e sempre com tom de propaganda. Eu assistia a TV e vi que tudo se parece com algo como nosso horário eleitoral gratuito. As músicas e os clipes musicais são sempre para engrandecer a família Kim e seus feitos. O jornal é estatal e até os jornais de províncias funcionam sob o controle do PTC. Nada pode ser publicado que não seja para exaltar o regime e a família Kim. O rádio também é estatal e a internet é uma intranet, ou seja, só funciona dentro do país. Eles não têm acesso livre à internet. Na intranet, encontram serviço de e-mail, classificados, lojas virtuais e notícias, mas tudo feito ou controlado pelo governo. É terminantemente proibido entrar na Coreia do Norte com qualquer livro ou revista que fale do país. Também é proibido qualquer material contrário ao socialismo. É terminantemente proibido portar uma Bíblia ou qualquer livro com símbolo religioso.
Qual é o nível de liberdade religiosa?
Assim como a liberdade de imprensa, a liberdade religiosa também está prevista na Constituição. No entanto, como já deu para perceber, não há liberdade alguma. A Constituição diz que as pessoas têm direito a professar sua fé, mas as reuniões religiosas e as construções de templos devem ser autorizadas pelo Estado. É um direito que é depois retirado facilmente com a burocracia. Em Pyongyang existem cinco igrejas cristãs, mas todas de fachada. Há centenas de relatos de perseguições, prisões e até execuções públicas de cristãos na região. Vários missionários já foram presos por tentar levar uma Bíblia para o país. A ONG Portas Abertas coloca a Coreia do Norte no topo do ranking dos países que mais reprimem o cristianismo. A única fé aceita no país é a Ideia Juche, uma filosofia criada por Kim Il-sung e que funciona como uma mistura de confucionismo e marxismo-leninismo. Juche significa algo como “autossuficiência” ou “o homem é o senhor de seu destino”. É um conceito centrado na submissão hierárquica e no coletivo, colocando Kim Il-sung praticamente como divindade. Cerca de 80% dos norte-coreanos se declaram ateus e adeptos da “filosofia” Juche.
Como os cidadãos escolhem seus representantes? Há direitos civis, jurídicos e políticos?
Teoricamente, o órgão de maior poder no país é a Assembleia Popular Suprema. Ela é composta de 687 deputados, eleitos por voto direto por todos os norte-coreanos. Essa Assembleia será responsável por designar e controlar o Executivo e o Judiciário, além de criar e revogar leis. Embora, numa primeira análise, o país esteja longe de uma república nos moldes liberais a que estamos acostumados, passa-se a impressão de ser algo legítimo e democrático. Porém, existem alguns detalhes que fazem toda a diferença. Para começar, o PTC — que é o partido único — escolhe os candidatos tanto para a Assembleia Popular Suprema como para a Assembleia Distrital e a Assembleia Provincial, cabendo ao povo apenas endossar a escolha. Não endossar o que foi decidido pelo partido pode ser considerado crime. O presidente do PTC é Kim Jong-un. Ele lidera o partido e monta a Assembleia Popular Suprema apenas com seus apoiadores, que, quando eleitos, vão delegar todos os poderes de que o Grande Líder precisa para mandar em todas as esferas do país. O sistema é constituído para total devoção e subordinação, e isso se reflete também no Judiciário. Um réu, quando tem o privilégio de ir a julgamento, não poderá questionar a decisão do juiz, não poderá apelar nem terá direito a recorrer. Seu advogado possui a única tarefa de informá-lo onde errou e qual crime cometeu; isso porque é considerado um crime questionar a decisão das autoridades. Não por acaso, os réus acabam confessando todos os seus supostos crimes, mesmo não os tendo cometido, e implorando por perdão, uma vez que o juiz detém a prerrogativa de perdoar se assim desejar. Essa é a única opção que os réus encontram para ter alguma chance de não ir para a prisão por crimes contra o Estado.
Como é a relação dos norte-coreanos com os grandes líderes do país?
É uma relação de devoção e submissão. Eles são doutrinados desde crianças a obedecer e nunca questionar as decisões dos grandes líderes. São ensinados que tudo o que eles fazem é para o bem do povo e que são pessoas com poderes sobre-humanos. O povo acredita realmente que os líderes possuem habilidades especiais e que o mundo inveja a Coreia do Norte por ter pessoas tão capacitadas para comandar o país. Mas, se a devoção e a submissão não vierem pela conversão, virão pela coação. Os norte-coreanos são obrigados a ter em casa as fotos de Kim Il-sung e Kim Jong-il em casa, a quem devem fazer reverências diárias de agradecimento por tudo o que têm. A casa, a comida, o trabalho, tudo eles devem à família Kim. Por isso, precisam ser eternamente gratos e devem dedicar a vida a defendê-los e honrá-los. Os líderes políticos assumiram um papel de divindade. Noivos, quando se casam, vão aos pés das estátuas de Kim Il-sung e Kim Jong-il para agradecer e “pedir a bênção”. Seus escritos são tão sagrados para os norte-coreanos como a Bíblia é para um cristão. Desonrar uma foto de um dos grandes líderes, além de enorme sinal de desrespeito, pode causar prisão e morte. É uma mistura de gratidão com medo.
Como é fazer turismo no país?
Estou acostumado a viajar para diversos lugares no mundo e sempre faço isso por conta própria, sem consultar agências ou pacotes. Andar à vontade pelos países e fazer o próprio roteiro é algo comum, mas não na Coreia do Norte. O roteiro, eu pude montar escolhendo diversas opções que me foram passadas pela agência de turismo estatal KITC por meio de uma agência chinesa que faz a intermediação. Todo o tour foi monitorado de perto pelos guias. Funciona assim: ao chegar a Pyongyang, você será recebido por dois guias e um motorista. Eles vão reter seu passaporte e você ficará com eles o tempo todo, 24 horas por dia. Eles ficarão no mesmo hotel que você — em quartos diferentes —, e você não poderá nem sair para andar nos arredores do hotel sem a autorização e o acompanhamento deles. Pode-se tirar fotos de quase tudo, mas é recomendável pedir autorização antes. Existem muitas regras de conduta que você deve seguir, e boa parte delas é devidamente orientada pela agência antes da viagem. No pacote, todos os custos estão inclusos: passeios, hospedagem e alimentação, mas é recomendável levar alguns euros a mais para dar “caixinhas” aos guias e comprar alguma lembrancinha. Você não terá acesso à moeda local e não será autorizado a sair do país com o dinheiro deles. Em suma, é uma viagem que foge muito do [padrão] tradicional, e um mero deslize poderá lhe custar a vida.
Engraçado que os bucéfalos de esquerda aqui no Brasil, que defendem esse regime e outros parecidos, como Venezuela e Cuba, nunca foram lá para ver o sofrimento do povo. Sempre que tiram férias, vão para a Europa ou Estados Unidos.
É o que eu sempre digo: comunismo para outros é refresco!
Excelente o artigo. Os esquerdopatas QI de ameba, que defendem esse país e qualquer regime socialista ou comunista, deveriam se mudar para lá o mais rápido possível e deixar o nosso país livre de sua presença nefasta.
Enquanto isso,PCdoB,PSOL,PT,PDT e outros grupelhos de idiotas,defendem a “democracia” da Coreia do Norte…Inclusive um tal deputado leonel brizola do psol , homenageia Kim Jong-un na Assembleia do RJ…É esta porcaria que o stf atende quando esperneia contra o governo…E são estas teses que alguns togados do stf defendem…É uma piada.
É esse é o tipo de “democracia e liberdade” que defendem Boulos, Lula, Dirceu e outros personagens da mesma escória!
Pobre povo coreano !
E ainda há quem queira provar deste veneno.
Pra ter uma ideia melhor de como as coisas funcionam lá (e em outros países-vitimas) leiam “Viagem aos confins do comunismo”, do Theodore Dalrymple.
Muito interessante! Aqui na América do Sul temos a Venezuela que está quase lá, a Argentina também!
Pra quem gosta de m* é um prato cheio. Pobres coreanos.
O MST e o MTST são braços deste regime ?
Sugiro a leitura do livro Fuga do Campo 14, que mostra como é a vida para quem não teve a sorte de ter parentes que apoiaram o regime no passado, e não tem um bom songbun, como bem mostrou o autor do texto.
Eu li, é muito chocante.
que terrível.
Parabéns por sua coragem.
Quanta igualdade e fraternidade!
O sonho de Boulos para o Brazil
Parabéns excelente matéria, belo trabalho do historiador Leonardo Lopes.
Uma espécie de zoológico humano, como Cuba. Digamos que a Coreia do Norte seja um zoológico convencional e Cuba um parque, onde os animais andam soltos. Mas as regras básicas, controle total da administração e proibição de deixar o local, são as mesmas
Boa entrevista – keep up the good work!
É o sonho da nossa extrema esquerda.
Boa tarde Marcelo, mas eles sendo os líderes a casta superior.
Devemos compartilhar, particularmente com os jovens que flertam com o socialismo, essa interessante experiência do historiador. Parabéns à Revista e ao Edilson Salgueiro pela matéria.