Um bom retrato do Irã de hoje está fazendo sucesso no serviço de streaming Apple TV: a série israelense Tehran. Conta a história de uma espiã/hacker do Mossad infiltrada na capital do país para uma missão quase impossível. Para reproduzir bem a realidade, os criadores da série passaram dois anos entrevistando membros da colônia de refugiados iranianos de origem judaica que se estabeleceram em Israel.
O país mostrado em Tehran mostra uma população permanentemente assustada, “cancelada” por um regime de inspiração medieval. Que isso aconteça no atrasado Afeganistão dos talibãs, já é um escândalo. Que tenha sido imposto aos sofisticados e cultos iranianos, é desesperador.
O Irã é desde seu início um caldeirão de culturas e relacionamentos étnicos. A antiga civilização persa produziu uma das culturas mais ricas de toda a História. Era uma potência regional. No reinado de Xerxes I, a Pérsia dominava a Babilônia e o Egito e entrou numa lendária guerra com a Grécia.
Uma nova fase começou com as invasões árabes e a conversão ao islamismo no século 7. A fusão das culturas árabe e persa gerou uma riqueza ecumênica na arte, na literatura e na arquitetura. A religião muçulmana vivia sua “Era de Ouro”, longe dessa caricatura obscurantista de hoje. A antiga Pérsia era generosa em ciências, medicina, filosofia e tecnologia.
Veio a decadência. O país ficou fracionado e se tornou objeto de disputa entre as potências europeias, especialmente no século 19. Em 1926 virou uma monarquia independente, com o “xá” (soberano) Reza Pahlavi. Não era exatamente um democrata. Mas colocou o país no rumo de reformas radicais. Quebrou o poder retrógrado do tribalismo, construiu uma rede de ferrovias, emancipou as mulheres e as desabrigou de usar véus. Isso, em 1935, quando o nome do país foi trocado para Irã. Reza Pahlavi abriu a primeira universidade do país, construiu escolas e hospitais.
O país foi ocupado por britânicos e soviéticos durante a 2ª Guerra. O primeiro xá foi substituído por seu filho, Mohammad Reza Pahlavi. Quando a ocupação acabou, o Irã conheceu um período inédito de liberdade política. Os partidos se multiplicavam. Um deles, a Frente Nacional (uma mistura de nacionalistas, clérigos e esquerdistas moderados), chegou à chefia de governo em 1951 na figura do primeiro-ministro Mohammad Mossadegh.
As empresas petrolíferas, que garantiam os recursos do país, foram estatizadas, e as empresas estrangeiras, expulsas. Dois anos depois, um golpe de Estado, parcialmente financiado pela CIA e apoiado pelos britânicos, derrubou Mossadegh.
O xá Mohammad Reza Pahlavi seria marcado pelos livros (marxistas) de história apenas como “um tirano a serviço do imperialismo”. Mas foi sob seu governo, durante a década de 1960, que o Irã conheceu uma prosperidade econômica nunca vista. E uma liberdade de costumes impensável nos dias de hoje. Fotos no Irã de 1963 mostram mulheres vestidas segundo a moda de Paris e Londres. Era Teerã durante a chamada Revolução Branca. “Branca” no sentido de “pacífica”, sem derramamento de sangue.
O programa dessa revolução incluía reforma agrária, direito à propriedade, ampliação da rede de transportes, geração de energia, direito de voto e inclusão das mulheres no mercado de trabalho, política externa independente, educação intensiva, modernização urbana, busca de prosperidade para as camadas mais pobres. E foi referendada nas urnas: 5,6 milhões votaram pelas reformas. Quatro mil, contra elas.
No mesmo ano de 1963, um professor de filosofia chamado Ruhollah Musavi Khomeini fez uma ruidosa manifestação contra essa onda de modernização em sua madraça (escola de doutrinação religiosa) na cidade de Qom. A polícia invadiu a escola com violência, matou alguns dos alunos e prendeu Khomeini. Depois ele se exilou na Turquia, no Iraque e finalmente na França. Seus estudos teóricos foram direcionados para a criação de um futuro Estado islâmico.
A crise do petróleo de 1973 atingiu os iranianos em cheio. As reformas precisavam de mais tempo. Seus inimigos, não. Formou-se uma aliança bizarra de clérigos muçulmanos xiitas ultraconservadores com intelectuais de esquerda. Como líder desse movimento foi escolhido o aiatolá Khomeini.
O Irã vivia em 1976 uma vida “normal” e cosmopolita como pode ser conferido nestas cenas da época:
Mohammad Reza Pahlavi revelou sua fragilidade política ao dar carta branca à notoriamente brutal polícia política Savak. Estudantes radicais das madraças se uniram a jovens desempregados e imigrantes das regiões mais atrasadas do país em manifestações cada vez maiores e reprimidas com violência. Em outubro de 1978, os funcionários públicos e petroleiros entraram em greve, paralisando o país de uma vez.
Muito doente, o xá Pahlavi deixou o país em janeiro de 1979, alegando que estava “de férias”. Era o fim da Revolução Branca. Às nove e meia da manhã do dia 1º de fevereiro, o Boeing 747 da Air France pousou no aeroporto internacional de Teerã vindo de Paris. Assim que pisou no solo iraniano, após quinze anos de exílio, Khomeini deixou muito claro aos fanáticos que o receberam no aeroporto o tipo de regime que havia concebido: “Nossa vitória final chegará quando todos os estrangeiros deixarem o país. Imploro a Alá que corte as mãos de todos os estrangeiros malvados e de seus ajudantes”.
Declarou o Irã uma “república islâmica” e se autodenominou “líder supremo”. Rapidamente chutou do poder quem o tinha apoiado — intelectuais, esquerdistas e nacionalistas. O Ato de Proteção à Família (que garantia o direito das mulheres) foi imediatamente revogado. Homossexualismo passou a ser punido com a morte. O povo que apoiou Khomeini para se livrar da Savak agora tinha de enfrentar algo bem pior — a Guarda Revolucionária, uma milícia brutal que cresceu até se tornar um Estado dentro do Estado.
Em 4 de novembro de 1979, o mundo assistiu chocado quando jovens extremistas, apoiados pelo governo, quebraram todas as mais básicas leis de convivência internacional e invadiram a embaixada dos Estados Unidos em Teerã. Por 444 dias mantiveram 66 funcionários em condições precárias, usando de violência e tortura. (O filme Argo, dirigido por Ben Affleck, trata dessa crise.) O então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, tentou uma operação de resgate que terminou de forma desastrosa.
Logo no início de 1980 a nova República Islâmica do Irã se meteu numa guerra fútil contra o Iraque. Durou oito anos e matou cerca de 750 mil iranianos. O governo estabeleceu uma ditadura tão restrita no país que até a música se tornou ilegal. Se o cidadão realizar “crimes graves” como fazer voar um drone sem autorização ou escrever um blog criticando o regime poderá ser levado para a prisão de Evin, ao norte da capital.
A prisão tem o irônico apelido de “Universidade Evin” por causa do grande número de intelectuais, professores e escritores ali encarcerados. É considerada uma das mais brutais penitenciárias do mundo. Lá ocorrem enforcamentos em massa, estupros, injeção forçada de heroína, isolamento total do resto do mundo, choques elétricos, corte de alimentação, imundície generalizada, trabalho forçado, ausência de banheiros, água contaminada e espancamentos sem nenhum motivo.
Em 1989, Khomeini morreu e foi substituído por outro “líder supremo”, Ali Khamenei. Os principais aliados atuais do governo iraniano são Rússia, Venezuela, Síria e Catar. A China também está entrando no grupo. O regime já teve em outros tempos um grande amigo na América Latina além de Hugo Chávez e Nicolás Maduro: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula chegou a visitar Teerã e ser visitado pelo ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad em 2009.
Essa aproximação prosseguiu com menos entusiasmo durante o governo de Dilma Rousseff. Dilma se incomodou com o fato de uma mulher iraniana ter sido condenada a morrer apedrejada. A relação ficou ainda mais azeda em abril de 2012, quando um diplomata do Irã quase foi linchado ao abusar publicamente de meninas entre 9 e 14 anos numa piscina em Brasília.
Para as facções do regime, um dia sem encrenca é um dia perdido
A ditadura de Teerã quer honrar a tradição de Xerxes projetando um poderio regional. Mas não o faz por meio do comércio e de uma diplomacia agressiva, como a China. O Irã prefere financiar milícias e grupos terroristas espalhados pelo Oriente Médio. Patrocina (segundo a BBC) o Kataeb Hezbollah no Iraque, o Hezbollah no Líbano, o Hamas na Faixa de Gaza, a Yihad Islâmica no Egito, os houtis no Iêmen e uma rede de milícias na Síria.
Agora o governo dos aiatolás está pensando em um novo passo — sua arma nuclear. Se a Coreia do Norte conseguiu, por que não o Irã? Israel já declarou que não vai deixar isso acontecer. Afinal, o regime de Teerã é abertamente antissemita e não esconde o desejo de destruir o que eles chamam de “entidade sionista”. (Israel já tem seu arsenal nuclear, mas não o reconhece oficialmente).
Os israelenses sabem que podem apenas atrasar o mais possível a obtenção dessa arma. Mas não evitar que ela seja fabricada. Israel tem planos emergenciais para bombardear o complexo de enriquecimento nuclear de Natanz, 300 quilômetros ao sul de Teerã. Em 2010, as centrífugas de Natanz foram paralisadas por um vírus mutante chamado Stuxnet. De vez em quando uma violenta explosão acontece “acidentalmente” em Natanz. E alguns de seus principais cientistas morrem em atentados. O programa atrasa. Mas continua.
Em 2013, Hassan Rouhani substituiu Mahmoud Ahmadinejad como presidente do Irã. Revelou-se mais conciliador que seu antecessor. Pressionado por crescentes manifestações de rua contra a incompetência do governo, Rouhani aceitou uma negociação com o então presidente norte-americano Barack Obama. Foi o primeiro contato direto entre os dois países desde 1979.
Em abril de 2015, o Irã entrou num acordo com um grupo que reunia EUA, China, França, Alemanha e Reino Unido. Entregaria 98% de seu urânio altamente enriquecido e permitiria o monitoramento de seu programa nuclear. Em troca, as sanções foram suspensas. O acordo ficou conhecido como JCPOA (Plano de Ação Compreensivo Conjunto).
Em 2018, o presidente Donald Trump declarou que achava o plano muito favorável ao Irã e anunciou a retirada dos Estados Unidos. Decretou sanções ao regime iraniano e a quem negociasse com ele. Entre outras acusações, o então secretário de Estado Mike Pompeo disse que o regime do Irã estava estreitando as relações com a Al-Qaeda, a ponto de permitir que a organização tivesse um QG dentro do país. A acusação não foi provada, mas a ligação do Irã com os terroristas de Osama bin Laden e Ayman al-Zawahiri é oficialmente conhecida desde o atentado de 11 de setembro de 2001.
Com a retirada dos EUA do acordo JCPOA, a linha dura do regime iraniano está mostrando as garras. Ficaram ainda mais indignados quando Trump deu sinal verde para o assassinato (em 2 de janeiro) de Qassen Soleimani. Ele era o comandante das forças Quds — o braço da Guarda Revolucionária encarregado de apoiar grupos armados no exterior. Juraram vingança.
Joe Biden já declarou que pretende retornar ao acordo JCPOA, com algumas modificações. O Irã respondeu que só volta se as sanções forem retiradas. E anunciou que estava enriquecendo seu urânio a um grau de 20% de pureza — meio caminho para a bomba atômica. (O acordo permite que esse grau chegue a, no máximo, 3,67%.)
A primeira ação militar do governo Biden foi um ataque a uma milícia ligada aos iranianos na região síria de Abu Kamal, fronteiriça ao Iraque. O novo presidente democrata aparentemente não agradou a ninguém. O ataque foi considerado brando demais. E Biden teria deixado a vice-presidente Kamala Harris “furiosa” ao avisar ao presidente russo Vladimir Putin do ataque antes dela.
A tensão deverá aumentar bastante em toda a área de influência do Irã antes da possibilidade de algum acordo. As facções internas do regime precisam demostrar umas às outras que são ainda mais duras com os inimigos. Um dia sem encrenca é um dia perdido. A República Islâmica não dá o menor sinal de que pode cair. Se conseguir uma bomba atômica, aí se tornará praticamente intocável.
Nessa infelicidade permanente, é o caso de perguntar: o que aconteceu com a inquieta, inovadora e cosmopolita sociedade iraniana? Ela está lá, fazendo o que pode para viver uma vida “normal” antes que algum barbudo da Guarda Revolucionária bata à porta. Fecha as janelas, ouve músicas “impuras” com fones de ouvido.
A série Tehran mostra um lado oculto da vida atual no Irã: um alojamento de estudantes, artistas e hackers de roupas coloridas e cabelos soltos, onde o homossexualismo é tratado com normalidade. Às vezes os garotos descolam algum lugar discreto no campo para uma rave de música eletrônica com cerveja e ecstasy.
Tristeza, esse fanatismo,..sao homens imaturos, frustrados, que se escondem atrás de autoridade
Fantástico, Dagomir!
Excelente artigo!
Ótimo artigo. Parabéns Dagomir Marquezi.
Mais uma vez Dagomir Marquezi mostra a que veio, enriquecendo a revista Oeste – e por tabela seus leitores – com sua prosa diversificada, informativa, inteligente, culta, atraente e crítica. Um privilégio poder contar com a categoria de seu texto.
Excelente artigo. Coitados dos persas e dos seus vizinhos, a verdade é essa.
Excelente! Revisão impecável.
Impecável. Bomba neles e que Ala nos perdoe.
Mais um artigo impecável, Dagomir! Adoro a sua abordagem histórica dos fatos, que muito contribui para o enriquecimento cultural do leitor.
Concordo plenamente.