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Ilustração: Fran Kie/Shutterstock
Edição 83

Liberdade depois do lockdown

Suspender liberdades civis, aumentar o poder policial, governar por decreto — não podemos deixar isso se tornar o modelo com o qual lidamos com crises no futuro

Tom Slater, da Spiked
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Os pubs estão abertos, os usuários do metrô estão semicobertos por máscaras na melhor das hipóteses, as multidões se aglomeram sob o sol de outubro. As coisas podem não ter voltado ao “normal” depois da pandemia, com o governo do Reino Unido atualmente envolvido em várias crises, uma parte, mas não tudo, de sua responsabilidade. Sem dúvida as coisas parecem mais livres de novo, a sociedade voltou a ser um pouco mais como era, depois de um ano e meio de lockdown.

A maior parte das restrições da covid-19 na nossa vida cotidiana foi retirada, tornando-se uma questão de orientação. Agora que as vacinas acabaram com a relação entre infecção, hospitalização e morte, a covid-19 deixou de colonizar nossa mente como ocorreu no passado. Nossas ansiedades e liberdades civis não estão mais perigosamente por um fio em um gráfico de televisão.

Mas o alívio do retorno das nossas liberdades não deve nos cegar para como os valores liberais foram prejudicados durante a pandemia. Supor que um experimento sem precedentes, implementado por imposição, no controle de doenças simplesmente surgiria e desapareceria sem deixar rastros seria muita ingenuidade. Se deixarmos, o lockdown pode lançar uma vasta sombra sobre as nossas liberdades civis.

O relatório desta semana de alguns comitês de saúde e ciências nos faz lembrar quão restrito é o debate sobre o lockdown. A única coisa que se pode dizer é, claro, que  deveríamos ter começado o isolamento antes. Nunca somos convidados a questionar se ele foi legítimo, para início de conversa.

No começo de 2020, era inimaginável que uma nação ocidental confinasse seus cidadãos como o Reino Unido e a maior parte dos outros países fizeram. Quando o governo chinês estava trancafiando seu povo em casa, o Ocidente observou horrorizado. Nem mesmo o famigerado estudo do professor Neil Ferguson na Imperial College propôs um lockdown completo, de tão impensável que isso era.

Mas não se trata mais de algo impensável. Como Ferguson afirmou em uma entrevista de dezembro, foi a decisão da Itália de seguir o autoritarismo da China no lockdown que fez com que ele e seus colegas se dessem conta de que “era possível fazer isso na Europa”. Nossos lockdowns podem não ter sido tão severos quanto os dos chineses, mas mesmo assim foram assombrosos.

O que começou como 11 páginas de regulamentos logo inflou para mais de cem

Como o Comitê de Direitos Humanos do Reino Unido afirmou, o lockdown inaugurou “as restrições mais amplas às liberdades individuais, afetando o maior número de pessoas desde as Regras de Defesa criadas durante a Segunda Guerra Mundial”. Nas palavras do juiz da Suprema Corte Gary Hickinbottom, esse foi, “possivelmente, o regime mais restritivo da vida pública das pessoas e das empresas da história”.

Mais do que isso, ao impedir as pessoas de sair de casa sem um “motivo razoável”, o lockdown “inverteu a suposição comum de que as pessoas são livres para fazer o que quiserem a menos que a lei proíba”. Foi um regime a que o então secretário de saúde, Matt Hancock, se referiu como “napoleônico”.

O que começou como 11 páginas de regulamentos logo inflou para mais de cem. O lockdown não só se tornou incrivelmente punitivo, em determinado momento estabelecendo multas de 10 mil libras para festas em casa ou mentir em formulários de viagem. Ele também era vago, difícil de administrar e, em sua complexidade e seu inchaço cada vez maiores, quase impossível de compreender, até mesmo para a polícia, os promotores públicos e os políticos.

As autoridades rotineiramente confundem as orientações de lockdown com a lei. A polícia se envolveu em atos de autoritarismo que seriam engraçados se não fossem tão aterrorizantes — de mandar drones atrás de gente passeando com cachorros no Peak District a ameaçar inspecionar sacolas de compras procurando sinais de algo ilícito.

Acusações falsas não faltaram. Funcionários do Serviço de Procuradoria da Coroa sugerem que um quinto das acusações a respeito das regras do lockdown foi feito injustamente. Todas as acusações sobre a Lei do Coronavírus de 2020 foram anuladas. Aparentemente, a polícia confundiu essa lei específica com as regulações de saúde pública que impuseram o lockdown.

Como o advogado de direitos humanos Adam Wagner destacou, nada disso cai bem para as dezenas de milhares de pessoas que foram multadas, em alguns casos em milhares de libras, por supostamente desobedecerem às regras de lockdown. “Não cabe recurso” para essas multas, Wagner comentou no começo do ano. “A única maneira de contestá-las é não pagar e correr o risco de ser processado.”

Existem aqueles que dirão que isso tudo é lamentável, mas que o lockdown em si foi necessário — que até mesmo sociedades liberais e democráticas às vezes precisam impor medidas de emergência para evitar um dano catastrófico. E essas pessoas estão absolutamente certas, em princípio. Mas de fato não havia alternativas aqui? Colocar a nação em prisão domiciliar — três vezes no decorrer de um ano — realmente era a única opção?

Os dados de mobilidade no auge da crise sugerem que era possível confiar que o público fosse fazer a coisa certa. Quando o lockdown foi declarado em 26 de março de 2020, o uso de transporte público tinha caído em cerca de 70% e já estava caindo nas duas semanas anteriores. As pessoas estavam se confinando antes de o lockdown ser imposto pelo governo.

Mas nenhum debate sobre voluntarismo versus compulsão foi realizado de fato. O lockdown foi de algo impensável em um país como a Inglaterra para uma questão de bom senso óbvia. Nos dias que culminaram no lockdown, a mídia estava basicamente exigindo que ele fosse decretado. E, nas semanas depois disso, ela gastou boa parte de sua energia constrangendo quem não seguiu as regras.

Mesmo que você acredite que o lockdown precisava acontecer, que não havia outra opção dada a situação em que estávamos, a maneira como a coisa foi feita ainda deveria ser aterrorizante. No que diz respeito ao lockdown, o governo atuou por decreto — leis foram feitas e desfeitas ao toque da caneta do secretário de Saúde do Reino Unido, Matt Hancock, quando aquelas mãos bobas não estavam ocupadas com outra coisa.

O lockdown legitimou o autoritarismo aos olhos das elites

O governo optou por impor o lockdown usando poderes descritos na Lei de Saúde Pública, em vez de outra legislação criada para lidar com emergências, porque isso permitiu que ele evitasse o escrutínio ou a aprovação do Parlamento por pelo menos 28 dias. De sua parte, o Parlamento britânico só deixou acontecer. Seus membros só guardaram seus pertences e foram para casa.

Quase não houve resistência a essa maneira como o governo conduziu as coisas. O lado da esquerda liberal, habituada a retratar Boris Johnson como um protofascista durante as guerras do Brexit, pareceu surpreendentemente calmo quando o governo baniu os protestos e confinou todo mundo. (Era quase como se não acreditassem no que estavam dizendo sobre ele desde o começo.)

Em 2020, nos demos conta da fragilidade da defesa dos valores liberais neste país, e como são poucos os defensores que esses valores têm na política e em posições de influência. Quase não houve ceticismo, quase não houve reação ao que estava acontecendo, quase nenhuma exigência por responsabilização ou proporcionalidade em resposta a medidas tão autoritárias e tantas vezes irracionais.

O lockdown legitimou o autoritarismo aos olhos das elites. Inquestionavelmente. Para começar, o plano de inverno previa governar por decreto de novo se parecesse que as restrições precisassem ser reintroduzidas. Também fiquei chocado que os esquerdistas e liberais defensores do lockdown parecessem não ter feito a conexão entre a proibição dos protestos durante a pandemia e a mais recente repressão imposta pela secretária de Estado, Priti Patel, ao direito de protestar no Projeto de Lei de Policiamento.

Não sou uma daquelas pessoas que acreditam que outro confinamento está prestes a acontecer. O legado do lockdown pode muito bem se fazer sentir de modo mais sutil. Mas os poderes autoritários têm o hábito de perdurar. As Regras de Defesa dos tempos da guerra não foram totalmente derrubadas até 1964. E como lorde Sumption comentou, os poderes criados nas Leis de Terrorismo de 2000 e 2006 foram reaproveitados algumas vezes nos anos recentes.

Suspender liberdades civis, aumentar o poder policial, governar por decreto — não podemos deixar isso se tornar o modelo com o qual lidamos com crises, reais ou exageradas, no futuro. Precisamos desesperadamente liberar o debate sobre o lockdown das amarras idiotizantes em que está confinado neste momento. E então precisamos defender que a liberdade não existe só nos momentos bons.


Tom Slater é editor da Spiked.

Leia também “O fracasso do lockdown

5 comentários
  1. Rodrigo Mássimo
    Rodrigo Mássimo

    Excelente texto, Tom! Muito obrigado.

  2. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Ótimo texto m

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo. Parabéns.

  4. Dimas Gabriel
    Dimas Gabriel

    Fala sobre a Inglaterra?
    Mudando os nomes, parece o Brasil

  5. Paulo Renato Versiani Velloso
    Paulo Renato Versiani Velloso

    Ué.. o texto sumiu, como vou comentar?

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