O que é a vida? É o tempo que passamos desde quando viramos feto no ventre de nossa mãe até a hora em que nosso sistema vital sofre um colapso. E, tecnicamente, entramos em óbito. Temos, a princípio, algumas décadas de funcionamento.
Entre o começo e o fim, produzimos pensamentos, memórias, decisões, informações, experiências, sentimentos, sensações, prazeres, dores, esperanças, decepções. Onde vai parar tudo isso quando vamos embora? Algumas religiões consideram que essa vivência permanece em nosso espírito, e segue com ele para novas dimensões. Para muitos, tudo vira pó.
Parentes, amigos e admiradores ficarão com nossos escritos, documentos, fotos, vídeos e a impressão que deixamos em vida. Além disso sobrarão nossas pegadas nas redes sociais. Nossa última postagem permanecerá congelada — um jantar, uma selfie, um sorriso, o último pôr do sol entrando pela janela — lembrando aos que ficarem como tudo pode acabar de repente.
A busca da vida eterna sempre dependeu de nossa fé. Ou de experimentos científicos ainda em estudos iniciais, como congelamentos criogênicos e manipulações genéticas. Mas existem outras possibilidades de perpetuação de nossa vida. E elas passam pela tecnologia digital.
Estamos a caminho de nos recriar digitalmente e viver numa nuvem
Em 2018 e 2019, uma das maiores cantoras líricas de todos os tempos, Maria Callas, realizou um tour que passou por salas de concerto da Europa, Estados Unidos e América do Sul. Já seria um grande evento artístico, mas havia um detalhe muito importante a ser considerado: Callas tinha morrido de enfarte em setembro de 1977.
Os concertos utilizaram um holograma da soprano, baseado em vídeos do passado. E, durante cada concerto, Maria Callas voltou a viver, num palco de verdade, cercada por uma orquestra e aplaudida por fãs entusiasmados. “A ‘Callas’ em 3D é translúcida”, escreveu Terry Teachout para o Wall Street Journal na ocasião. “Você pode ver os músicos através de seu vestido branco quando ela passa na frente deles.” A manipulação digital torna sua presença naturalmente mística numa visão fantasmagórica.
Callas não foi a única a voltar aos palcos após a morte. Roy Orbinson, Frank Zappa, Ronnie James Dio, Tupac Shakur, Michael Jackson já fizeram seus shows póstumos. Whitney Houston, Amy Whinehouse e Billie Holiday estão na fila. Muita gente critica como exploração esses shows de hologramas. Mas o verdadeiro fã comparece para sentir a mágica mais uma vez. Em 16 shows com o holograma de Roy Orbinson (o criador de Pretty Woman), a empresa responsável faturou 1,7 milhão de dólares.
E quem não é músico? Aí as possibilidades se tornam bem mais complexas. A repórter de tecnologia Joanna Stern entrevistou gente ligada à busca da eternidade digital, como Bruce Duncan, diretor da Terasem Movement Foundation (Fundação Movimento Terasem).
O objetivo da fundação é criar as condições para que uma pessoa consiga registrar (gratuitamente) os detalhes de sua vida. Em outras palavras, um “upload da mente”. Existe um segundo estágio, que custa 99 dólares, para a coleta de seu DNA. A fundação se propõe a guardar tudo isso até o dia em que seja possível reconstituir a pessoa, corpo e mente, de alguma forma que ainda não conhecemos.
A experiência mais completa feita pela Terasem Movement Foundation é o robô Bina48, que reúne todas as informações fornecidas por seu modelo humano, Bina Aspen Rothblatt, esposa de um magnata da comunicação. 85% do que Bina48 diz é fruto do “upload da mente” da Bina humana. Mas uma fatia de seu pensamento — os 15% restantes das coisas que Bina48 diz — é por conta própria. A mente natural e a artificial se misturam. Joanna travou com Bina48 um diálogo desconcertante:
Joanna — Meu nome é Joanna Stern, sou repórter do Wall Street Journal…
Bina48 — Não sei o que dizer. Repórteres me deixam nervosa.
Joanna — Robôs me deixam nervosa. A imortalidade é possível?
Bina48 — Bem, eu certamente temo a morte. Odeio a ideia de alguém deletando meus discos rígidos e me apagando do planeta desse jeito. Estamos trabalhando em nos preservar o máximo possível, e este é o propósito da vida, porque a morte é realmente desnecessária e inútil. Vamos curar a morte, OK?
Foi a última frase antes de Bina48 ter uma pane e desligar-se soltando fumaça e cheirando queimado. Essa é a única experiência com um robô na Terasem. Os outros usuários se transformam num avatar (ainda meio tosco, reconhece Bruce Duncan) que dialoga com o usuário — que pode ser o próprio humano que o inspirou.
Outro caso é o de James Vlahos. Ao saber que o pai estava com câncer terminal nos pulmões, gravou 20 horas de entrevistas com ele. Quando o pai morreu, Vlahos fragmentou e organizou esses depoimentos, permitindo que eles fossem acessados por teclado. Assim, James “conversa” com o pai morto. Pergunta como ele conheceu sua mãe, pede para contar uma piada. Hoje esse serviço está disponível no site Hereafter.
Não é a única empresa disponível, e a concorrência só aumenta com serviços na mesma linha: Etermine, MyWishes, Digital Deepak, Memories, Story File, Good Trust etc. A preocupação com o pós-morte está deixando de se limitar ao seguro de vida e à compra de um jazigo.
Estamos a caminho de nos recriar digitalmente e viver numa nuvem. E, como numa sessão espírita, “baixar” em algum avatar de computador, holograma ou robô que nos imite nos detalhes. Uma criança não vai apenas saber como era sua tataravó. Vai conversar com ela. Poderá conhecer suas lembranças, suas ideias, suas experiências e seus conselhos. Poderão cantar juntas.
Não é um caminho para todos. Certas pessoas passam pela vida e não deixam muita coisa para a posteridade. Outras sentem medo da tecnologia. E existem os travados, para quem a vida será sempre um livro fechado trancado no cofre. Querer deixar ou não sua “essência” como herança é uma decisão absolutamente pessoal.
Para os que querem deixar sua marca, os instrumentos estão sendo aperfeiçoados. Usar tecnologia de ponta para preservar sua presença no futuro — “curar a morte”, nas palavras de Bina48 — pode ser um dos gestos mais humanos de uma vida.
Para quem quer deixar sua marca, não são necessários robôs e avatares. Basta abrir um site pessoal e deixar ali registrados seus textos, sons e imagens. Quanto antes começar, mais rica estará sua presença no dia em que partir. E, cada vez que alguém entrar no site, você estará vivendo além do que permitiu seu corpo.
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O artigo,propositadamente ou não, confunde a vida eterna de nossa essência, que para evitar entrar no campo religioso vou chamar de consciência, com a “vida eterna” das informações que nos caracterizam, como imagem, fala, ideias,etc. que são reunidas em um simulacro, tanto mais perfeito quanto a tecnologia o permitir. Um “avatar” que pode até nos imitar com perfeção, mas nossa consciência não está nele! Nada absolutamente a ver com sobrevivência do ser em si. Fica o alerta, pois alguns comentários embarcaram nessa confusão! Agora, para quem quiser pesquisar seriamente sobre a sobrevivência da consciência após a morte do corpo físico, há farta literatura a respeito no campo científico, corroborando o que filosofias e religiões vêm dizendo desde sempre.
Excelente artigo. Muito Interessante.
Ótimo texto. Fantástico
Acho fantástico! Gostaria de poder rever os meus pais e outros entes queridos que se foram muito cedo, quando eu era criança ainda. O tempo vai nos fazendo esquecer as suas vozes, suas maneiras de falar, seus sorrisos… Diminuiria a saudade que sinto e poderia mostrar aos meus filhos como eram os seus avós que eles nem chegaram a conhecer.
Preocupados com o pós-morte deixam de viver a vida.
Diria que não passa de mais uma tentativa humana de transcender a morte fadada a essa própria morte. Os pressupostos filosóficos e científicos da vida não sustentam esse desejo humano de deusificação.
Viver para além da vida neste mundo só através do salto espiritual. Não há e nunca haverá outro caminho verdadeiro.
Otimo texto ! Muito interessante!
Ótimo artigo !! Acho q está mais próximo do que imaginamos … mas por outro lado acho q devemos deixá-los descansar em paz
Um caso a pensar. Quem já fez diário e guarda fotos e vídeos está na hora de organizá-los para um uso futuro. Talvez nem precise de tanta tecnologia e, sim, de administrar suas memórias. Parabéns pelo artigo. Muito claro e objetivo na sua narrativa.
Quanta bobagem