Fico feliz que setores da esquerda considerem a crise de liberdade de expressão tão engraçada. Ou a “crise de liberdade de expressão”, como eles sempre dizem, com as aspas sarcásticas, que sinalizam seu ceticismo em relação à ideia de que há, de fato, um problema de censura em universidades e em outros espaços da sociedade. E façam piada com qualquer um que considere injusto o no platform — a ação de “remover a plataforma” de alguém que tenha compartilhado informações e opiniões consideradas perigosas ou inaceitáveis. Não é hilário?
É hilário quando ativistas urinam na porta da sala de uma feminista em uma universidade porque não gostam das críticas que ela faz a políticas de identidade de gênero. É hilário quando um avô deficiente da classe operária é demitido de seu emprego na rede britânica de supermercados Asda por postar em suas redes sociais uma piada do comediante escocês Billy Connolly sobre o Islã. É hilário quando uma ministra do gabinete paralelo do Partido dos Trabalhadores britânico perde o emprego porque ousou mencionar preocupações sobre o aliciamento e o estupro de garotas da classe operária em diversas partes da Inglaterra. É hilário quando J. K. Rowling é bombardeada com mensagens que dizem “vá se foder, sua vadia” e “vou matar você” por escrever um ensaio totalmente não preconceituoso sobre questões trans. É tudo tão engraçado. “Liberdade de expressão”, hahaha.
Não se engane: quando a elite midiática e cultural zomba da ideia de uma crise na liberdade de expressão, quando insiste que a cultura do cancelamento não existe, é a realidade que ela está negando. É a violência, a demonização e, sim, a censura que eles afirmam não existir. Na verdade, é ainda pior. Quem nega a censura não questiona apenas a realidade desses ataques sinistros à liberdade de expressão das pessoas — afinal, todos podemos ver os tuítes com os xingamentos de “vadia” e “puta”, e todos podemos ver e sentir o cheiro de urina na porta do escritório de alguém, então sabemos que isso é real. Não, eles também justificam implicitamente essas cruzadas assustadoras contra uma discussão aberta. Ao se recusarem a descrever esses ataques como ataques à liberdade de expressão, essas pessoas os normalizam, os autorizam.
Os negacionistas da censura ridicularizam a ideia de que a liberdade de expressão esteja sob ataque porque não se importam com as pessoas cuja liberdade de expressão está sendo atacada. Eles apoiam essa censura — das más feministas, dos velhos que fazem piada sobre o Islã, de pessoas que são direitistas demais —, e é por isso que se recusam a condenar essa censura. Simples assim.
A discussão sobre liberdade nos meses recentes tem sido frustrante. Nenhum dos lados da chamada guerra cultural consegue ver o que está em jogo. Não enxergam que a crise de liberdade de expressão no século 21 é realmente muito séria e tem o potencial de comprometer algo essencial para o desenvolvimento humano.
Obviamente, os negacionistas da censura, aqueles esquerdistas declarados que afirmam não existir crise de liberdade de expressão nas universidades ou em nenhum lugar, não podem ser levados a sério. É tamanha sua cegueira ideológica para o problema da censura contemporânea que eles se tornaram impermeáveis até a fatos e informações. Sei, por experiência própria, que você pode oferecer a essas pessoas montes de exemplos de indivíduos “polêmicos” sendo banidos, presos e até agredidos fisicamente por suas opiniões políticas e morais, e não faz diferença. “Não, não existe crise de liberdade de expressão”, elas dirão.
Você pode contar do pastor cristão que foi preso em Manchester e mantido preso por 19 horas por afirmar que a homossexualidade é pecado, e vão dizer: “Não existe crise de liberdade de expressão”. Pode contar que as forças policiais do Reino Unido estão prendendo nove pessoas por dia por dizer coisas ofensivas on-line, e dirão: “Ainda não é uma crise de liberdade de expressão”. Pode lembrá-los de que o governo escocês está trabalhando neste momento em uma legislação que tornaria ilegal dizer certas coisas na própria casa, e vão dizer: “Não vejo nenhuma crise de liberdade de expressão”. Pode apresentar matérias sobre um homem hoje enfrentar seis meses de encarceramento por fazer uma piada sobre o capitão Tom Moore no Twitter, e dirão: “Não existe crise de liberdade de expressão”. Pode explicar que funcionários da União Nacional dos Estudantes do Reino Unido mantêm uma lista negra real de organizações e indivíduos que nunca deveriam ter tido uma “plataforma” para se manifestar — incluindo não só o Partido Nacional Britânico, mas também a jornalista Julie Bindel e o ex-parlamentar George Galloway —, e vão dizer: “Não existe crise. Isso não é censura!”
Depois de um tempo, não faz mais sentido. É um negacionismo clássico, com o qual é difícil dialogar. Além do mais, esses negadores da censura deliberadamente subestimam quanta censura prévia ocorre. Dirão que “apenas” umas dezenas de pessoas tiveram seu convite para falar numa universidade retirado, ignorando o fato de que muitos indivíduos nunca chegam a ser convidados porque associações de estudantes sabem que eles nunca passariam pelas checagens burocráticas do reitor e de diretores de departamentos dos câmpus. Dizer “existe apenas uma pequena quantidade de convites desfeitos nas universidades do Reino Unido” é como dizer que na Hollywood nos anos 1950 “nenhum comunista foi demitido de nenhum elenco” — sim, porque eles nunca chegaram a ser escalados; eram banidos previamente.
Uma sociedade em que você pode ser demitido por criticar o Islã não é uma sociedade livre
Do outro lado, o do governo, também não é o que se espera. Longe disso. Se o governo quiser aprovar leis que multariam universidades que desrespeitem a liberdade de expressão e enviar um Defensor da Liberdade para assegurar o debate aberto, não tenho problema com isso. (Não acho que vá funcionar, mas isso é outra questão.) Mas, ao mesmo tempo, o governo mantém pilhas de leis sobre discurso de ódio e ordem pública que ativamente limitam o que as pessoas podem dizer.
Se esse governo levasse a liberdade de expressão a sério, não apenas balançaria o dedo para as figuras sem dúvida autoritárias entre os millennials e a geração Z que cuidam da política estudantil. Também acabaria com as leis que significam que as pessoas podem ser presas por fazer piadas on-line. Ele reavaliaria a legislação sobre “intolerância religiosa” e o impacto assustador que isso pode ter na dramaturgia e na comédia. Ele derrubaria a seção 127 do Communications Act 2003, que transforma em infração ser “extremamente ofensivo” na internet. Ele eliminaria o Prevent, o pacote de medidas “antirradicalismo” que, na prática, impede manifestações de livre pensar. Você não pode esperar ser levado a sério sobre a questão do no platform na universidade quando o próprio Estado legalmente silencia pessoas da sociedade.
Essa talvez seja a coisa mais frustrante sobre o debate da liberdade de expressão: ele se concentrou demais no problema da censura na universidade. O lado antiwoke da guerra cultural ficou obcecado em instâncias individuais de acadêmicos ou militantes perdendo suas “plataformas” no câmpus, muitas vezes negligenciando uma cultura de conformismo mais ampla e abrangente que perpassa toda a sociedade. Cultura imposta tanto pela legislação quanto pela pressão social, que alimentou níveis deprimentes de autocensura. Assim, inviabiliza-se o debate honesto, aberto e experimental indispensável a uma sociedade que pretenda se desenvolver.
É tangível a pressão cultural para que nos adequemos às novas ortodoxias e passemos a silenciar nosso inconformismo. Às vezes é insuportável. Uma sociedade em que você pode ser demitido por criticar o Islã não é uma sociedade livre. Uma sociedade em que você pode ser preso por fazer uma piada de mau gosto ou participar de um grito de torcida de futebol não é uma sociedade livre. Uma sociedade em que mulheres recebem ameaças de estupro e agressão por criticar a autoidentificação de gênero não é uma sociedade livre. Uma sociedade em que você pode ser perseguido por dias por se recusar a se ajoelhar diante do Black Lives Matter não é uma sociedade livre. Uma sociedade em que as pessoas silenciam as próprias opiniões sobre questões como imigração e pessoas trans — como pesquisas recentes sugerem estar acontecendo — não é uma sociedade livre.
Todas essas coisas, e outras, indicam uma crise de liberdade de expressão muito real. Indicam uma sociedade em que ameaças e leis são usadas para restringir o que as pessoas podem pensar e dizer, e em que, por consequência, o medo fala mais alto que a expressão pessoal. Uma sociedade em que muitas pessoas preferem ficar em silêncio a ser chamadas de “filha da puta” e “vadia” por exércitos de macarthistas modernos, como vimos acontecer com J.K. Rowling.
É inegável que vivemos numa sociedade em que a liberdade de expressão está em crise. Quer sejamos censurados pelo governo, por guardiões autoproclamados do pensamento politicamente correto, por multidões ou por nós mesmos, estamos sendo censurados. E isso importa. Importa porque, tanto no nível individual quanto no social, a liberdade de expressão é essencial para o desenvolvimento humano.
A liberdade de expressão dá poder real ao indivíduo. Ela nos libera não só para expressar nossas opiniões — que, claro, são muito importantes —, mas também para ouvir as opiniões de todos e usar nossa musculatura mental e moral para decidir por conta própria se o que estão dizendo está certo ou errado. A liberdade de expressão é a pedra fundamental de nossa autonomia moral. Ela exige nos levar a sério, colocar as coisas na balança, fazer julgamentos morais e corrigir erros quando os encontramos. A censura, em contraste, nos infantiliza, enfraquece nossos músculos mentais e morais ao nos convidar a depender do julgamento de nossos superiores, daqueles que vão decidir por nós o que podemos ver, o que podemos ler e o que devemos pensar. Como disse o poeta John Milton (1608-1674), ao “deixar de exercitar e enfraquecer nossas habilidades”, a censura representa um “desencorajamento de todo o aprendizado”. “Nossa fé e nosso conhecimento florescem ao ser exercitados, assim como nossos braços e pernas.”
E a liberdade de expressão também é boa para a sociedade. Ela é a condição para a verdadeira discussão pública, o meio pelo qual podemos decidir coletivamente os termos comuns e chegar a algo próximo da verdade. Além disso, a liberdade de expressão cria o espaço para pensamentos ousados, para ideias experimentais, excentricidades e, por consequência, progresso. Quase todas as ideias que banalizamos hoje — que a escravidão é ruim, que a Terra não é o centro do sistema solar, que as mulheres são iguais aos homens — começaram como blasfêmias. Foi a liberdade de expressão, em especial a liberdade de expressão de almas corajosas, que permitiu, com o tempo, que essas blasfêmias fossem aceitas como verdades. Nas palavras do dramaturgo George Bernard Shaw (1856-1950), “todas as grandes verdades começam como blasfêmias”.
A censura tem um único propósito: proteger ortodoxias, salvaguardar o status quo, preservar o poder. Qualquer um que esteja interessado em desafiar essas coisas deve defender a liberdade de expressão — nas universidades, no local de trabalho, na sociedade, na arte, na cultura. Aqui entra Bernard Shaw de novo: “Toda censura existe para impedir que qualquer pessoa desafie conceitos e instituições existentes. Todo progresso é iniciado quando se desafiam conceitos e executado pela substituição das instituições existentes. Consequentemente, a primeira condição para o progresso é a remoção da censura”.
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“O novo macarthismo”
Brendan O’Neill é editor da Spiked e apresentador do podcast da Spiked, The Brendan O’Neill Show. Seu perfil no Instagram é: @burntoakboy
Texto primoroso. Parabéns Brendan O’Neill.
Brava gente brasileira! Se os ingleses ainda comem o pão que o diabo amassou no barro da censura, imagina a estrada que ainda percorreremos.
Quanto maior for a incapacidade de dialogar e defender suas idéias, maior a necessidade de cancelar pessoas com idéias diferentes e convincentes..
Basta ver o que aconteceu com a PARLER, banida da Aplle Store.
Fabuloso, é o que há muito sentimos aqui no pais na pior espécie de censura, aquela em que um Poder que se considera Supremo, censura os demais e ainda os ofende chamando-os de antidemocratas, e uma imprensa tradicional que o apoia para poder propagar fakes e ofensas graves aos poderes Executivo e Legislativo amparadas pela “liberdade de imprensa”. Atualmente já observamos alguns excelentes jornalistas com receio de serem cancelados ou investigados.
Aos 75 anos, ex tucano desde a fundação do partido ate 2019 e por enquanto bolsonarista, confesso que nunca assisti esse autoritarismo do nosso Supremo Poder e dos tradicionais e decadentes meios de comunicação que tudo podem e pasmem, dizem que nossa democracia esta em risco. Dá para entender?
Eu costumava ficar perplexo ao ver artistas e comunidade acadêmica defendendo censura, discurso uniforme… uma vez que são atividades de criação e inovação que claramente precisam do discurso divergente e de ideias novas.
Mas convivo nestes dois ambientes e vejo que são inseguros e que se manifestam em bando e que se auto vigiam para que nem uma vírgula saia fora do discurso autorizado.
Maravilhoso, até compartilhei no Facebook terra que não gosto de visitar onde tem intolerantes d+
O texto é maravilhoso! Difícil é conseguir conversar sobre este assunto com a maioria das pessoas. Eu, particularmente, já me retirei das redes sociais porque cansei de apanhar, ser cancelada e taxada de genocida e negacionista. Não se pode falar nada, duvidar de nada, negar nada!!!! Dizer que o mundo está chato já ficou sem importância!! O futuro é tenebroso.
Excelente texto!
Excelente texto! Por mais artigos como este na Revista Oeste!
É lamentável testemunhar o ataque constante que a liberdade de expressao sofre… E o pior é ver o silêncio de muitos ante a isto! Acredito que existam pessoas que pensam ser imunes a este tipo de violência contra direitos do indivíduo. Só espero que estas despertem antes que seja tarde demais.