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Edição 46

The Line: a cidade, reinventada

A Arábia Saudita está propondo uma utopia urbana em escala jamais vista

Dagomir Marquezi
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Cidades são concêntricas por natureza. Desde o início das civilizações, elas nasceram a partir de um ponto e “incharam”. São Paulo é um exemplo típico. Começou em 1554 com um colégio jesuíta, descrito pelo padre José de Anchieta como “uma paupérrima e estreitíssima casinha”. Ao redor do Pátio do Colégio, formaram-se habitações, vias, serviços, bairros e o que era uma casinha estreita virou um aglomerado metropolitano de 39 municípios, 21,5 milhões de habitantes e 7.946 quilômetros quadrados, maior que 33 países do mundo.

Cidades são expansões caóticas de uma “semente”. Mesmo uma cidade planejada como Brasília foi construída ao redor da burocracia federal e se expandiu naturalmente em subúrbios e cidades-satélites. Nova York nasceu de um posto de comércio de peles na Ilha de Manhattan. Londres surgiu de um posto avançado do Império Romano às margens do Rio Tâmisa. Moscou começou como um ponto de encontro de dois nobres russos. Tóquio já foi apenas uma aldeia de pescadores.

O desafio a essa lógica milenar surgiu agora de um lugar surpreendente: a Arábia Saudita. O governo do príncipe Mohammed bin Salman (mais conhecido como MBS) anunciou a construção de um conceito urbano completamente novo: The Line, a cidade-linha. The Line quebra o princípio da cidade concêntrica. Seus habitantes deverão habitar módulos ligados por uma linha reta de 170 quilômetros. Por que a reta? Por ser o caminho mais próximo entre dois pontos. O projeto foi pensado por urbanistas e arquitetos de vários países. O início das obras está anunciado para os próximos meses.

The Line foi desde o início bombardeada pela imprensa mais à esquerda. É difícil mesmo defender uma iniciativa que vem de um governo despótico, de um país onde as mulheres lutam pelos mais básicos direitos e o homossexualismo é proibido por lei. Na Arábia Saudita, a rigidez religiosa gerou Osama bin Laden e 15 dos 19 terroristas que participaram do atentado de 11 de setembro de 2001.

O jornalista Robert F. Worth, do The New York Times, lembrou que esse é o país onde “clérigos barbudos dominam as cortes e os condenados são rotineiramente decapitados pela espada em público”. Worth acusa o príncipe Mohammed bin Salman de disfarçar o atraso do país com medidas espetaculares e inúteis. E lembra que MBS é acusado de ter mandado matar e esquartejar o jornalista Jamal Khashoggi no consulado saudita em Istambul.

The Line seria então apenas um delírio bilionário destinado a apagar as mazelas da realeza saudita? Apenas um blefe para arrecadar dinheiro de investidores incautos?

Pode ser. Mas chega o momento de separar uma grande ideia de suas implicações políticas. Ninguém gosta de lembrar que o conceito original do nosso querido Volkswagen sedã foi encomendado pelo próprio Adolf Hitler. E nem por isso deixou de ser uma grande sacada, que sobreviveu por décadas ao regime nazista e se espalhou pelo mundo como um carro resistente e barato. O nazismo se foi. O Fusca ficou.

Máquinas produtoras de nuvens para fazer chover e até uma lua artificial

The Line pretende acomodar uma comunidade cosmopolita de até 1 milhão de habitantes na região de Tabuk, no noroeste do país, próximo à Jordânia, Israel e Egito. A linha reta atravessaria quatro ecossistemas: a costa do Mar Vermelho, o deserto da Península Arábica, as montanhas de Jabal al-Lawz (onde chega a nevar no inverno) e o vale rochoso mais a leste.

Segundo o plano, a linha de 170 quilômetros vai ter basicamente três “andares”. Na superfície, ficam as residências, jardins, escolas, lojas, tudo a cinco minutos de caminhada. Nenhum veículo, nenhuma fábrica, nenhum fio pendurado, nada que polua. Ou seja, um grande calçadão. No primeiro “subsolo”, localizam-se os serviços e a infraestrutura da cidade (numa ideia que parece inspirada pela Disney World). No segundo subsolo (“a espinha dorsal”), estão os meios de transporte, incluindo um veículo ainda não definido ultrarrápido, capaz de atravessar a cidade de ponta a ponta em 20 minutos.

Um projeto desse tamanho não se faz por caridade. A Arábia Saudita está observando a rápida ascensão dos veículos elétricos. Sabe que sua única grande riqueza, o petróleo, está valendo cada vez menos no mercado internacional. (Chegou a US$ 140 o barril em 2008 e hoje está valendo ao redor de US$ 50.) Precisa urgentemente diversificar suas fontes de renda. Segundo a revista Architectural Digest, o governo saudita espera gerar 380 mil empregos com The Line e acrescentar US$ 48 bilhões ao PIB.

A Linha é apenas parte de um plano maior: o Neom — neologismo que junta o grego (“novo”) com o árabe (“futuro”). Com o Neom, o país pretende criar uma versão local do Vale do Silício no deserto, incorporando cidades, centros de pesquisa, institutos de educação e atrações turísticas. Entre estas, uma versão do Jurassic Park com dinossauros-robôs. E também um centro de gastronomia onde, ao contrário do resto do país, bebidas alcoólicas serão autorizadas. Estão previstos táxis voadores, máquinas produtoras de nuvens para fazer chover no deserto, e até uma lua artificial gigante movida por drones.

O Wall Street Journal teve acesso a um relatório confidencial de 2.300 páginas que menciona entre outras coisas um centro de pesquisa genética (o Projeto Apollo), visando a “um novo modo de vida do nascimento à morte, em busca de mutações genéticas para incrementar a força humana e sua inteligência”. Parece a origem do Capitão América, 80 anos depois da ficção em quadrinhos.

Neom seria mais que uma cidade, quase uma espécie de Estado semi-independente, buscando pontos de interesse comum com os vizinhos Egito e Israel. Os sauditas pretendem criar uma ponte sobre o Mar Vermelho ligando a cidade ao território egípcio e atrair empresas israelenses de alta tecnologia. Os dois países ainda não se manifestaram oficialmente a respeito. Mas uma iniciativa de colaboração pacífica no Oriente Médio é sempre mais que bem-vinda.

Segundo os planos, todas as fontes de energia de Neom serão renováveis, à base de sol, vento e hidrogênio. Qualquer forma de atividade econômica está sujeita a emissão zero de carbono. O objetivo é preservar 95% dos sistemas ecológicos. Está previsto também o uso massivo de inteligência artificial em toda a comunidade, o que faria a Arábia Saudita ficar um pouco parecida com a Estônia.

Existem queixas sobre o projeto. A tribo Huwaitat teria de ser realocada do deserto. Vinte mil pessoas teriam de se mudar até o ano que vem. (O governo promete que elas serão “generosamente” recompensadas.) Muitos sauditas consideram que, antes de pensar num projeto de US$ 500 bilhões, MBS deveria dar um trato nas cidades atuais, consideradas sujas e malconservadas. Pegou mal também o fato de o próprio príncipe ser o garoto-propaganda do vídeo promocional do projeto.

YouTube video

Esse detalhe esconde uma ironia. Se a fala de MBS tivesse saído da boca de uma Greta Thunberg ou de um Leonardo DiCaprio, seria aplaudida de pé na reunião de Davos ou pela plateia do Oscar. (“Em 2050, 1 bilhão de pessoas serão desalojadas por causa do efeito do aumento do gás carbônico e do nível do mar. Noventa por cento das pessoas respiram ar poluído. Por que devemos sacrificar a saúde em prol do desenvolvimento? Por quetemos de perder 1 milhão de pessoas por ano em acidentes de trânsito?”) Tendo sido do príncipe, a declaração foi desprezada como oportunista.

Com esse espetacular projeto utópico, o governo saudita do príncipe Mohammed bin Salman deveria então ser perdoado de seus erros e crimes? Claro que não. Mas vamos ver o copo meio cheio.

Os sauditas estão direcionando seus esforços para um ousado futuro de soluções a alguns dos problemas mais urgentes do mundo. O projeto é marcado pelo uso de tecnologia limpa e pelo bem-estar de seus habitantes. Está ajudando a tirar a Arábia Saudita de seu isolamento medieval, chamando (e pagando muito bem) especialistas de vários países. Com isso, torna o país fechado mais cosmopolita, menos fanático e mais livre. Apesar da evidente má vontade de parte da imprensa internacional (como The New York Times, The Economist e The Guardian), a Arábia Saudita está propondo uma utopia urbana em escala jamais vista. Aparentemente está pedindo ajuda internacional para ser modernizada.

Só para efeito de comparação, pense no regime do vizinho Irã, cuja maior atividade é financiar terroristas. E que tem como “projeto utópico” jogar bombas nucleares em Israel.

9 comentários
  1. Paulo Ricardo Martin
    Paulo Ricardo Martin

    Detalhe curioso: os Huwaitat eram a tribo liderada por Auda Abu Tayi, interpretado por Anthony Quinn no filme “Lawrence da Arábia”.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Texto interessante.

  3. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Esse tipo de projeto me chama a atenção mais pela sua engenhosidade do que propriamente pelo objetivo a que se destina. Imagino que será uma chatice e tanto morar num lugar desses. Fui!!!

  4. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    A idéia é incrível, mas haja dinheiro incluvise para o funcionamento diário.

  5. Roberta Hoffmann
    Roberta Hoffmann

    Pra um pais que nao completou nem 1 ano do inicio de emissao de vistos para turismo, ficamos no aguardo pra ver como eles pretendem “abrir” o pais para os estrangeiros. Confesso que fico na torcida para uma melhor atenuacao das normas desse pais.

  6. Adriano Carvalho
    Adriano Carvalho

    Essa Neom, caso venha a se concretizar, irá certamente atrair pessoas de todo o mundo que desempenhem tarefas que podem ser executadas à distância. Seriam profissionais tais como os escritores, projetistas, arquitetos, professores (dos diversos cursos on-line que têm proliferado), “youtubers”, médicos (tele-medicina em expansão) e por aí vai. A questão é: a Arábia Saudita tem se mantido como um regime autocrático estável nas últimas décadas, mas até quando? Não penso ser descabido pensar em algum tipo de revolução de cunho islâmico/populista abalando aquele reino em um futuro talvez mais próximo do que se imagina e… os habitantes da tal Neom estariam de pronto sujeitos à sharia (a aplicação das leis do Corão à vida civil)! A própria existência dessa nova cidade dentro de uma nação islâmica, com regras próprias que desafiam a religião local, poderia ser um catalizador desse movimento revolucionário. Em resumo: cautela e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

  7. João Antônio Dohms
    João Antônio Dohms

    Santos inexistem tratando se de gestores de países.
    Lá ele mandou matar um jornalista .
    Cá morrem centenas de pessoas todos os dias em hospitais pela precariedade dos mesmos .
    Como disse um idiota do setor esportivo “não se ganha copas de futebol com hospitais “
    Então o mesmo lixo de lá ,temos do lado de cá .
    Mas projetos de cidades sem poluição são muito bem vindos !
    Quem sabe seja o Start para que outros países sigam o exemplo e repensem suas cidades!
    Outro dia vi uma reportagem aonde um morador nova-iorquino se referia a sua cidade como lixo é impossível de lá viver : palavras dele !
    Essa mesma cidade é glamourização pura todos os dias em filmes ,matérias de jornalistas e por aí vai.
    Esse pode ser o início de um novo momento mundial no nascimento de cidades sem poluição !

  8. Lucio Sattamini
    Lucio Sattamini

    Li o artigo na diagonal, e de cara rechaço a imbecilidade esquerdista, especialmente qdo em inglês e atrás de uma bem cuidada barba e ocrinhos redondos. Espanhóis planejaram todas suas cidades na América, ao passo que as dos portugueses cresceram ao vai da valsa. Essas últimas tem mais calor humano, tipo a soteropolitana e a fiel e heróica São Sebastião do Rio de Janeiro. São Paulo também tem seu charme, com aquela impossibilidade de dar volta ao quarteirão.

    1. Claudia Aguiar de Siqueira
      Claudia Aguiar de Siqueira

      Espantoso e alentador – principalmente como um possível indício de alguma modernização num recanto do mundo ainda medieval, como bem lembrou o Dagomir.

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