É um problema, mais um, que a elitezinha brasileira de todos os dias, essa que diz ao resto do país o que está acontecendo, o que é aprovado e proibido e o que você tem de pensar a respeito de tudo, está fazendo de conta que não existe. O problema é a distância cada vez maior que vai separando esse Brasil, o que aparece nas manchetes de jornal e no horário nobre, dentro do qual se tomam as decisões e se determinam quais os assuntos que devem ser debatidos, e a população evangélica. É complicado, porque há cada vez mais evangélicos — e fingir que eles se resumem a meia dúzia de empregadas domésticas e umas igrejinhas perdidas no fundão das periferias não é mais, definitivamente, uma opção. Os evangélicos deixaram de ser uma coleção de grupos religiosos formados por minorias que discordam da grande corrente central da Igreja Católica. Estão se tornando uma classe social.
Ter preconceito contra o que pode estar se transformando numa maioria é um convite aberto à guerra política
E agora? Não se trata mais de debater uma questão religiosa, e sim uma realidade política. Os evangélicos, simplesmente, são muitos — são numerosos demais, portanto, para serem ignorados e, sobretudo, excluídos do debate nacional. Não faz nenhum sentido. O Brasil é um país onde a maioria esmagadora da população é pobre. A maioria dos pobres é evangélica — não só porque vai ao culto e paga o dízimo ao pastor, mas porque tem valores próprios, e esses valores são os mesmos das profissões de fé evangélicas, a começar pelos que envolvem moral, família e costumes sociais. Mas o Brasil “oficial”, o Brasil da mídia, dos formadores de opinião e das classes intelectuais, insiste em ignorar essa realidade, porque ela é muito incômoda. Pior: o Brasil que se considera “superior” é francamente hostil ao universo evangélico. Pior ainda: tem preconceito explícito contra seu modo de vida, suas ideias, suas crenças, suas posições políticas e seu sistema ético. É um problema, e de bom tamanho. Ter preconceito contra uma minoria é um erro moral. Ter preconceito contra o que pode estar se transformando numa maioria é um convite aberto à guerra política. É precisamente onde estamos neste momento.
A elite brasileira que existe aí — bem, você sabe quem é essa gente. São as empresas desesperadas em atender às exigências dos “movimentos” negros, feministas ou gays — ou, mais exatamente, às exigências feitas pelos proprietários dessas organizações. É a imprensa em peso. São os militantes do clima — soldados da Amazônia e inimigos do aquecimento global. São os departamentos de marketing que trocaram a ideia de vender pela ideia de ser “justo”. É a universidade como um todo. São os cientistas políticos, os banqueiros de investimento e, de um modo geral, o mundo de quem não vive do trabalho manual. São os donos dos “movimentos sociais”, das ONGs e das organizações em favor da “democracia popular”. São os defensores dos direitos de quem está do “lado certo da contradição” — apenas desses. São os encantados com o Black Lives Matter, a máscara para toda a eternidade e os concursos de “Miss” ganhos por homens. São as grandes empresas e as lideranças políticas que aparecem no jornal. Enfim — já deu para ter uma boa ideia, não é? Pois então: este mundo todo está convencido de que os evangélicos brasileiros são o mal em estado puro. Não tem, é claro, a mais remota ideia do que fazer com eles na prática: como conviver com milhões de pessoas que estão incomodando, ou se livrar delas? Mas são contra a sua existência na vida real. Imaginam um Brasil sem evangélicos. Não se conformam, talvez mais que tudo, com o fato de que esses milhões de brasileiros pobres não são de “esquerda”. Se são pobres deveriam, é claro, pensar como pensam os editorialistas da imprensa ou os diretores de comerciais de TV. Mas não pensam. É o diabo.
O preconceito contra os evangélicos que existe na elite brasileira é incomparavelmente pior do que qualquer preconceito racial, ou contra homossexuais, ou contra mulheres, que possa existir no Brasil de hoje. É visível no desprezo aberto pelas práticas religiosas, pela conduta social e pelas ideias, crenças, valores e hábitos cotidianos dos evangélicos. Está presente, de forma explícita ou disfarçada, nos editoriais da imprensa que pregam as virtudes do “Estado laico”. É visto todos os dias na maneira depreciativa ou francamente irritada com que se trata a “bancada evangélica” — um mal em si, para a crônica política, algo que deveria merecer a repressão imediata do ministro Alexandre de Moraes e do seu inquérito perpétuo contra “atos antidemocráticos”. Para o Brasil correto, civilizado e que sabe pensar, o “evangélico” — assim mesmo, no genérico, como se fossem todos uma pessoa só — é o exemplo perfeito e acabado do brasileiro primitivo, atrasado e grosseiro, tanto do ponto de vista político como do ponto de vista social. O “evangélico”, nessa visão de mundo, é o sujeito que atravessou a fronteira do “fascismo”, ou está chegando a ela. É alguém francamente malvisto nos departamentos de RH das empresas “progressistas” como a Fiat, etc; não vai conseguir emprego se souberem que frequenta o culto. A discriminação contra o evangélico deixou, há muito, de ser uma patologia apenas religiosa. Passou a ser o mais malicioso preconceito de classe no Brasil de 2021.
André Mendonça e toda a população evangélica vão sendo tratados como inimigos de classe pela esquerda
Tudo isso ficou claro, mais uma vez, na aprovação do nome do advogado André Mendonça como novo ministro do Supremo Tribunal Federal. Sem que até hoje tivesse aparecido a menor justificativa para o que aconteceu, o seu nome levou quatro meses para ser submetido à aprovação do Senado — uma aberração que não recebeu o menor reparo de ninguém. Na sabatina, teve de responder a questionamentos sobre a sua fé religiosa, como se isso fosse alguma coisa suspeita, ou francamente ilícita — algo que não aconteceu com nenhum dos outros membros do STF. Ninguém questionou os seus conhecimentos de Direito; só se falou da sua religião. Desde que o presidente da República apresentou o seu nome, André Mendonça tem sido visto pela mídia com desprezo — como se fosse um mero servente de Jair Bolsonaro. Os intelectuais o tratam como um homem das cavernas em relação às questões de costumes. Está tendo de explicar o fato de ser evangélico — como se isso não fosse um direito legítimo de qualquer cidadão brasileiro. Se um conjunto de manifestações assim não é preconceito, direto na veia, então o que é?
A verdade é que André Mendonça e toda a população evangélica vão sendo tratados cada vez mais como inimigos de classe pela esquerda e por seus atuais satélites — o “centro” que se define como “liberal, democrático e equilibrado”, e que vive no pavor de ofender Lula, desagradar aos artistas da Globo e parecer “de direita”. Qual é o problema? Num país em que a Constituição estabelece a plena liberdade de religião, André Mendonça tem tanto direito de ser evangélico, e estar no Supremo, quanto os outros têm direito de estar lá com as suas próprias religiões ou sem religião nenhuma. Ou não tem esse direito? Do jeito que a sua ida ao STF está sendo tratada, a impressão é que o sujeito tem de ser militante do aborto ou do casamento gay para ser membro de um tribunal superior de justiça no Brasil de hoje. É perversão da ideia de que uma sociedade deve ter lugar para pessoas de convicções diferentes. Convicções como as de André Mendonça, segundo o Brasil “que pensa”, não deveriam ser permitidas. São “antidemocráticas”. Assim como o STF diz que a liberdade de expressão tem “limites”, e que não pode ser utilizada se o cidadão é de direita, as forças que discriminam os evangélicos acham que a liberdade de religião também é “relativa” e só deveria valer para os que aceitam os tratados do ministro Luís Roberto Barroso e seus companheiros sobre comportamento sexual, relações familiares e outras questões de costumes.
Na sua sabatina, o novo ministro desfez as objeções do Comitê Nacional de Vigilância Religiosa em poucas palavras. Disse que, como cidadão, é evangélico. Como juiz, obedece à Constituição — e pronto, acabou a discussão. Se obedecer mesmo será um avanço notável em relação a diversos dos seus colegas, que fazem exatamente o contrário. Podem ser leigos de puríssimo sangue. Mas na hora de assinar os seus votos decidem o oposto do que está escrito na lei. Qual é a vantagem? A postura de um magistrado em relação à religião não pode, obviamente, ser critério para a sua ida ao Supremo Tribunal Federal. Também não pode ser um impedimento.
O preconceito contra os evangélicos está criando dois Brasis. É um caminho perigoso.
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