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Artigo Constantino: Invasão dos Marcianos
Edição 74

Os marcianos estão entre nós

Estamos num tempo estranho em que não se busca solução de conflitos. Se investe no conflito. Duvida? Então dá uma olhada

Guilherme Fiuza
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A invasão dos marcianos narrada por Orson Welles mais de 80 anos atrás levou ao pânico parte da população norte-americana. O ator iniciou a transmissão de rádio informando que iria interpretar uma peça de teatro. Não adiantou. Parte das pessoas não ouviu o alerta porque ligou o rádio depois. Outra parte ouviu, mas acreditou assim mesmo que a Terra estava sendo tomada pelas criaturas esverdeadas do planeta vizinho. A vontade de acreditar é uma das forças mais brutas da natureza.

Hoje a humanidade está querendo acreditar numa escalada inexorável de conflito. Não só os conflitos de sempre — entre partidos, religiões, supostas ideologias, etc. A nova onda é todo mundo se engalfinhando por alguma coisa com todo mundo. Colegas, vizinhos, casais, amigos, irmãos. Meu reino por um mal-entendido.

O panorama pandemônico ajuda, mas está longe de explicar tudo. Olha em volta que você vai ver. Já há pelo menos um problemão atravessando tudo e fazendo um estrago dos grandes, mas não basta. É preciso discutir até a morte se um atleta olímpico pode desistir. Se a desistência nesse caso é respeito aos limites humanos ou concessão à fraqueza. E lá vêm as hordas com gosto de sangue na boca dispostas ao duelo sem fim. O que seria uma questão legítima já nasce com os códigos da dicotomia burra. Escolhe um lado, enche as mãos de pedras e cai dentro.

Estamos num tempo estranho em que não se busca solução de conflitos. Se investe no conflito. Duvida? Então dá uma olhada.

O importante é ter meia dúzia na plateia do Coliseu imaginário

Sabe aquele cara que falava de Proust, Baudelaire e só dava um refresco para explicar o que Vivaldi quis dizer com a inusitada dobra de compasso? Pois é. Ele hoje está por aí comentando a última do Renan Calheiros — e caprichando no veneno da flecha destinada à tribo inimiga. Não importa que seja uma flecha digital de mentirinha e que nem esteja muito claro quem é o inimigo. O importante é ter meia dúzia na plateia do Coliseu imaginário e ao menos uma alma penada passando recibo. Ele já terá colhido seu crachá de guerreiro.

Quem é maior: o Flamengo ou o Corinthians? Esquece. Mesmo no terreno dos duelos mais bobos e divertidos, onde até as cores da camisa poderiam ser evocadas cega e apaixonadamente como prova incontestável de virtude, a coisa desandou. Agora o negócio é dizer que teve um torcedor do adversário que ofendeu uma minoria, o que será rebatido com uma acusação contra o jogador do rival que não teve empatia na rede social. Mas o futebol não era bom justamente porque você podia brigar com alguém para provar que as cores do seu time são melhores que as do outro, e ponto final?

Era, mas isso acabou. A graça agora é plantar conflito de forma que você possa chegar a uma problematização ética — a ponto de alegar que o seu caráter é superior ao do seu oponente, cujas falhas você apontará implacavelmente.

Ou visto de outra forma: a discussão ética foi rebaixada a uma briga de torcida.

Aí de repente você vê num canto qualquer uma nota dizendo que o grupo Boca Livre se separou por causa da vacina. Você não tem culpa se isso te der a sensação de que estão rompendo até o que já estava rompido. Parece que um integrante achava que a picada era a salvação e outro achava que era a perdição. Aí acabou o amor. Impressionante. Com toda certeza essas bocas já foram mais livres.

O negócio é sair no tapa. Mas não se esqueça: é preciso um pretexto filosófico. Nada de mandar o marido dormir na sala porque está roncando alto. Expulse-o da cama chocada com o fato de que alguém possa dormir tão profundamente sabendo que as baleias estão ameaçadas de extinção. E se ele disser que não sabia, ameace-o com o divórcio. Você não pode viver ao lado de um alienado. E se ele te perguntar por que você vive há anos ao lado de um alienado, responda que é porque você é tolerante e inclusiva, mas tudo tem limite.

Rompa com o seu irmão porque ele se diz de esquerda. Rompa com a sua irmã porque ela se diz de direita. Vocês vivem do mesmo jeito, no mesmo lugar, sob as mesmas regras, têm até gostos parecidos, amigos em comum, conviveram até outro dia em harmonia e nenhum de vocês dois jamais disse que queria se mandar para um lugar mais afeito à sua suposta filosofia política. Mas agora vocês se descobriram cão e gato. Só falta escolherem deuses diferentes para adorar detestar um ao outro.

Não há mais dúvidas. Os marcianos estão entre nós. É crer para ver.

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Leia também “Puxando o tapete da democracia”

34 comentários
  1. Suzana Campos Linke
    Suzana Campos Linke

    Adorei o texto, mas faço uma ressalva. Este momento é decisivo, é tirar ou não a esquerda e suas ideias catastróficas do horizonte de cena (aliás, eles próprios se identificam como esquerda, a direita é que tem essa vergonha). Não temos de construir o muro, mas se for erguido teremos que escolher um lado, não vejo lugar pra meio termo NESTE MOMENTO. Estamos mais pra uma guerra do que para um jogo de futebol, e não dá pra ficar confraternizando com quem defende o inimigo.

  2. CARLOS ALBERTO GOMES MARQUES
    CARLOS ALBERTO GOMES MARQUES

    É isso aí Fiúza.
    Separar, para então, dominar.
    Pobre rebanho perdido, caminhando na bruma em direção ao penhasco, insatisfeito e solitário, indiferente, odiento e cada dia mais desprovido de amor.
    Sai do coma pessoal, alegria, alegria!
    Sai da mídia e vai pra vida, xô egoísmo, menos briga, mais abraço, mais sorriso, leve a vida leve!

  3. JOSE JOSUE NUNES
    JOSE JOSUE NUNES

    Bonde mais

  4. Alexandre Chamma
    Alexandre Chamma

    O mundo está chato… as pessoas estão chatas. Simples assim!!!!

  5. Roberto Fakir
    Roberto Fakir

    A CNN pediu para o Renan Calheiros antecipar a conclusão do relatório circense por falta de audiência na emissora. A emissora tem compromisso com Aziz de passar ao vivo todas as seções da palhaçada. Isso está prejudicando a audiência dessa emissora apesar da CNN nem ter audiência.

  6. Lídia Cavalcante Fernandes Bispo
    Lídia Cavalcante Fernandes Bispo

    Mundo chato esse, chatíssimo…

  7. Paulo Giorgi
    Paulo Giorgi

    Perfeito! Sublime! Parabéns e obrigado!

  8. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo artigo. Parabéns Fiuza.

  9. Angela Brandão Seger Angelix
    Angela Brandão Seger Angelix

    Excelente texto do Fiuza, como habitual. Parabéns à Oeste por manter esse time de cronistas independentes.

    1. Paulo Giorgi
      Paulo Giorgi

      Perfeito! Sublime! Parabéns e obrigado!i

  10. JHONATAN PAIVA SURDINI VIEIRA NOGUEIRA
    JHONATAN PAIVA SURDINI VIEIRA NOGUEIRA

    Fiuza, sempre 10

  11. Elinaldo soares silva
    Elinaldo soares silva

    estamos perdidos,o mal nao tem limites e bem se acovarda

  12. Valfredo Novais Silva
    Valfredo Novais Silva

    E até onde isso vai? Quando a geração nascida nos anos 60/70 sair de cena, receio que assistiremos à barbárie.

  13. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Ótimo texto.

  14. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Hoje nada me interessa, a não ser a posição política de cada um

  15. Eduardo Antônio Santos Soares
    Eduardo Antônio Santos Soares

    Divide et Impera

  16. Roberto Fakir
    Roberto Fakir

    Então Fiuza, lendo sua coluna imaginei o marido da jornalista da CNN Clarissa, dormindo com os filhos de 1 e 3 anos, com a mulher la no Afegsnistao, talvez sendo estuprada todo dia pelos Talibans e falando que parecem amigáveis, o que estaria pensando sobre extinção das baleias.

  17. Ricardo de Oliveira Mancebo
    Ricardo de Oliveira Mancebo

    Interessante como já nos comentários se vê a efetiva confirmação da tese… vou aliviar… um bom domingo à todos por aí !

  18. Francisco Antonio Gonçalves Pereira
    Francisco Antonio Gonçalves Pereira

    Perfeito. Parabéns.

  19. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    admiro sua capacidade de escrever Fiuza. Excelente artigo

  20. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    muito bom Fiuza

  21. Edmar Jorge de Almeida
    Edmar Jorge de Almeida

    A ceifa do joio só será eficaz quando este tiver se desenvolvido tanto que não deixe nenhuma dúvida sobre quem é quem nesse cenário de transição.
    A separação está em pleno curso Luiz Antônio!
    Ainda bem que temos Fiuza, Guzzo, Augusto Nunes para não nos enceguecerem com as versões estapafúrdias do dia a dia!
    Já criaram até fundamento filosófico materialista, com o conceito de “pós-verdade”, em cuja ambiência tudo é relativo, nos quais os fatos valem menos que narrativas!

  22. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Vc tem escrito com metáforas e ironias platônicas… eh eh eh
    Pois aqui no sertão profundo eu e a Sandra estamos assistindo algo que não esperávamos assistir: Gênesis, na Record. Aproveitamos o máximo, pois a leitura da Bíblia nos últimos anos foi no sentido de reunir a família aos domingos e ler um salmo ou um versículo. Já tivemos oportunidade de nos aprofundar um pouco mais décadas atrás. A novela está nos devolvendo a reflexão numa outra idade durante uma pandemia mundial e o mundo cheio de problemas, incêndios, guerras, fome, terremotos, secas, enchentes, ditaduras, politicagem, corrupção, etc. etc. Assim, é possível tirar uma conclusão: tudo que acontece hoje é bíblico. Tá lá, principalmente no Velho Testamento, acredite ou não. Brigas familiares, irmão matando irmão, ou matando o pai ou a mãe, luta pelo poder das tribos, ódio, traições, homem com várias mulheres, pragas, etc. etc. Se olharmos em volta, tudo isto acontece diariamente no mundo: homicídios, feminicídios, assassinatos, racismo, xenofobia, exploração, corrupção, povo sem direitos a não ser a Fé. E deverá continuar assim, pois ainda não entendemos como a imunização de rebanho funciona num mundo materialista e desorganizado em várias parte do planeta. O processo civilizatório pode passar por Abraão, Moisés, Jesus, César, Átila, Gengis Khan, Marx, Adam Smith, Shakespeare, Sócrates, Dom Pedro I, Bento Gonçalves, Mário Quintana, Sérgio Reis, Napoleão, Hitler, Lula, Fidel, artistas, jornalistas, cientistas, operários, prostitutas, escoteiros, pastores, padres, militares, professores, ambientalistas e uma gama enorme de gente que acha que não tem problema preparar o caldeirão do inferno para que não pensa como a gente. Ui, escrevi demais, pensei demais e não sei como terminar, com …;;;,,,,,””'”””””, ?????, !!!!, kkk, ou pqpstf. Enfim, a poesia não enche a barriga de ninguém, mas ajuda a sustentar a luta.

  23. Roberto Fakir
    Roberto Fakir

    Me lembro quando o Lula era só mais um corintiano vagabundo e ia ao estádio assistir o jogo contra o Palmeiras e não saia briga. Mas ele, Lula, depois de 1989 ficou entediado com a tranquilidade, e criou as torcidas organizadas que começaram a brigar com as torcidas adversárias. Mas ainda estava muito monótono e Lula não se conteve e criou além da gaviões, a torcida “comando do carandiru”. O Palmeiras, São Paulo e Santos acharam legal e também fizeram o mesmo. Aí além de brigarem e matarem os rivais, essas torcidas começaram a brigar e se matarem entre si. O canibalismo é típico do ser humano. E alguns “seres humanos” nem deveriam ter nascido. Acho que nem os marcianos se arriscarão aqui no Brasil.

  24. Antonio Ruotolo
    Antonio Ruotolo

    Pena que o texto lúcido é criativo do Fiuza esteja maculado por desrespeito à regência verbal: “se investe”? O se fora de lugar é carioquês, não português. Mas o texto do Fiuza é muito bem para permitir este deslize.

  25. Marco Antonio de Moura Vales
    Marco Antonio de Moura Vales

    Este é o Fiúza, o maior de todos! Deixa eu sair correndo, antes que a claque do imitador de focas me veja aqui.

  26. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Acho engraçada toda essa valentia através do computador. Esses valentões na vida real são covardes incapazes de enxergar seus.proprios defeitos e fraquezas e irem a luta parando de se esconder atrás de desculpas e bandeiras fajutas.

  27. Alexandre Cury
    Alexandre Cury

    Perfeito, dicotomia burra, polaridade idiota, as pessoas brigando e o estado de direito indo pro brejo. Um ditadura de toga e as pessoas brigando por ser de direita ou esquerda. E assim o Brasil tupiniquim segue afundando um pouqinho mais a cada dia. Feliz de ler artigos nessa revista que nos dão um sopro de esperança.

    1. Teresa Guzzo
      Teresa Guzzo

      Difícil é constatar que a liberdade de expressão,de pensamentos e idéias estão ameaçadas.Muitas vezes o simples posicionamento sobre um assunto causa um terremoto entre amigos e família.Bem ,se não podemos mais conversar com liberdade o que nos resta?os marcianos estão confusos.

  28. Érico Borowsky
    Érico Borowsky

    Muito bom, Fiuza !

  29. Márcia de Oliveira Sant Ana
    Márcia de Oliveira Sant Ana

    Fiuza obrigou-me à uma reflexão, se estes conflitos de certa forma são bons ou ruins?
    O que está acontecendo hoje no Brasil, são claros sinais de que o povo está muito mais participativo e menos cordeiro do que ontem, onde falar sobre política era assunto ignorado pela grande maioria dos brasileiros.
    Hoje questiona-se e cobra-se mais dos políticos. Aprendemos à debater nossas idéias até dentro de casa, com nossos familiares e amigos. Até aí, tudo está bem. O ruim é quando saímos do que é saudável e criamos um debate dúbio e sem fim. O ruim é desrespeitar as diferentes posições e partir para um ataque que envolve muito mais que assuntos políticos. No fim, nós nos matamos moralmente, perdemos família, amigos, vida social e para os políticos, tudo continua na mesma. Eles nem ficam sabendo o que houve com nossa vida social por conta disso.

    1. Hipocrisia é Desvio de Caráter
      Hipocrisia é Desvio de Caráter

      O ruim é ser proibido de ter posição.

    2. Debora Balsemao Oss
      Debora Balsemao Oss

      Pode ser isso mesmo, Marcia… mas, aproveitando a tua reflexão, será que tudo isso não seria algo meio Animal Farm, na verdade? Concordo que os políticos até têm a sua participação, mas penso que estão tão reféns daqueles “mandamentos”, que a cada leitura, aparece uma ‘pequena alteração’?

      Concordo que questionamos mais, cobramos mais, participamos mais,… mas será que não seria o caso de, já que estamos menos cordeiros e mais participativos, darmos aquele passo adiante e mostrarmos que as lições têm sido aprendidas? Acho que agora o passo adiante é mostrar a QUEM NÃO FOI ELEITO que as coisas evoluíram, e assim continuarão…

      1. Gustavo H R Costa
        Gustavo H R Costa

        Isso mesmo Débora! Quem não foi eleito não fala pelo povo! E queremos voto auditável para garantir.

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