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Edição 82

A cidadania corre perigo

Eis, em suma, o quadro atual na América: uma elite sem apego pela pátria, um tribalismo recrudescente, um Estado endividado e um povo mais e mais dependente dele

Rodrigo Constantino
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Quem garante uma república estável é a classe média independente, já que os mais pobres são suscetíveis às promessas populistas dos governantes e as elites se mostram desapegadas dos valores patrióticos. A tese não é nova, existe desde Aristóteles ao menos, mas o historiador californiano Victor Davis Hanson retornou a ela para diagnosticar a morte da cidadania em seu novo livro, The Dying Citizen, sobre como as elites progressistas, o tribalismo e o globalismo estão destruindo a ideia da América.

A cidadania não é um direito; ela requer trabalho. No entanto, muitos cidadãos de repúblicas, antigas e modernas, passam a acreditar que merecem direitos sem assumir responsabilidades — e não se preocupam como, por que nem de quem herdaram seus privilégios. Os cidadãos não são meros residentes, propensos a receber mais do que dar. Eles não são povos tribais que se unem por aparência ou laços de sangue. Eles não são camponeses sob o controle dos ricos. Nem é sua primeira lealdade a uma comunidade mundial abstrata.

O cidadão precisa abandonar suas lealdades tribais mais antigas para aceitar os valores que definem a república. Uma vez que alguém deve mais lealdade a seu primo do que a um concidadão, uma república constitucional não pode existir. Para enfraquecer uma república, não é necessário quebrar as leis; às vezes cuspir em seus costumes e tradições faz tanto mal quanto a marginalidade. E o tecido social que une os cidadãos está sempre a uma geração de ser perdido, como alertava Reagan. Historicamente falando, muitas repúblicas desmoronaram dentro de uma década apenas.

Um sinal de esclerose democrática é a perda de confiança na integridade do voto — a ponto de ser visto como um exercício fútil, em vez de um baluarte da cidadania. Apressados podem apontar o dedo para Trump, mas é bom lembrar que o livro anterior de Hanson foi o best-seller The Case for Trump. Para Hanson, quem depreciou a confiança no sistema eleitoral foi o Partido Democrata, ao pregar mudanças radicais sob o pretexto da pandemia. Milhões passaram a desconfiar da eleição.

A natureza do governo consensual em suas origens foi uma autocrítica com reavaliações constantes. Quando essa introspecção perpétua cessa, o mesmo acontece com a cidadania. Hoje temos visto a interdição do debate em diversas esferas, com a esquerda monopolizando a fala em nome da ciência, rotulando de negacionista ou fascista quem ousa questionar o establishment. Daí a importância de uma classe média independente, capaz de remar contra a maré determinada pelas elites.

Uma cidade-estado governada pelas classes médias é superior não apenas às oligarquias, mas também aos povos tribais, muitas vezes nômades e sem assentamentos permanentes, que definem sua existência política por laços pré-civilizacionais de sangue e casamento. Tradicionalmente, os defensores filosóficos das classes médias argumentam que a maioria dos proprietários moderados tanto incentiva a autossuficiência, a responsabilidade e a estabilidade social, que faltam aos pobres, quanto restringe a capacidade dos poderosos e grupos de interesses especiais de exercerem influência excessiva no Estado.

Hanson traz dados preocupantes do empobrecimento da classe média americana, com crescente nível de dívida para custear universidades e consumo, além da casa hipotecada cada vez menos acessível. A dependência de benesses estatais é cada vez maior, enquanto o endividamento de quase US$ 30 trilhões do governo, associado a uma política monetária frouxa do Federal Reserve, aniquilou qualquer rendimento sobre a poupança.

A classe média acaba espremida entre uma massa tribal e a elite cosmopolita. A independência econômica é prerrogativa da cidadania. A maioria da população não pode exercer nem proteger seus direitos de expressão e comportamento irrestritos sem a segurança material que apenas a autossuficiência econômica e a autonomia da classe média garantem.

Em vez de ocidentalizar o planeta, a globalização talvez acabe internacionalizando a América

Sem uma classe média, a sociedade se bifurca, fragmenta-se em uma situação moderna de mestres e camponeses. Nessa situação, a função do governo não é garantir a liberdade, mas subsidiar os pobres para evitar a revolução e isentar os ricos, que retribuem enriquecendo e empoderando as classes governantes. Uma tecnocracia cada vez mais blindada do povo concentra um poder arbitrário assustador, legislando por conta própria sem o devido mecanismo de freios e contrapesos e sem a responsabilidade por suas decisões.

Para o autor, estamos chegando a um ponto semelhante ao surgimento de um exterminador robótico fictício que destrói seus criadores humanos, já que a elite burocrática acredita que pode e deve se antecipar a qualquer autoridade eleita que a considere perigosa. Se o cidadão não puder eleger funcionários para auditar, controlar ou remover os não eleitos, ele perdeu seu poder soberano.

A globalização permitiu acesso a produtos mais baratos e mercados amplos, mas trouxe um custo elevado para a classe média, que precisa competir com chineses em condições de trabalho quase escravo e imigrantes ilegais em seu quintal. Em vez de ocidentalizar o planeta, a globalização talvez acabe internacionalizando a América. A realidade atual é que milhões de americanos, por meio de dívidas, desemprego e salários em declínio, estão agora se tornando nossas próprias versões urbanas e suburbanas atualizadas do campesinato rural europeu do passado.

Existem consequências reais para os trabalhadores de classe média quando seus salários se ossificam, os custos da faculdade ou da educação profissional para seus filhos disparam e eles ficam com dívidas para a vida toda para ter uma casa. Muitos veem a criação de filhos e até mesmo o casamento como abstrações enfadonhas. As justificativas sociais para a diminuição dessas instituições tradicionalmente mais conservadoras decorrem das realidades econômicas que as tornam mais difíceis, segundo Hanson. A média dos anos 1960 de 2,3 filhos por família diminuiu para 1,9 atualmente. Esse número está bem abaixo da taxa de 2,1 necessária para manter o tamanho atual da população.

Diante desse cenário, populistas da esquerda e da direita que prometem atacar o “sistema” ganham força eleitoral, como Bernie Sanders e Donald Trump. Alguns americanos, rejeitando o tribalismo, preferem ser rebatizados como “cidadãos do mundo”, como se tal abstração fosse algo moderno. Estranhamente, essa ideia remonta ao utopismo socrático e nunca ofereceu nenhum projeto crível de um Estado transnacional viável.

Eis, em suma, o quadro atual na América: uma elite sem apego pela pátria, um tribalismo recrudescente, um Estado endividado e um povo mais e mais dependente dele, com uma burocracia sem voto controlando enorme poder arbitrário. A classe média vai desaparecendo nesse ambiente, como aquela formada por cidadãos autônomos, economicamente independentes, dispostos a lutar para fazer valer seus direitos republicanos. Não é dos quadros mais alvissareiros do mundo, mas tampouco é uma situação irreversível. Que a cidadania corre perigo, porém, e que seu resgate não será trivial nem da noite para o dia, isso está claro para quem observa com atenção os dados disponíveis. Daí a importância do alerta do historiador.

Leia também “O principal problema”

25 comentários
  1. Soniascf
    Soniascf

    Sem outro modo de comunicação, informo que no site da Jovem Pan a chamada para o seu curso sobre Pensadores da Liberdade está bloqueado ou censurado ou seja lá o que for. Ao clic vem mensagem de erro. Tentei várias vezes.

  2. Gustavo H R Costa
    Gustavo H R Costa

    Consta, cada vez melhor, clareza e concisão!

    Queria encomendar uma análise da entrevista do Arcebispo Carlo Maria Vigano com o jornalista americano Robert Moynihan. Eu fiquei chocado com as revelações sobre a cisão no Vaticano.

  3. JHONATAN PAIVA SURDINI VIEIRA NOGUEIRA
    JHONATAN PAIVA SURDINI VIEIRA NOGUEIRA

    Mandando sempre muito bem ,Consta!

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    A China conseguiu realizar o feito, difícil agora é controlar

  5. Lygia Leite
    Lygia Leite

    Estados Desunidos da América. Será que o Brasil vai se dividir também? E se, de que lado fica o agro? Talvez não seja uma má idéia….

  6. Paulo Roberto Vieira Camargo
    Paulo Roberto Vieira Camargo

    Muito enriquecedora a advertência de Hanson a respeito do destino da América. Apenas ampliaria o campo de destruição para todos os países entregues a governos irresponsáveis de discursos de cunho socialista.

  7. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Texto muito bom. Só discordo quando o Constantino chama o Trump de populista de direita. Ele não é populista, só queira o melhor para o país dele e seus cidadãos.

  8. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Texto muito bom. S

  9. Paulo Antonio Neder
    Paulo Antonio Neder

    Existe uma clara orquestração mundial para escravizar os povos num só governo, com o aval de quase todos os próceres do cenário mundial, inclusive daqueles que deveriam lutar pela nossa liberdade. Vigilância para não sermos dominados. Parabéns Rodrigo.

  10. Lúcia Maria Lebre
    Lúcia Maria Lebre

    Só discordo quando você fala que Trump é um líder populista, quando, a meu ver, semente ele tem força e patriotismo para conseguir colocar a América nos trilhos, novamente.

    1. ANA MARIA GRECO
      ANA MARIA GRECO

      Texto excelente e a descrição de um cenário assustador.

  11. wilder felix soares
    wilder felix soares

    Como sempre, Constantino certeiro.

  12. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante exposição, Constantino!

  13. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante exposição

  14. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Qualquer sociedade dependente financeiramente do Estado não pode funcionar, o Estado irá engordar tanto que um dia explodirá.

  15. Noel BOLSONARO Brasil
    Noel BOLSONARO Brasil

    Brilhante Constantino. Parabens pela clareza da analise.
    E tomo a liberdade de fazer minhas, as palavras da Sra. Guzzo no comentario acima.
    Mais trabalho, menos Estado, mais setor privado e menor funcionalismo publico e com menos privilegios. Está ficando insustentavel!
    Ainda bem que estamos sob a batuta do JMB com seus ministros brilhantes (quase todos, nao todos).

  16. Roberto Fakir
    Roberto Fakir

    Antes começavam a comer pelas beiradas. Hoje, nem isso mais precisam fazer. O ópio do povo, as redes sociais, vieram para o bem e para o mal. Tudo o que você dá, depois é difícil tirar. Começaram pelo bem porque deram voz a quem não tinha. ORKUT. Não tinha muito controle e era perigosíssimo. Orkut foi apenas aperitivo para os ladrões de ideias do Vale do Silício. A ideia se proliferou em Face, Wapp, Instagram e YouTube. Todos com controle total sobre as pessoas. Imaginaram o contrário do que aconteceu. Trump, Bolsonaro e outros se aproveitaram da bobeada e aí já era tarde. Foram feitos e agora quem comia pelas beiradas foi obrigado a se expor e ser o que sempre disseram que abominava. AUTORITARIOS. Daí, com uma pandemia???? e a população mundial com medo chegamos a isso. Bigtechs, Bigfarmas, Bigfins, BigChinas etc. Espero o próximo capítulo.

  17. Ricardo Silveira Carreon
    Ricardo Silveira Carreon

    Muito bom !

  18. Érico Borowsky
    Érico Borowsky

    Muito atual, Constantino!

  19. Andre mendonça
    Andre mendonça

    E o Brasil, com pequena classe média, boa parte dela ( a mais rica) constituída de funcionários públicos, preocupados em manter privilégios e sem produzir riquezas?
    Estamos decaindo ser ter chegado no topo…
    Praga ibérica.

  20. Ademir Roberto Pelizzari
    Ademir Roberto Pelizzari

    Rodrigo Constantino ,espetacular sua opinião parabéns 👍👍

  21. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Excelente matéria Constantino.O estado brasileiro tem que diminuir muito para que possamos crescer como um País decente.Agora o que podemos esperar de uma esquerda que está exigindo do governo federal pagamentos de absorventes femininos para a “pobreza menstrual”?Meu Deus, Brasil já paga bolsa família,ajuda para pandemia, kits lagostas e vinhos premiados para o STF, não existe mais mais o que exigir.Se eu falar isso nos EUA, vão sim acreditar que o Brasil fica na África.

    1. Marcos Heluey Molinari
      Marcos Heluey Molinari

      Sra. Teresa, a esquerda não está exigindo nada. É só parte de um joguinho. A esquerda aprovou o projeto só para o Bolsonaro vetar. É uma armadilha, entendeu? Tudo agora é casca de banana para o presidente. Esse povo não cansa de encher nossa paciência. Como diz o Nikolas Ferreira, a esquerda é muito chata !!! São mesmo aborrecidos e todos, sem exceção, retardados mentais. Abração.

      1. Teresa Guzzo
        Teresa Guzzo

        Sim concordo Marcos,essas exigências populistas feitas diariamente desgasta o Presidente.O ataque é constante,cansa e atrapalha.

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