Aos 78 anos, Aguinaldo Silva é um dos mais conhecidos e premiados dramaturgos na ativa. Jornalista, teve passagens no jornal O Globo e foi editor, entre 1978 e 1981, de O Lampião, o primeiro jornal voltado para o público gay brasileiro. Alcançou projeção nacional ao escrever, entre 1985 e 1986, a novela de maior audiência da televisão brasileira: Roque Santeiro, baseada numa peça de Dias Gomes. Foi coautor de Gilberto Braga em Vale Tudo, em 1988. Em 1989, adaptou o romance Tieta do Agreste, de Jorge Amado, com grande êxito. Atravessou os anos 1990 seguindo a linha de novelas regionais.
A partir dos anos 2000, adotou o drama urbano em seus trabalhos, tendo Senhora do Destino como um de seus maiores êxitos. Em 2015, foi premiado com um Emmy Internacional pela novela Império. Depois de mais de 40 anos de serviços prestados à TV Globo, deixou a emissora ao final de 2019.
Em viagem a Lisboa, onde tem uma casa que ocupa quando sente saudades de Portugal, Aguinaldo falou a Oeste sobre o que pensa do politicamente correto, de liberdade de expressão, imprensa, dos ataques à língua portuguesa e muito mais.
Confira os principais trechos da entrevista.
Como é escrever novelas e séries em um mundo tão politicamente correto?
Complicado demais. O roteirista de hoje tem de estar o tempo todo se policiando para que o texto não pareça ofensivo. Isso porque há pessoas que podem se sentir discriminadas, visto que “as regras de hoje” estariam sendo desobedecidas por determinado autor. Em alguns casos, a reação é bastante violenta. Está difícil não só escrever novelas ou séries, mas fazer qualquer coisa, seja falar seja até o modo de agir. Não se sabe mais para onde se virar, para onde falar e como se comportar. Tudo está profundamente chato.
Essa avalanche do politicamente correto ameaça a liberdade de expressão?
Enxergo isso tudo com preocupação. O politicamente correto está empobrecendo a comunicação. Ultimamente, as pessoas estão tomando muito cuidado com o que vão falar, escrever e se expressar diante das outras. No meu caso, levando essa situação em conta, ao ler livros clássicos, fico pensando o que as novas gerações vão achar daquele autor e sobre o que ele escreveu. O que está acontecendo é uma imposição perigosa. Com o tempo, isso vai se tornando algo negativo e até imprevisível. Além disso, a linguagem em si está sendo muito prejudicada em meio a esses eventos. Jornalista por 18 anos, venho notando o empobrecimento dos textos publicados na imprensa, além de constantes erros de gramática nas matérias.
Como o senhor vê essa história do jogador Maurício Souza? É justo o que fizeram com ele?
Primeiramente, não quero ouvir o que as pessoas “autorizadas a julgar” têm a dizer. Quero ouvir o povo que está na rua, saber o que as pessoas pensam sobre isso. Será que realmente acham relevante o que a grande mídia faz crer? Quem é ouvido, de fato? Geralmente, só uma minoria opina, o que é perigoso para o debate público.
O que o senhor pensa sobre aqueles que são cancelados por se manifestarem contra a existência de gêneros além do masculino e feminino, como a escritora J.K. Rowling?
A palavra “cancelamento” nada mais é que a velha censura. Penso que qualquer tipo de censura é algo odioso. É extremo e pode conduzir à sandice. Impedir alguém de manifestar a própria opinião sempre será condenável.
“Nunca mais teremos 98 pontos de ibope como na novela Roque Santeiro”
O que achou de a Globo lançar uma novela que terá a chamada “linguagem neutra”?
A língua portuguesa é belíssima. Considero um crime que, por qualquer razão, alguém ache que deve empobrecê-la. Só conheço uma forma de falar português. É evidente que temos de respeitar as preferências das pessoas, até porque já fui muito desrespeitado por ser gay. Mas sou também um escritor e lido com palavras. Fico muito triste quando a língua portuguesa, em nome de uma luta, acaba sendo empobrecida. Isso não pode acontecer.
Na sua avaliação, por que a audiência da TV Globo vem caindo?
Porque os tempos são outros. Hoje em dia, as pessoas têm uma infinidade de opções. São várias mídias, entre elas, o streaming. A própria Globo foi no sentido de apresentar uma gama de variedades nesse ramo. A grande audiência que havia no passado acabou. Nunca mais teremos 98 pontos de ibope como na novela Roque Santeiro. É algo que independe de questões políticas. Considero ainda que a linguagem mudou bastante, que a forma de consumir televisão se transformou. As novas gerações, com menos de 20 anos, não estão mais interessadas em novelas com histórias longas. Os jovens querem algo mais imediato. Esse cenário não se restringe ao Brasil. No mundo, as pessoas estão cada vez mais agrupadas em “facções”, e isso se reflete na audiência.
E as demissões que vêm ocorrendo no alto escalão de novelas da emissora?
Isso aconteceu no cinema norte-americano nos anos 1970. Essa história de ter “estrelas” à sua disposição acabou. A Globo tinha um sistema hollywoodiano e conseguia manter isso porque era a única com essa capacidade. No entanto, um dia isso acabaria.
O que explica a migração cada vez maior de diretores de novelas para o streaming?
Na televisão convencional, que abrange um público maior e diverso, é possível tratar de vários temas, porém sem aprofundá-los. No streaming, que é mais fechado, as pessoas pagam para ver algo personalizado e que tenha mais proximidade com elas. Para um autor de séries ou de novelas, o streaming possibilita que um tema específico seja tratado com maior profundidade. Ele permite que o roteirista explore mais sua capacidade de criação. Há muitos streamings que beberam nas águas das novelas, com elementos como o suspense e o melodrama. Trata-se de um modelo interessante, mas mortal para a televisão convencional.
Como vai ficar a televisão?
Cada vez mais, ela vai se tornar jornalística, como já ocorre na Europa e nos Estados Unidos. Enquanto cada emissora terá seu próprio serviço de streaming, o destino da televisão como conhecemos será substituir o jornalismo impresso.
Como o senhor avalia a cobertura da imprensa sobre a pandemia de coronavírus?
Montou-se um grande circo. E isso é um pouco o que o jornalismo se tornou neste momento: pão e circo. Acho que a contenção nos faria bem. Hoje, o jornalismo é mais apaixonado, e a paixão nos conduz a um caminho que, em certos momentos, pesa. Mas, por outro lado, para não parecer muito injusto com a profissão na qual trabalhei por quase 20 anos, pergunto: será que, se o jornalismo fosse mais contido, as pessoas gostariam? Não é isso que as pessoas querem? O pão e o circo?
De que modo o senhor reagiu ao não ter seu contrato renovado com a Globo no ano passado?
Eu fazia parte de um grupo de pessoas que estavam condenadas à extinção. Éramos muito bem tratados pela emissora. Tínhamos vantagens que eram um pouco exageradas. Acho que essa reformulação, que resultou na não renovação de contratos, inclusive o meu, foi necessária. Não guardo mágoas. A Rede Globo me deu muito em 41 anos de relação e eu dei muito a ela. Estamos empatados.
O senhor voltaria a assinar outro contrato com a Globo?
Sou profissional e um trabalhador compulsivo. Sem criar nem escrever, vou definhar e morrer. Não tenho nenhum preconceito contra empregadores, desde que me paguem o que considero justo. Escreveria de novo para a Globo sem problemas, e para qualquer canal que me aceite como eu sou, com a condição de que fosse um contrato por obra. Além disso, não abro mão de ter opiniões, apesar do cancelamento.
O senhor já tem parceria firmada com alguma emissora? Está escrevendo alguma série ou novela no momento?
Ainda não fechei parcerias. Tenho trabalhos sendo analisados por empresas de streaming. Espero que um deles dê certo, mas, se não der, sem traumas. O mercado anda meio abalado por causa da pandemia. Gosto de ver minhas histórias no ar e os atores no meu texto. Isso me moveu a vida inteira. A Globo me acostumou mal, porque lá havia um determinado time de novelistas cujo trabalho nunca era discutido, tampouco contestado. Você mandava o trabalho e eles produziam. Se não desse certo, a culpa era nossa. No streaming é mais burocrático. São vários profissionais que opinam sobre o texto. Cada um acha que uma coisa tem de ser mudada. É um processo mais complicado que a televisão convencional.
Qual foi a novela que o senhor mais gostou de escrever e como o senhor se inspira?
Tieta, por ter sido uma novela libertária, em que eu pude ir até onde quis no tratamento de temas sem que isso me causasse nenhum problema. Naquele momento, havia uma ânsia de falar certas coisas, e a novela chegou no momento certo. Das 16 novelas que escrevi, foi a de que mais gostei. O meu processo de criação envolve histórias que vejo ou ouço nas ruas. Meus trabalhos têm uma procedência no que é real. Embora eu esteja viajando em Lisboa, o que me inspira mesmo estando longe é o Brasil.
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Parabéns ao entrevistado, sempre lúcido e corajoso, e ao entrevistador.
Muito boa a entrevista. Parabéns.
Que escritor formidável! Autor e co-autor da Santíssima Trindade da teledramaturgia brasileira: Roque Santeiro, Vale Tudo e Senhora do Destino.
Papo reto e direto! Adoro “gente Aguinaldo Silva” ~ tudo a dizer sobre o que sabe e nada a referir sobre o que não conhece. Coisa rara, hoje em dia!
Gostei da matéria. Agnaldo Silva demonstra inteligência e lucidez! Concordo, a cultura do cancelamento é censura!
Força Aguinaldo, vc é um mestre no q faz.
Obrigado pela leitura e pelo comentário, Machado. Abraços
Como sempre, preciso em suas analises. E sou testemunha de quão gente boa é.
Obrigado pelo comentário, Marco. Abraços
Lúcido e sincero
Grato pela leitura e pelo comentário, Silas. Abração