“Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo”
Lamento Sertanejo
Dominguinhos e Gil
Presunto ou pernil, costela ou lombo, salame ou mortadela, salsicha ou linguiça, presunto cru ou cozido, paio ou salpicão, panceta ou carne de lata, torresmo ou bacon, codeguim ou chouriço… A carne de porco, consumida in natura ou processada, habita o cotidiano dos brasileiros. Ela é uma das maiores marcas da Península Ibérica na cultura culinária nacional e gera riquezas de Norte a Sul do Brasil.
A carne de porco não oferece risco à saúde, como imaginado décadas atrás. Nas granjas, o porco brasileiro está magro e saudável. A Embrapa até desenvolveu o “porco light”, produzido na região de Passos, em Minas Gerais. Ele tem 31% menos de gordura na carne e no toucinho e 10% a menos de colesterol. A carne suína é a mais consumida no mundo. Supera a bovina e a de frango, apesar da proibição de seu consumo pelo islamismo e judaísmo.
De onde vem essa proibição? Quando o Islã surgiu, no século 7, o porco não era um animal abundante na Península Arábica. O livro sagrado dos muçulmanos, o Corão, incorporou regras dietéticas da lei mosaica. A proibição da carne de porco é mais marcada no Islã. Para alguns, a decisão contra os suínos foi de ordem tática: dar ao Islã um ponto de vista claramente distinto do cristianismo, seu principal adversário. Isso lhe permitiria ganhar apoio dos vizinhos judeus do Oriente Médio. E uma eventual conversão dos judeus ao Islã poderia ser encorajada pela manutenção desse tabu.
Seja qual tenha sido a razão, o porco na Bíblia é desvalorizado. No Antigo Testamento, ele é tratado como animal impuro, símbolo do mundo pagão e dos inimigos de Israel. No Novo Testamento, na parábola do filho pródigo, o jovem, depois de dilapidar todos os seus bens, se torna guardião de porcos, algo estritamente proibido aos hebreus, imagem da sua decadência suprema (Lucas 15:11-32). Em outro episódio, sobre uma vara 2 mil de porcos (sic), Jesus lança uma legião de demônios, atendendo ao pedido dos mesmos (Marcos 5:12). E mata por afogamento, demônios e porcos. Uma tragédia, sem falar do impacto ambiental: 2 mil porcos apodrecendo nas águas (Mateus 8:28-34).
Seguindo suas raízes gregas e romanas, os cristãos reabilitaram os suínos. E deles fizeram uma arma para combater o Islã, sobretudo na Península Ibérica. Em Espanha e Portugal, os cristãos atacaram os mouros com a espada numa mão e um presunto, ibérico, na outra. De 711 a 1492, as fronteiras sempre se moveram entre a Espanha cristã e a muçulmana. Nada de grandes explicações teológicas para diferenciar os cristãos. Nessa disputatio bastava dizer: “Criamos e comemos porcos!”. Presuntos, linguiças e pernis eram pièces de résistance. Alguns atribuem essa adesão profunda da culinária ibérica aos suínos e cochinillos a uma identidade cultural de resistência à expansão moura, na qual le plat de résistance foi o suíno. Como os suínos nunca decepcionaram, chegaram aos altares. Na iconografia cristã, um simpático e róseo porquinho é representado ao lado de Santo Antão Abade. Como esse leitão foi parar ali, ao lado do Pai de Todos os Monges? Outra história.
Na Terra de Santa Cruz, os porcos trazidos pelos lusitanos sentiram-se em casa. Produção, consumo e exportação de carne suína vão muito bem, obrigado. O abate em 2020 foi de 49,3 milhões de suínos, um aumento de 6,4% (mais 3 milhões de cabeças) em relação a 2019. O agro brasileiro não improvisa: cria e abate quase 50 milhões de porcos por ano!
Em 2021, o abate de suínos no segundo trimestre foi o maior desde 1997: 13 milhões de cabeças abatidas, aumento de 8% em relação ao mesmo período de 2020, segundo a Estatística da Produção Pecuária do IBGE. O Sul respondeu por 66,5% dos abates, seguido por Sudeste (18,2%) e Centro-Oeste (14,1%). Sul e Sudeste garantem cerca de 85% da produção suína do Brasil. Santa Catarina é líder nacional, com 28,5% dos abates.
Já se foi o tempo de criar porco com restos de comida e lavagem, no fundo do quintal. A produção de suínos do Brasil é uma das mais seguras, sadias e tecnicizadas do mundo. Ela conta com melhoramento genético de reprodutores e matrizes, cuidados rígidos na criação com a saúde e o bem-estar animal, instalações adequadas, rações balanceadas nas várias etapas da produção, destino adequado e reciclagem dos rejeitos, etc. Os cuidados no setor chegam ao treinamento constante de caminhoneiros para transportar os animais de forma adequada e segura, minimizando acidentes e o estresse dos suínos. As localizações das criações, próximas a centros consumidores de médio a grande porte e de frigoríficos, minimizam o tempo de transporte.
A criação de suínos possui ampla participação de pequenos produtores nas diversas fases: criação de reprodutores e matrizes, produção de leitões, criação para abate ou engorda, etc. Mesmo em pequena escala, a produção exige cuidados semelhantes aos da criação comercial. Os produtores de suínos estão entre os mais profissionalizados do Brasil. Os cuidados com a saúde são extremos, diante da permanente ameaça da peste suína.
A China produzia e consumia mais da metade da carne suína mundial. E foi devastada pela Peste Suína Africana (PSA). Desde 2018, a doença dizimou 60% do plantel e desequilibrou o mercado global de carnes. Três anos após os primeiros surtos, a situação segue delicada. De 2018 a 2021, foram 11 surtos de PSA. Um quinto da produção da China era de “fundo de quintal”, com alta exposição ao vírus e controle sanitário precário. Isso levou a mudanças no modelo chinês de produção: maior controle sanitário, escala e capacitação dos produtores, melhorias em genética, manejo e nutrição. E favorecerá um maior consumo de farelo de soja. Bom para o Brasil.
A queda de preço aos produtores não aparece nos supermercados, talvez os mais felizes com tudo isso
Com a queda na produção de suínos, a China se abriu à importação de carnes. Antes da crise, ela representava menos de 5% do consumo. O Brasil ampliou a exportação de carne bovina para a China e Hong Kong. Com a progressiva recuperação do plantel suíno chinês e as novas técnicas, a produção foi retomada. Mas o povo chinês gostou do sabor incomparável da carne bovina, mesmo em pequenas doses. O primeiro bife a gente nunca esquece.
As autoridades chinesas forçam a recolocação de sua carne suína no mercado interno. Acharam pretextos e suspenderam a importação da carne bovina do Brasil. Pedem atestados, rastreabilidade e procrastinam a reabertura. E têm grandes estoques de soja para alimentar as “fábricas verticais” de suínos. A novela segue. E aqui o prejuízo é grande: suspensão de abates nos frigoríficos, pecuaristas mantendo bovinos em confinamento além do tempo, e o mesmo ocorre com o boi no pasto. A queda de preço aos produtores não aparece nos supermercados, talvez os mais felizes com tudo isso.
No Brasil, cuidados sanitários e modernização na produção de suínos e aves até agora evitaram duas pragas gravíssimas: gripe aviária e peste suína. É necessário investir e manter esse status de sanidade excepcional. Novas cepas da PSA apareceram na Europa, África e China. Na União Europeia, dez países proibiram a importação de carne suína da Alemanha, maior produtor do continente. E um caso foi apontado no Haiti. Um fantasma ronda a produção de proteína animal.
Além da carne suína, produtos como colágeno, gorduras e outros seguem presentes na vida dos brasileiros em gelatinas, pães, lasanhas, recheios de raviólis, marshmallow, chocolates, iogurtes, artefatos de couro, cosméticos, cremes dentais e medicamentos. E, ao lado da produção intensificada, cresce a criação rústica de suínos, com certificação orgânica e outras.
Essa criação “caipira” atende a novas demandas de consumo e a uma restauração sofisticada e valoriza raças orgulhosamente brasileiras (Canastra, Caruncho, Pereira, Piau, Sorocaba…) e outras, como o Serrano, em Mato Grosso. De fazendas no Araguaia a sítios de agricultores em São Paulo e Minas Gerais, os suínos são criados soltos, se alimentam de capins, leguminosas e raízes, em piquetes com lagoas de lama e áreas para procurar insetos e minhocas. Recebem cuidados sanitários e complementos de alimentação natural: soro de leite, frutas, rações vegetais, silagens, castanhas (baru, jatobá, buriti, macaúba e de outras palmeiras). Sua carne é especial.
Restaurantes famosos, como a Casa do Porco em São Paulo, integram a oferta da carne suína — em embutidos, curada, defumada, preparada no forno, na brasa ou na fritura — com vários tesouros da produção artesanal: queijos, cachaças, cafés, doces e outras iguarias. Bares focados em variações do torresmo ao joelho de porco, como o do Bigode e do Fortão em Campinas, para dar exemplo perto de casa, não param de surgir, e oferecem cervejas artesanais e muita comida de boteco. Em Guarulhos, já tem até um Festival Anual do Torresmo. É tempo de deixar a picanha um pouco de lado e focar na carne suína. Entre esses bares famosos, estão os de Minas Gerais, com seus nomes criativos: Pé de Porco ou ainda o The Tudo um Porco, de Pouso Alegre. É para pousar e se alegrar mesmo.
Leia também “Laranja, verde e amarela”
Ótimos esclarecimentos, o Dr Evaristo é uma pessoa conhecida e respeitada pelo seu alto conhecimento no agropecuária e outras áreas.
Deixa dar uma ideia de como o porco é apreciado.
TORRESMO
Bar do Rico
R$ 85,00
Cútis de suíno flambada com lascas
de frutas cítricas c/ acompanhamento de destilado de cana caiba.
Bar do Pobre
R$ 15,00
Cachaça com Torresmo
Uma beleza de artigo sobre o porco. A história da regeneração do porco, que de demônio passa a ser anjo, teve sua consumação na recente substituição do periquito para o porco, como símbolo esportivo. À guisa de provocação, a torcida corintiana lançou o apelido de “porco” aos torcedores palmeirenses descendentes de italianos, a quem acusavam de comportamento suíno. Em esportiva reação, o porquinho foi adotado pela torcida alviverde que, neste momento comemora alegremente a conquista do tri na Libertadores. Está duplamente certo o professor Evaristo: o porco de fato está em alta.
Muito boa sua explanação sobre os porquinhos.
Deu até vontade do torresmo com cachaça.
Parabéns Dr. Evaristo pela divulgação de nossa tradição ibérica. Em Espanha e Portugal, os cristãos atacaram os mouros com a espada numa mão e um presunto, ibérico, na outra. De 711 a 1492, as fronteiras sempre se moveram entre a Espanha cristã e a muçulmana. Nada de grandes explicações teológicas para diferenciar os cristãos. Nessa disputatio bastava dizer: “Criamos e comemos porcos!”.
Mais uma aula primorosa do Prof. Evaristo. Parabéns.
Excelente artigo sob os suínos da Bíblia a mesa dos brasileiros uma iguaria muitos apreciada entre nós. Também na península Ibérica o presunto pata negra.
Muito esclarecedor que nossos porquinhos são criados com Boa alimentação e higienização. Valorização do Agro Negócio Brasileiro.
Excelente artigo sob os suínos da Bíblia, a mesa dos Brasileiros, uma iguaria muito consumida na península Ibérica o presunto pata negra. Saber que aqui no Brasil estes porquinhos estão sendo criados com todo cuidado da alimentação a higienização. Agro negócio Brasileiro em alta.
Li certa feita, que a restrição à carne de porco no velho testamento, chamada de imunda, derivava da concorrência dos suínos na alimentação com os humanos.
Enquanto os outros animais se alimentavam apenas de vegetações não utilizada pelas pessoas, havia necessidade de fornecer grãos aos porcos para sua manutenção.
Também a dificuldade de locomoção pelos povos nômades com grande numero de suínos desencorajava sua criação.
Adorei a explicação sobre este assunto e a sua temporalidade na história!
Mais uma coluna deliciosa de ler. Saborear cada palavra e informação. Passado e presente se conectar pela história e vislumbram um futuro promissor para a suinocultura, que movimenta o Agro, cooperativas e, principalmente, o pequeno produtor rural! Um show de qualidade!
Mais um fato que comprova o potencial brasileiro. Produção inteligente e empreendedora. É do interesse do homem desenvolver suas habilidades e produzir riquezas de forma racional respeitando a natureza das coisas. Viva o Brasil!
Obrigado Evaristo por compartilhar sua matéria recheada de cultura, história e economia. Parabéns!
Parabéns ao Prof Evaristo de Miranda pela excelente matéria. Acrescentaria que após disseminação do uso de bios digestores na suinocultura, estamos produzindo muita energia elétrica com a queima do gaz metano em geradores. Contribuindo com a despoluição e a falta de energia elétrica.
Mais um artigo revelador , para a sociedade como um todo , mas também para os próprios produtores rurais!
Professor Evaristo é um apóstolo do conhecimento. Um evangelista da ciência.
Para piracicabano, nao tem melhor combinação do que torresmo e um “shot” de pinga boa. Valeu Evaristo, ja sei mais sobre porcos do que ontem e isso me ajuda a manter o habito do consumo
Excelente e esclarecedor. Gosto muito dos artigos do Dr. Evaristo de Miranda pois trata das questões mais complexas de forma clara, objetiva e inteligível. Destrincha problemas complexos tornando-os de fácil entendimento focando no essencial.
Excelente artigo! Parabéns. Economia, História, Culinária… tudo sobre a produção suína, nacional e mundial.
Parabéns Evaristo, muita informação técnica curiosidades que tornam o texto mais atrativo prendendo o leitor até o final.
A cada artigo, o Mestre Evaristo enriquece nossos conhecimentos sobre a nossa exuberante agropecuária. O Brasil necessita de mais Evaristos.
Parabéns Evaristo pelo artigo muito esclarecedor, só temos que agradecer a todos os pesquisadores, em prol da qualidade na produção agropecuária. O Brasil segue a passos largos no desenvolvimento sustentável da produção do Agro, da Pecuária, e ambiental.
Excelente texto, navegando pela história e pontuando a geopolítica com base numa cadeia produtiva onde, mais uma vez, o Brasil se destaca pelo avanço tecnológico e empenho de seus produtores rurais.
Que artigo fabuloso! Garantimos com tecnologia a segurança alimentar da população e o desenvolvimento da pecuária no nosso país. Quem não gosta de um porquinho ?
Parabéns Dr Evaristo!!!! Muito conhecimento histórico, cultural , ciência, tecnologia e economia!!!! Tudo isso é Agro !!! É Brasil 🇧🇷 TMJ
Abordagem inteligente e informativa: o produto é suas características e qualidade, o território, importância econômica e mercado internacional. Hora de aumentar o consumo nacional e restaurantes e bares especializados é um caminho.
Será que temos no Brasil alguma espécie semelhante ao porco preto, ou ao pata negra ibérico? Esse artigo me inspira a seguir adiando indefinidamente a dieta que deveria fazer. Sob as bênçãos de Santo Antão Abade.
Estimado Ministro
Estou também interessadissimo nessa informação! Parabéns pelo bom gosto.
Parabens Evaristo, por mais um artigo mostrando a força do Agro , e desmistificando lendas e crendices do passado.
Diz a lenda, que Mao prometeu aos chineses, pós revolução, um prato de arroz/dia, um pedaço de porco/semana e uma bicicleta na vida. Embora possuidora do maior rebanho suino do mundo, vejam o enorme potencial de venda da carne suina.brasileira, para essa nova China enriquecida
Claudio
Agro vem de agricultura, ou seja, do cultivo de plantas. Criação de animais para o abate é outra coisa. No Brasil já há 14% da população vegana/vegetariana. Isto mostra uma pequena evolução num mundo sem violência contra os animais. PS: A violência do Homem começa no prato de comida.
Agro ≠ Agropecuária???
Marcus
Sobre o Homo Sapiens: “A espécie surgiu há cerca de 350 mil anos na região leste da África e adquiriu o comportamento moderno há cerca de 50 mil anos.” (fonte, Wikipedia).
Durante este período todo, seu organismo foi adaptado ao consumo de diversas fontes de alimentos vegetais ou animais, motivo de possuirmos dentes que cortam, dilaceram ou esmagam, portanto, o consumo de carnes faz parte de sua dieta alimentar há milênios.
A opção de não consumir carne é pessoal e não demonstra qualquer tipo de evolução.
A violência faz parte da natureza, com os animais maiores predando os menores, e o homem está no topo desta cadeia alimentar, se não pelo seu porte, por seu desenvolvimento tecnológico; inclusive para a criação de animais para o abate.
Além do mais tem o aspecto econômico. Eu, por exemplo sempre comprei miolo de alcatra e de vez em quando uma boa picanha que estão muito caros e preços proibitivos. Mas agora meu consumo consiste em maçã-de-peito (40%) + pernil (55%) + bacon (5%) e misturados com tempero de alho e sal com coentro em sementes mais pimenta preta, moídos todos juntos por duas vezes, o que resulta em um excelente bife de hamburguer bem mais barato e mais saboroso. É só uma questão de inteligência.