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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 98

O cabo de guerra

Políticos quase sempre vivem em disputa com os economistas do governo, principalmente quando estes são liberais, defensores, portanto, das privatizações e de uma menor carga tributária

Ubiratan Jorge Iorio
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“Eu achava que a política era a segunda profissão mais antiga.
Hoje vejo que ela se parece muito com a primeira.”
Ronald Reagan

“É melhor não contestar, foi uma decisão política da diretoria.” É muito provável que o leitor já tenha ouvido conselhos desse teor em sua empresa ou em uma repartição pública. Esse clichê é a aceitação de que uma “solução política”, uma vez decretada, mesmo quando descabida, dificilmente é revertida, porque decorre do exercício de algum poder — o que a sobrepõe às melhores soluções técnicas.

Do ponto de vista da Ciência Política, os fins das atividades políticas estão longe do consenso: os mais ingênuos listam justiça, bem comum, igualdade; os muito crédulos acrescentam até a felicidade; já os mais perspicazes enfatizam o poder e os interesses individuais. No mundo real, contudo, simplórios e sagazes têm de conviver com a política, acreditando ou não em seus benefícios, até porque ela afeta o seu dia a dia.

As atividades políticas, assim como as econômicas, consistem em ações sucessivas, em escolhas individuais permanentes, invariavelmente em busca dos melhores meios para alcançar determinados fins (que podem ser bons ou maus, éticos ou indignos, louváveis ou condenáveis) — com a diferença de que os meios de que a política faz uso são coercitivos, enquanto no campo da economia são voluntários. A ação humana em qualquer área visa sempre a aumentar a satisfação individual do agente, mas, enquanto os objetivos na economia buscam o prazer proporcionado por bens e serviços, nas atividades políticas o objetivo é conquistar, manter ou aumentar o poder sobre outros indivíduos. O poder, então, pode ser visto como a dimensão política da ação humana.

Leonard James Callaghan (1912-2005), primeiro-ministro do Reino Unido de 1976 a 1979 e ex-líder do Labour Party, não acreditava em ministros da Economia, o que o levou a afirmar, com sincero sarcasmo, que “só há dois tipos de ministros da área econômica, os que saem a tempo e os que saem depois do tempo”. Talvez estivesse certo, mas há pelo menos dois motivos para desconfiar de sua afirmação: o primeiro, sujeito a debates, é que pode ter sido injusto com alguns ex-ministros; o segundo, indiscutível, é que ele era um político.

Só existem dois tipos de economistas trabalhando em governos: os liberais e os que estudaram em livros errados

Sim, políticos quase sempre vivem disputando um cabo de guerra com os economistas do governo, principalmente quando estes são liberais, defensores, portanto, da economia de mercado, de privatizações, abertura econômica, descentralização, menor carga tributária, contra o protecionismo e os privilégios, e, principalmente, apologistas ferrenhos do enquadramento dos gastos do governo em um regime austero, ou seja, como normalmente políticos e bons economistas são como gato e rato e considerando que a compulsão para gastar o dinheiro alheio faz parte do ethos da classe política — assim como caçar para os tigres e fazer gols para o CR7 —, é bem provável que o motivo da queixa de Callaghan — não fosse ele um trabalhista — tenha sido a rejeição, por parte dos guardiões dos cofres públicos britânicos, de algumas propostas devoradoras de Orçamentos.

Por outro lado, é cabível expandir sua ironia para incluir os economistas, sugerindo que, sendo ou não ministros, só existem dois tipos desses profissionais trabalhando em governos: os liberais (principalmente os austríacos) e os que estudaram em livros errados. E a preferência dos políticos recai sempre sobre os últimos, porque, entre pessoas chatas, austeras, que quase sempre atravancam os planos de suas excelências, e sujeitos simpáticos, especialistas em bajulá-los e a adornar seus apetites orçamentívoros mais primitivos com teorias pretensamente científicas, a escolha é óbvia.

Entretanto, é preciso considerar que, nas democracias, qualquer que seja o grupo em que se enquadrem, os poderes dos economistas são limitados à apresentação e à defesa de propostas — que podem ser tecnicamente corretas ou equivocadas — ao presidente ou ao primeiro-ministro; este, após o crivo pessoal, pode ou não sujeita-las à ala política do governo e ao Parlamento. O bater do martelo — novamente — não é técnico, mas político.

Políticos X economistas

O conflito entre bons economistas e políticos é natural e muito antigo. Vamos citar apenas dois episódios. O primeiro, na França, foi a famosa controvérsia ocorrida entre 1566 e 1568, entre Jean Bodin, que apontava como causa da inflação o fluxo crescente de metais preciosos da América do Sul para a Europa, e o mercantilista Malestroit, conselheiro do rei francês. O segundo, em 1979, no Brasil, foi a discordância entre dois ministros do governo Figueiredo, o do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, e o da Agricultura, Delfim Netto. Simonsen, estritamente técnico, percebeu a necessidade de maior austeridade na política econômica, em resposta às crises externas do petróleo e dos juros. Delfim, literalmente político, defendia suas práticas “desenvolvimentistas” de sempre. Simonsen perdeu a paciência, pediu o boné e retornou para a FGV, retomando as aulas de que tanto gostava na Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE). Perdeu o Brasil (mas eu ganhei um excelente professor).

É evidente que o cabo de guerra entre políticos e economistas costuma ser bem menos acirrado nos governos de esquerda, cujos ministros da Economia também são “progressistas” e, portanto, chegados a um estourozinho jeitoso de gastos aqui e uma pedaladazinha fiscal malandra ali, a título de “gerar renda e emprego”. Em qualquer caso, entretanto, a disputa é mais intensa em anos de eleições, sempre repletos de promessas e juras de amor aos eleitores. É compreensível, então, a queixa ao mesmo tempo cáustica e jocosa de um velho amigo, ex-secretário de Fazenda da prefeitura carioca e, portanto, com conhecimento de causa, de que só há um tipo aceitável de político: o que não foi eleito.

Vemos, então, de um lado da corda, a maioria dos candidatos com a mesma conversa fiada, especialmente naquele ridículo horário “gratuito” que nos é pespegado como um hino à democracia — quando, na verdade, é um acintoso e debochado desfile de mentiras anunciadas — sempre com a mesma conversa fiada: menos impostos, mais saúde, educação, habitação, saneamento e transportes, menos “desigualdades”, mais renda, mais empregos, menos corrupção, menos “exclusão”, etc. Seria bom crer na sinceridade de alguns, mas infelizmente suas eventuais boas intenções não têm como germinar enquanto não acontecerem profundas reformas em nosso sistema político.

Do outro lado do cabo — principalmente quando o ministro da Economia é adepto dos valores liberais —, temos os valentes soldados de Leônidas, guardiões da austeridade fiscal e da economia de mercado, quase sempre tidos como sujeitos malvados e sem sensibilidade “social”. Nessas ocasiões, é útil imaginar o presidente — qualquer que seja — com políticos taramelando incessantemente em um dos seus ouvidos as costumeiras alegações em favor da abertura do cofre e com um ministro responsável no seu outro ouvido, tentando convencê-lo de que esses conselhos são maus. Sem dúvida, é uma escolha difícil para o chefe de governo, especialmente quando ele sabe que é essencial manter e até aprofundar a consolidação fiscal e, ao mesmo tempo, que não pode governar sem um mínimo de apoio.

Situação X oposição

É interessante observar como as resistências políticas à austeridade e aos programas liberais são comuns a dois grupos de “representantes do povo”: membros da ala política da situação e parlamentares da oposição. É que, embora seus objetivos sejam diferentes, há dois traços de união entre ambos — o da busca por votos e o do apetite para gastar os recursos extraídos dos pagadores de tributos. É oportuno, também, observar que, além dos custos das soluções ditas políticas excederem invariavelmente os seus benefícios, estes são desfrutados por determinados grupos, enquanto os seus custos punem todos os pagadores de impostos e a economia do país. Ou seja, elas concentram benesses e distribuem a conta.

Vamos a dois exemplos claros da disputa entre os defensores do Erário e os que desejam arrombá-lo. O primeiro é o “fundão”. Qualquer cidadão que na infância foi ensinado a manejar as quatro operações aritméticas e que aprendeu valores éticos com seus responsáveis sabe que o fundão de R$ 4,9 bilhões, aprovado por deputados e senadores — que, aliás, ainda não desistiram de aumentar esse valor absurdamente alto para os R$ 5,7 bilhões postulados inicialmente —, é um acinte econômico e um duplo desaforo moral, configura desatenção para com a situação de pandemia e desrespeito a todos os pagadores de impostos. Essa ofensa aos cidadãos não é exclusiva da oposição, uma vez que vários integrantes da chamada base de apoio ao governo ajudaram na sua aprovação.

A outra ilustração do cabo de guerra é a questão do reajuste dos servidores públicos. Como se sabe, o presidente prometeu, por razões de governo economicamente inoportunas, embora normais pela práxis política, reajustar os salários dos policiais da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e do Departamento Penitenciário Nacional. Os recursos para tal foram contemplados no Orçamento da União de 2022, com uma dotação prevista de R$ 1,79 bilhão. Isso levou as outras categorias de funcionários públicos, com o argumento da “isonomia” — economicamente injustificado, porém juridicamente legal —, a pressionarem para também se beneficiar, sem que houvesse previsão orçamentária para esses reajustes.

O Ministério da Economia, obviamente, manifestou-se desde o início contrário a essas concessões, sabedor de que logo surgiriam pressões de outras categorias, colocando mais obstáculos para o processo de consolidação fiscal que a equipe econômica vem promovendo, praticamente contra tudo e todos. E surgiram, para surpresa, apenas e talvez, do boto-cor-de-rosa.

Brandindo bandeiras vermelhas de mil novecentos e antigamente e com os simulacros de valentia característicos dos especialistas de caminhões de som, tendo a “isonomia” como escudo e alegando que o governo teria cortado os recursos necessários para que seus salários fossem reajustados, funcionários da Receita Federal encenaram o estranho espetáculo de colocar à disposição seus cargos comissionados, no que foram copiados por servidores do Banco Central e de outros órgãos, em um movimento reivindicatório de reajustes gerais, coordenado pelo Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), que enfeixa 37 associações sindicais e diz representar mais de 200 mil servidores.

Do ponto de vista econômico, chega a ser impatriótico defender esses reajustes, por muitas razões: (a) a economia ainda não saiu de uma pandemia, que obrigou o governo a desviar-se temporariamente de suas metas fiscais; (b) os servidores públicos já são “brasileiros especiais”, por terem estabilidade; (c) seus salários, mesmo sem reajustes há anos, situam-se muito acima da média dos salários do setor privado; (d) quem trabalha na iniciativa privada — os “brasileiros comuns” — pode perder seus empregos, e seus eventuais reajustes não dependem de decisões políticas, mas da própria produtividade e da receita da empresa; (e) a austeridade fiscal é mais necessária do que nunca, porque, junto com o caminho liberal que o governo se propôs a seguir, assegura que a economia vai poder andar de fato para a frente; (f) a avaliação política desses pleitos está errada, porque os eleitores de hoje evoluíram e são favoráveis à austeridade e às reformas: elas não “tiram”, mas “dão” votos.

Se, pelo enfoque econômico, o timing desse movimento de sindicatos é o pior possível, cheirando a sabotagem e chantagem, olhado pelo ângulo da política é claramente uma demonstração de que se trata de um embuste, um ardil duplamente útil, seja para desgastar o governo, acusando-o de irresponsabilidade fiscal, seja para atrair votos para sindicalistas que dizem representar os servidores, mas que nada mais são do que gerentes de escritórios de partidos de esquerda, inteiramente aparelhados e comprometidos.


Ubiratan Jorge Iorio é economista e escritor. Instagram: @ubiratanjorgeiorio

Leia também “Quem planta inflação não colhe crescimento”

4 comentários
  1. Alberto Santa Cruz Coimbra
    Alberto Santa Cruz Coimbra

    O primeiro parágrafo é de um brilhantismo sem fim. Cabe em todo esse desatino de poder aplicado às decisões em Saúde de Pindorama. Saudações, e muito obrigado pelo texto. Não surpreende, vindo de quem veio.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Disse tudo. Parabéns.

  3. MARIA CHRISTINA GARMS
    MARIA CHRISTINA GARMS

    Prezado Ubiratan! Texto excelente, claro, e que avalia perfeitamente o apetite voraz da classe politica em detrimento do bem estar da população. Parabéns!!!

  4. José Antônio Batalha Zocccoler
    José Antônio Batalha Zocccoler

    Claro, querem as empresas inúteis como cabedal de emprego

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