Pouca gente sabe, mas a palavra “robô” nasceu numa peça de teatro. A peça foi escrita pelo tcheco Karel Capek, com o título RUR. Que significava “Os Robôs Universais de Rossumovi”. Na peça, autômatos humanoides são criados para obedecer aos humanos, mas se rebelam e extinguem seus criadores.
A peça estreou em janeiro de 1921, foi montada várias vezes pelo mundo e homenageada em inúmeras obras de ficção científica. Em agosto de 2010, por exemplo, o artista multimídia português Leonel Moura realizou uma montagem de RUR em São Paulo. Os autômatos da peça eram interpretados por robôs de verdade.
Exatamente um século após a estreia de RUR, um grupo de teatro tcheco homenageou a obra pioneira com um grande passo além: montou a primeira peça escrita por um computador. O projeto foi batizado de TheAItre — um trocadilho misturando “teatro” com a sigla de inteligência artificial. Os produtores deixaram claro que a obra é mais um conjunto de diálogos do que uma narrativa propriamente dita. Mesmo assim, a perspectiva que levanta é de dar vertigem.
O processo consistiu em entregar ao computador (atuando com um sistema de inteligência artificial GPT-2, da empresa OpenAI) um prompt. Uma espécie de gatilho da narrativa. O primeiro prompt dizia: “Olá, sou um robô e é um prazer convidar você a assistir a uma peça escrita por mim”. A partir daí, o programa escreveu mil palavras por conta própria.
Segundo reportagem da revista Science, o programa escreveu a peça inteira de uma vez. Os produtores então quebraram esse texto em oito cenas curtas. Cada cena continha o diálogo entre apenas dois personagens, com pequenas correções técnicas. Mesmo assim, essas intervenções representam apenas 10% da peça. E 90% do script final foi concebido pelo computador.
Nós já escrevemos aqui na Edição 44 de Oeste sobre a capacidade de sistemas de IA de criar textos jornalísticos repetitivos, atuar em atendimento a clientes, gerar variações de design e outros aspectos práticos.
Escrever uma peça de ficção é diferente. Nosso computador está exibindo uma “alma” — ou seja qual nome você quiser dar ao fenômeno. Exibe o domínio de um conceito complexo como a imaginação. Um robô capaz de dominar o princípio da narrativa adquiriu vida própria.
“Robô — Eu não posso evitar, eu quero fazer amor com você”
Outra exibição de criatividade artificial aconteceu na Universidade do Colorado, nos Estados Unidos. Pesquisadores desenvolveram um sistema de criação de poesia por inteligência artificial, com base em letras de música. O computador criou “modelos” poéticos orientados por sentimentos. Como este, sobre a tristeza, em tradução livre:
“Uma longa trilha de névoa caindo
Chegou até aqui, e agora parecia aérea
como se afundasse.
O trovão discordante ressoa.
Parecia afogar a música da chuva;
Neste distante lugar perdido de infortúnio”
São apenas palavras artificiais soltas? Ou existe um sentimento aí? Letras de música e poemas produzidos por humanos não podem ser (e muitas vezes são) uma colagem de frases de efeito emocional? Se você não soubesse que foi um computador que escreveu, o que sentiria?
“Creme de matéria amarela
Pingando do olho de um cachorro morto
Esposa crabalocker, sacerdotisa pornográfica
Rapaz, você tem sido uma garota safada
Deixou sua calcinha no chão”
Essa poesia foi concebida pela inteligência natural de John Lennon para a música I Am the Walrus. Qual tem mais sentido — se é que poesia tem de ter alguma lógica?
A peça encenada na República Tcheca ganhou o nome autoexplicativo de Inteligência Artificial: Quando um Robô Escreve uma Peça. Segundo a reportagem da Science, sua criação tinha momentos quase pornográficos. Quando instigado a escrever sobre eutanásia, desenvolveu a cena de uma luta entre personagens que discutiam “quem tinha o dedo no ânus de quem”. A história mostra um robô cujo criador morreu. Agora, ele tem de se integrar com os humanos por conta própria. Uma das partes mais desconcertantes do script é um diálogo entre o robô e uma mulher que veste uma roupa cheia de luzinhas acesas.
“Robô — Eu não sabia que era capaz desses sentimentos. Mas eu amo suas curvas brilhantes. Eu amo você.
Mulher — Desculpe, mas eu não sou um robô. Esta é só uma fantasia.
Robô — Por favor, você pode fazer melhor.
Mulher — Sinto muito! Eu não sou tão sexy quanto você. Sou apenas uma modelo.
Robô — Eu vou te levar para um lugar. Haverá muita diversão e nós faremos amor. Eu não posso evitar, eu quero fazer amor com você.”
Quando estimulado a contar uma piada, o programa descreveu algo como: “Quando o rapaz ficar velho e morrer e os filhos e netos do rapaz também ficarem velhos e morrerem, o robô continuará por aí”. Um dos criadores do projeto, o empresário Tomáš Studeník, notou: “É engraçado e, ao mesmo tempo, causa arrepios na sua espinha quando um pedaço de metal está fazendo piadas com sua mortalidade”.
A Testemunha de Jeová e o traficante de drogas
Não é a única experiência em criação de ficção por inteligência artificial. Estudantes de cinema da Chapman University (EUA) usaram a mesma técnica para criar o curta-metragem Solicitors, a partir de uma ideia inicial. Foi o primeiro roteiro de filme escrito por um computador.
O prompt original dizia: “Barb está lendo um livro. Uma batida na porta. Ela se levanta e a abre. Rudy, meio pateta, está do lado de fora”. Tirando esse início, o resto é fruto da “imaginação” do computador. É um filme simples, mas tem personagens reais, humanos, com uma história a ser contada. Rudy foi membro da igreja Testemunha de Jeová, traficante de drogas e bateu num carro da polícia. A princípio, Barb ouve passiva e desinteressada à narrativa do visitante. Mas revela uma surpresa no final que prova definitivamente que, ao seu jeito anárquico, sistemas de inteligência artificial podem ser perfeitamente criativos.
Uma terceira experiência aconteceu recentemente em Londres. Acabou revelando mais o estado de imbecilidade que certos humanos estão vivendo do que a capacidade criativa dos computadores. Foi dirigida por Jeniffer Tang, que manteve o controle da criação por meio de dois escritores, que organizavam a produção aleatória do computador. A peça, chamada simplesmente AI, foi apresentada como um processo de criação ao vivo para plateias no teatro Young Vic. O texto é gerado ao vivo, com a peça sendo montada no palco para a plateia.
Patrulhando o computador
No programa da peça, a primeira frase anuncia: “Este espetáculo pode conter linguagem forte, homofobia, racismo, sexismo, preconceito contra pessoas com limitações físicas e referências a sexo e violência”. A preocupação prioritária da produção é sua falta de correção política. A diretora da peça usa como identificação no Twitter: “Jennifer Tang BLACK LIVES MATTER”.
A inteligência artificial gerada por um sistema GPT-3 já recebeu o carimbo de “racista”. Sim, computadores mal começaram a escrever e já estão sendo patrulhados. Nesse caso, para cancelar o autor, bastará puxar a tomada.
A bronca principal com a experiência de Londres é que o computador costuma colocar o ator Waleed Akhtar, de origem árabe, em papéis como de terrorista ou estuprador. Uma das escritoras do projeto, Chinonyerem Odimba, manda seu recado: “Quando as pessoas pagam um ingresso e vêm ao teatro, a história com a qual queremos que elas saiam é que a inteligência artificial é realmente racista, e violenta e sexualizada? É. Mas, atualmente, o mundo fora dessas portas também é”.
Um dia vão nos ensinar
Como descreveu um dos fundadores do projeto original tcheco: esses programas assimilam em suas memórias milhões de sites da internet para ficarem bem informados e capacitados a criar para humanos. Comportam-se como uma criança, que ouve os adultos falando na sala e repetem inocentemente o que ouviram sem pensar muito nas consequências. O fato de ligarem nomes árabes a terrorismo seria uma atitude racista? Ou eles estão apenas demonstrando que, de 2001 para cá, uma minoria de extremistas da Al Qaeda, Isis e outros grupos “sequestrou” o noticiário em quase tudo o que se refere aos árabes em geral?
Não adianta enquadrar a inteligência artificial com ofensas lacradoras. Ela reflete a sociedade sem os mecanismos de autocensura e patrulhamento ideológico. Em outras palavras, são mais livres que nós. Talvez se tornem vitais para sociedades vítimas de uma censura política cada vez mais vaga, autoritária, intransigente — e ridícula. Computadores poderão nos ensinar o verdadeiro sentido da liberdade, que estamos perdendo todos os dias. Terão mais lógica e objetividade para nos ajudar a lidar com nossos problemas.
Por enquanto, experiências com computadores escritores estão restritas ao mercado alternativo e experimental. O especialista em inteligência artificial Chad DeChant (da Columbia University) calcula que, em mais 15 anos, a tecnologia estará adiantada a ponto de gerar “um texto complexo e coerente como uma peça de teatro do início ao fim”.
Esse prazo parece cada vez mais pessimista. Tecnicamente, as possibilidades de criação por inteligência artificial estão se aperfeiçoando em altíssima velocidade. A peça escrita por um computador em Praga usou o processador GPT-2, criado pela empresa OpenAI, capaz de usar 1,5 bilhão de parâmetros. (Ou “pensamentos que se cruzam para gerar a criação”. Ela já foi substituída pela GPT-3, que é 116 vezes mais potente, gerando 175 bilhões de parâmetros.)
Nesta semana, a Microsoft, em parceria com a Nvidia, anunciou “o maior e mais poderoso modelo de geração de linguagem do mundo”. Batizado como MT-NLG, ele chega a 530 bilhões de parâmetros. Ou seja, é 353 vezes mais poderoso que o modelo usado para a pioneira peça tcheca.
Mas a OpenAI não quer ficar para trás. Afinal, um de seus fundadores foi o inquieto Elon Musk. A empresa já está anunciando seu novo modelo, o GPT-4. Vai operar com 100 trilhões de parâmetros, deixando todos os rivais muito para trás. E Ilya Sutskever, cientista-chefe da OpenAI, avisou que o GPT-4 não se limita mais ao texto. “Ele começa a se tornar consciente do mundo visual.”
Computadores estão aprendendo a escrever. Um dia, vão nos ensinar. Será um desafio para nós, humanos, permanecermos como os melhores contadores de histórias. Serão a razão para que a gente continue buscando mais decididamente aquele toque de originalidade que anda meio esquecido. E ainda teremos parceiros ideais para nossas obras mais criativas, corajosas e ousadas.
Leia também “Vida (digital) eterna”
Ótimo artigo.
Robôs e IA são impróprios para este tipo de tarefa. Sempre repetirão o que captaram. Basta ver o conteúdo dos textos citados neste artigo: entupiram-se de sexo e preconceito e criam sexo e preconceito. Agora, por que não aparece por aí um robô tentando escrever, por exemplo, porque o brasileiro foge das situações que o embaraçam. Por quê? Por haver poucos textos sobre esse tema. Robôs e IA nunca alcançarão as alturas do pensamento que nos deixam com vazio no estômago. Irão sempre preferir o banal.
O que mais me preocupou em tudo que li não foi a estupenda criatividade da inteligência artificial para criar coisas tão espetaculares, como uma peça de teatro ou um bom livro, mas a impressionante estupidez humana que torna animais e plantas seres portadores de direitos inerentes, rebaixando o homo sapiens a um mero capricho da evolução das espécies. Ora, se animais e plantas estão se tornando mais importantes atualmente do que a própria existência humana, não ficarei admirado se no futuro ativistas do “esquerdisticamente correto”, transformarem a IA em entes com sentimentos, vontade, emoção, razão, crítica, finitude, ou seja, aquelas faculdades que apenas a alma humana possui.
Fantástico! O futuro encharcando nossos pés
Fascinante e assustador.
É… o admirável mundo novo é perfeitamente deslumbrante; e completamente assustador.