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Guedes e Bolsonaro | Foto: Montagem Redação Oeste/Shutterstock
Edição 84

Paulo Guedes e a chuva de meteoros

Três conselhos ao presidente da República antes do próximo apocalipse

Ubiratan Jorge Iorio
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Há poucos dias, a impressão era que o mundo iria desabar sobre o Brasil. Os mercados financeiros reagiram ao que foi interpretado como uma capitulação da equipe econômica ao compromisso com o processo de consolidação fiscal, promovido a duras penas contra tudo e todos. A desconfiança de que o teto de gastos seria ultrapassado era o prenúncio do fim da austeridade fiscal e da credibilidade do governo. Um verdadeiro desastre, uma volta à mesmice social-democrata da política econômica dos últimos 50 anos. Uma traição de Paulo Guedes aos seus princípios e do presidente aos seus eleitores. Não era bem isso. Mas parecia ser.

Antes de comentar o episódio, é preciso ressaltar que não há motivos para dirigir imprecações nem rogar pragas contra o famigerado “bando de especuladores” que constitui “o mercado”. Alguns críticos e analistas não têm ideia da importância do papel que as expectativas desempenham na economia do mundo real. Qualquer agente econômico, tanto do lado da demanda quanto da oferta, reage a expectativas! É uma reação movida por fatores objetivos, como os preços, mas também intuitiva, de natureza subjetiva e que não pode ser controlada.

Quando você está prestes a sair de casa para uma caminhada e prevê uma forte chuva em cinco ou dez minutos, por prudência, procura um guarda-chuva? O potencial consumidor de um carro, ao antecipar que em poucas semanas o seu preço vai cair, adia a compra? O produtor de batatas, ao antever que o governo vai tabelar o preço do seu produto, decide ser melhor mandar o próprio governo plantá-las e passar a cultivar, por exemplo, orquídeas? E por que os agentes econômicos, em praticamente todas as suas ações, não olhariam para o futuro e reagiriam a expectativas?

Essa última barafunda nos mercados de ações e de câmbio foi uma inevitável reação orgânica ao que, naquele momento, foi interpretado como uma perda do controle fiscal, o que seria desastroso, especialmente em uma situação em que o assanhamento da inflação de preços está exigindo austeridade redobrada por parte do Banco Central. Hipótese bastante plausível, como atesta a decisão do Copom desta semana, de aumentar a Selic em 1,5 ponto porcentual (de 6,25% para 7,75% ao ano), dose que deverá se repetir até o final deste ano ou mesmo aumentar.

O governo poderia ter evitado o alvoroço? Sim. Logo que o ministro da Economia, ao lado do presidente e diante de câmeras, celulares e microfones, rebateu com veemência a acusação de que o governo aderira à irresponsabilidade fiscal, o mercado acalmou-se instantaneamente.

Mas, então, o que teria levado alguns funcionários importantes do Ministério da Economia a pedir exoneração? O fato acirrou ainda mais os ânimos do mercado. A excitação foi amplificada febrilmente por conhecidos jornalistas e blogueiros que acordam e vão dormir com o único propósito de causar problemas ao governo. Não temos resposta para os motivos dessas baixas na equipe. Qualquer afirmativa a esse respeito seria pura especulação e, portanto, antiética. Mas a dúvida permanece.

Liberalismo, esse ilustre desconhecido

Tudo garante que a sinalização firme de Paulo Guedes no sentido de mostrar que não havia abandonado os princípios liberais que sempre defendeu espantou os maus espíritos de volta para o inferno. Mas os adversários não vão desistir. Seus atacantes são hábeis: políticos (alguns, inclusive, dentro do próprio governo, como Guedes sugeriu sutilmente) sempre querendo abrir a bica dos gastos; a oposição que não faz oposição, mas pura sabotagem; a imprensa que desinforma o tempo todo; empresários saudosos do dinheiro barato do BNDES; e muitos “liberais não binários”, que saíram aos borbotões do armário e passaram a agir como social-democratas em busca de terceiras, quartas e não se sabe mais quantas vias.

É inegável que a equipe econômica vem tentando adotar, desde janeiro de 2019, medidas com vistas a promover a necessária consolidação fiscal. Ou seja, a mudar o regime fiscal, a estrutura temporal dos gastos e receitas da União. É importante ressaltar que é a primeira vez, desde as reformas de Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos nos anos 1970, que um governo tenta de fato encarar essa façanha — à que o próprio Hércules possivelmente teria se furtado.

Tanto o ministro da Economia como seus secretários mais importantes são liberais em tempo integral

O que se fez na idade da pedra polida tucana e na da pedra lascada petista foi no máximo executar políticas fiscais temporariamente mais austeras (ou menos permissivas). Mas o regime fiscal e a estrutura de gastos e receitas necessários para alimentar o agigantamento do Estado permaneceram intocados. Para efeito de comparação, o comportamento de todos os governos nas últimas décadas foi como o daquele sujeito imprevidente que, devendo na praça, se limitava a diminuir suas despesas durante poucos meses, e em seguida voltava a viver no cheque especial, trocando de banco para saldar o débito com o banco anterior e repetindo a prática indefinidamente, sem cortar despesas, vender ativos nem tentar aumentar a renda.

Já escrevi várias vezes — e reafirmo, por conhecê-los pessoalmente há bastante tempo —, que tanto o ministro da Economia como seus secretários mais importantes são liberais em tempo integral — dia sim, outro também. Por outro lado, continuo acreditando nas boas intenções do presidente. Por isso, as críticas de que o caminho liberal não está avançando por culpa deles não têm fundamento.

Qualquer análise desprovida de paixão ou de ódio sabe quanto é difícil colocar a economia do país nos trilhos do caminho da prosperidade que os eleitores endossaram em 2018. Primeiro, porque a nossa cultura é sui generis: muitos brasileiros detestam a maioria dos políticos; muitos também acreditam em poderes messiânicos desse ou daquele político, mas quase todos confiam no Estado e suas instituições. O liberalismo entre nós ainda é um ilustre desconhecido, apesar dos avanços obtidos nos últimos anos.

Em adição ao empecilho para a aprovação das reformas representado pela crença cega no poder do governo para resolver os problemas das pessoas, temos de levar em conta outro obstáculo que nada tem de ideológico e que faz parte da própria condição humana: enxugar o Estado, fazer uma reforma administrativa profunda, privatizar, desregulamentar, desburocratizar, enfim, reformar para valer sempre tira poder de políticos e de grupos que vivem de seus favores.

O meteoro de olhos puxados

É difícil, muito difícil mesmo mudar o regime fiscal. O ministro Paulo Guedes sempre teve consciência de que não basta que ele ou qualquer outro ministro liberal em seu lugar estale os dedos e passe a ordenar: privatize aqui, desregulamente ali, baixe imposto lá e corte gastos acolá. O poder do economista ministro é apenas o de traçar para o presidente o caminho das pedras, para que ele o execute — ou não — por meio da política. Bolsonaro é contra a reforma, é populista, é isso, é aquilo? A meu ver, são acusações injustas. Será que outro em seu lugar conseguiria fazer todas as mudanças que o acusam de não ter feito? Por que, então, antes dele, não fizeram?

A verdade é que reformar o Estado exige transpor muitos obstáculos, além dos que já foram mencionados. Um deles é a nossa Constituição de 1988, a Carta dos direitos sem deveres, em que gastos não dão a menor bola para fontes, bem como os remendos que nela fizeram.

Se você fosse o presidente, como iria governar com o poder limitado a alocar menos de 10% das despesas orçamentárias em conformidade com o seu programa de governo? Como iria financiar, por exemplo, o Auxílio Brasil? De que outros gastos teria de abrir mão para aumentar para R$ 400 esse benefício? E a ajuda emergencial? Não seria, talvez, forçado a tentar protelar o pagamento de precatórios — algo que você não gostaria, mas é levado a fazer, em meio a um intenso e impiedoso tiroteio da turma do contra?

Aliás, a questão dos precatórios é emblemática. Hoje, há mais de R$ 90 bilhões em precatórios federais, que deverão ser pagos em 2022 e incluídos no Orçamento. Dada a dificuldade crônica de honrar esses compromissos, os governos têm o hábito de adiá-los. Ora, um cidadão que vive em dificuldades financeiras e que está aguardando há dez, 15, 20 anos para receber o que o governo lhe deve é tentado a vender no mercado paralelo os direitos do precatório por um preço bem inferior ao do valor de face. Assim, os bancos, que são os principais compradores diretos e indiretos dessas dívidas, pagam 25 pelo que vale 100 e em seguida oferecem ao governo um deságio de 25%. Lucram 50% por operação, o que os leva a pressionar o Congresso para que os precatórios sejam pagos rapidamente. É preciso, portanto, existir transparência, para desmontar certos procedimentos nada éticos que contribuem para sugar os pagadores de impostos.

O caminho correto a ser seguido para mudar o regime fiscal não passa por exercícios superficiais de ginástica orçamentária. É cansativo viver repetindo isso, mas o foco deve ser nas reformas. Quantos recursos seriam economizados, por exemplo, com uma reforma administrativa profunda, que abolisse as inacreditáveis mordomias do Judiciário e do Legislativo?

Na economia, sem dúvida houve alguns avanços significativos, conquanto todas as dificuldades mencionadas estivessem presentes. O ano de 2019 prenunciava o tão esperado voo de águia, com a reforma da Previdência e as expectativas favoráveis quanto ao andamento das outras, apesar das dificuldades impostas pelo Congresso, e dois presidentes. Então, bem no início de 2020, veio — para usarmos a imagem de Guedes — um enorme meteoro de olhos puxados: a pandemia de covid-19.

Seu choque com o planeta desorganizou toda a economia e a vida das pessoas no mundo inteiro. Para piorar as coisas, sobreveio uma verdadeira chuva de meteoros em todo o mundo: a política do fique em casa que a economia a gente vê depois, o choque brutal de oferta, as injeções descomunais de gastos públicos e de moeda utilizadas como pretextos para enfrentar o desemprego, a quebradeira de empresas e, no Brasil, a inconcebível politização da doença. Tudo isso somado à incrível capacidade por parte dos políticos de atravancar praticamente todas as iniciativas da equipe econômica e às frequentes interferências descabidas do Judiciário em assuntos econômicos.

Mesmo com todos esses meteoros, a economia em 2020 surpreendeu positivamente. O FMI, a ONU e vários bancos esperavam em março que a queda do PIB poderia ser de 9% a 11%, mas o ano fechou com queda bem menor: 4,1%. Para 2021, segundo o último relatório de mercado Focus, divulgado na última segunda-feira, as estimativas são de que a taxa de crescimento será positiva e ficará em torno de 5%. A inflação de preços, que é mundial, vai se acalmar, desde que as torneiras de moeda permaneçam fechadas.

Se pudéssemos aconselhar o presidente, faríamos três recomendações gerais: 1) pelo amor de Deus, pela milionésima vez, melhore a comunicação do governo, senão a mídia inimiga vai continuar minando tudo o que o senhor tentar fazer; 2) continue a apoiar o seu “Posto Ipiranga”, porque Paulo Guedes é um economista respeitado, o trabalho que ele se propõe a fazer é de fato o melhor para o Brasil deslanchar e foi endossado pelos eleitores; 3) se por desventura alguém próximo ao senhor usar a pandemia como bode expiatório para implodir o Orçamento, trate-o bem, mas deixe a sugestão entrar por um ouvido e sair pelo outro.


Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorgeiorio

Leia também “Um monstrengo que paralisa o governo”

11 comentários
  1. ISADORA TOSCANO DE BRITTO
    ISADORA TOSCANO DE BRITTO

    Brilhante Ubiratan! Falou muito bem,em particular adorei sua referência a Constituição de 1988 como Carta de direitos sem deveres. É exatamente isso! Muito difícil fazer as reformas necessárias com esse entrave. Até agora nO conseguimos privatizar o obsoleto e ineficiente Correios. Obrigada pelo artigo .

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente texto. Parabéns.

  3. MARCELO DE MELO
    MARCELO DE MELO

    Parabéns pelo artigo!
    Não sou do governo e apenas um curioso e entendo que a melhora da comunicação será salutar para que mais brasileiros tenham consciência do bom trabalho que esse governo está realizando. Desse modo, e a título de curiosidade, pergunto como o Planalto poderia melhorar a sua comunicação ?

  4. Luiz Antonio Fraga
    Luiz Antonio Fraga

    De uma clarividência excecpcional. Parabéns pelo artigo. Tenho a msm visão e entendimento: as reformas são fundamentais.

  5. Joao Batista Inacio Leao
    Joao Batista Inacio Leao

    Mais um artigo para se emoldurar ! Perfeito!

  6. Marcio Bambirra Santos
    Marcio Bambirra Santos

    Ótimo artigo que desnuda de vez a modelar Economia para a real Economia Política.

  7. marise neves
    marise neves

    Nunca tivemos um ministro da Economia como o Sr. Guedes. Ele é resiliente,perseverante e fiel ao presidente .
    Vamos vencer, eu acredito 🙏🙏

  8. Raul José De Abreu Sturari
    Raul José De Abreu Sturari

    Ubiratan, este texto está um primor.
    E a síntese, ao final, é a cereja em cima do bolo.
    Parabéns!

  9. EDUARDO CARLOS DE ALMEIDA
    EDUARDO CARLOS DE ALMEIDA

    Brilhante artigo de Ubiratan Iorio, que tem a rara capacidade de traduzir o economês para o português como poucos. Mas tenho uma ressalva, lá no final. A primeira de suas três recomendações ao presidente revela uma sentimento absolutamente distorcido da realidade, tão cara ao articulista: o de que a “mídia inimiga” é honesta, que só combate as medidas do governo por conta da má “comunicação” do governo. Meu caro, você está errado.

  10. Eduardo Celso Poiano
    Eduardo Celso Poiano

    Se estivesse vivo, Roberto Campos estaria orgulhoso da coragem e resiliência demonstradas por Paulo Guedes.

  11. LUIZ ALBERTO BRUNATTI
    LUIZ ALBERTO BRUNATTI

    parabens! concordo plenamente com a sua opinião.

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