Pular para o conteúdo
publicidade
Foto: Shutterstock
Edição 83

O choque da crise energética global

Escassez de recursos e alta no preço dos combustíveis não são exclusividade do Brasil

Luis Kawaguti
-

Na União Europeia, a escassez de gás fez as contas de luz triplicarem. Na China, a alta nos preços do carvão tem gerado apagões e redução da produção industrial. Nos Estados Unidos, o valor da gasolina disparou devido a uma alta do petróleo.

Por mais que boa parte da imprensa nacional se esforce para culpar o governo atual e vender a tese de que só o Brasil vive o caos, o fato é que a crise energética se instalou nos mercados globais. O cenário brasileiro, com o aumento nos preços da energia elétrica, do gás de cozinha e dos combustíveis, está longe de ser um caso isolado.

Cerca de 60% dos 179 gigawatts de energia elétrica gerados pelo Brasil dependem das usinas hidrelétricas, e o país passa por uma severa crise hídrica. Em paralelo, o processo de desvalorização do real e a escalada global do preço do petróleo levam a aumentos sucessivos nos postos de gasolina e nas distribuidoras de gás. Mas por que o setor energético está em crise no mundo todo?

Analistas ouvidos por Oeste identificam duas causas principais. Uma delas é a falta de investimentos no processo de transição do uso de fontes de energia fósseis (como carvão e petróleo) para fontes limpas e renováveis, como a energia solar e a eólica. A preocupação mundial com as mudanças climáticas fez muitas nações imporem restrições ao uso das chamadas energias sujas. Em outras palavras, ficou mais arriscado investir em um setor fadado a desaparecer no futuro. O investimento mundial em exploração e produção de petróleo caiu da ordem de US$ 800 bilhões em 2014 para cerca de US$ 400 bilhões, segundo levantamento divulgado pela revista The Economist.

A segunda causa para a crise é a retomada econômica após o arrefecimento da pandemia de covid-19. Ela gerou um aumento na produção de bens e serviços para atender a uma demanda global represada. E o processo não foi acompanhado por uma elevação na produção de energia. “Com a retomada econômica no pós-pandemia, muito do consumo que não foi feito antes está sendo feito agora”, disse a pesquisadora Virgínia Parente, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo. “Então tem muita fábrica a todo o vapor precisando de energia.”

União Europeia sofre com a falta de gás

Pequim diminuiu os limites de produção de carvão em nome da meta climática de neutralizar suas emissões de carbono em 2060. As importações do produto também foram reduzidas devido ao alagamento de minas na Indonésia e a restrições regulatórias de exportação na Austrália. Isso elevou o preço do carvão e forçou o desligamento de termoelétricas. Segundo o jornal estatal Global Times, estão ocorrendo cortes de fornecimento em ao menos quatro províncias: Guangdong, Heilongjiang, Jilin e Liaoning.

Espanha, Itália, Grécia e Grã-Bretanha estudam medidas emergenciais, como subsídios e redução de impostos

A paralisação de parte do parque industrial chinês gerou falta de produtos manufaturados, componentes e peças. Esse processo está causando choques em cadeias de produção globais, afetando o faturamento de empresas e economias em várias partes do mundo. Na vizinha Índia, onde o carvão representa 70% da geração de energia elétrica, a baixa nos estoques dessa fonte de energia pode resultar numa situação similar.

Um inverno particularmente rigoroso no ano passado fez os estoques de gás natural baixarem em toda a Europa. Em paralelo, a produção foi reduzida na Noruega e na Grã-Bretanha devido a gargalos da pandemia.

A escassez do produto e a aproximação do inverno estão elevando os preços do gás e da energia elétrica. Boa parte das usinas termoelétricas do continente depende do gás. Os valores das contas de luz chegaram a triplicar em alguns países e a possibilidade de apagões não é descartada. Espanha, Itália, Grécia e Grã-Bretanha estudam medidas emergenciais, como subsídios a consumidores e redução de impostos.

Para tentar solucionar a crise, a União Europeia pressiona a Rússia para aumentar o fornecimento de gás. Cresce o entendimento entre os europeus de que Moscou não aumenta as exportações por questões geopolíticas. O governo de Vladimir Putin estaria condicionando o fornecimento à regulamentação de um de seus principais projetos estratégicos: o Nord Stream 2, o gasoduto que liga a Rússia diretamente à Alemanha. Moscou nega a acusação e diz que fornece as quantidades previstas em contrato.

Disparada do preço da gasolina nos EUA e na Grã-Bretanha

Nos Estados Unidos, os preços da gasolina e do diesel chegaram a patamares elevados que não eram atingidos havia mais de sete anos. A alta foi uma consequência direta da elevação abrupta do preço do petróleo, pressionado pela retomada econômica e pelas crises energéticas na Europa e na Ásia. O preço do barril passou dos US$ 80 em setembro pela primeira vez em três anos.

No Reino Unido, há falta de gasolina nos postos e aumento de preços por outro motivo: com a pandemia e a saída da União Europeia, não há motoristas de caminhão suficientes para levar o combustível das refinarias aos postos. O governo britânico tentou dar vistos emergenciais para motoristas de países europeus e mobilizou as Forças Armadas para fazer o transporte.

Parte da crise energética global foi também atribuída por analistas à baixa performance de algumas fontes de energia renováveis. Na Europa, as usinas eólicas geraram menos energia que o esperado. No Brasil, a seca reduziu drasticamente o nível das represas, prejudicando a geração hidrelétrica. “De 2012 para cá, apenas um ano teve hidrologia na média histórica, todos os outros foram abaixo, e esse último o pior de todos”, disse Roberto Brandão, pesquisador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A falta de chuvas levou ao acionamento de usinas termoelétricas, cujas operações a gás, óleo e carvão são mais caras que as das hidrelétricas. A bandeira tarifária de cobrança nas contas de luz foi elevada para o patamar mais alto. “O fato de os combustíveis terem os preços ditados pelo mercado internacional e pelo dólar faz com que a conta das térmicas para nós seja ainda maior”, afirmou Brandão.

Segundo o pesquisador, o governo brasileiro não tem controle sobre esses fatores. Pode somente cogitar fazer um empréstimo para diluir ao longo do tempo os aumentos nas contas de energia da população. Já a pesquisadora Virgínia Parente afirmou que a crise elétrica poderia ter sido amenizada se houvesse investimento prévio em linhas de transmissão de energia.

A elevação global do preço do petróleo também gerou aumentos sucessivos no preço da gasolina no Brasil, cujo valor médio do litro é hoje de R$ 6,32. No reajuste mais recente, a Petrobras anunciou aumento de 7,2% na gasolina e no gás de cozinha.

O governo tem lidado com a situação cortando o imposto federal sobre o gás de cozinha e sugerindo a retirada de intermediários no processo de venda. O Planalto também torce para que o Congresso vote um projeto de lei que unifica as alíquotas de ICMS sobre combustíveis. Segundo seu relator, o deputado federal Jaziel Pereira de Souza (PL-CE), conhecido como Dr. Jaziel, a mudança teria potencial para reduzir o preço final da gasolina comum em 8%.

O governo do presidente Jair Bolsonaro tem afirmado que o preço da gasolina poderia ser reduzido se os governos estaduais cobrassem menos ICMS. Os governadores, por sua vez, afirmam que não houve aumento de impostos. Segundo o economista Luciano Losekann, da Universidade Federal Fluminense, a alta dos combustíveis não deve sair do noticiário nos próximos meses e gerará muita polêmica sobre o papel da Petrobras na variação dos preços. “Não podemos ficar descolados do que está acontecendo no mercado internacional”, afirmou. “Não tem sentido algum subsidiarmos combustíveis fósseis a essa altura da história.”

Todas as dimensões da sustentabilidade

O atual colapso energético global já vem sendo tratado por analistas como a primeira grande crise do processo de transição para a energia limpa. O Ministério de Minas de Energia afirmou que, no momento, as nações estão focadas em atender a suas respectivas demandas. E que “possivelmente, após a normalização do atendimento energético mundial, haverá um retorno à busca da transição energética”, afirmou a pasta por meio de nota.

Segundo relatório divulgado na semana passada pela Agência Internacional de Energia, a retomada do consumo de combustíveis fósseis neste ano pode gerar o segundo maior aumento absoluto de dióxido de carbono já registrado. A organização recomendou que empresas e nações tripliquem o investimento em energias limpas até 2030.

O Ministério de Minas de Energia afirmou que até 2030 pretende investir R$ 2,5 trilhões em petróleo, gás e biocombustíveis. No setor elétrico, o plano é investir R$ 400 bilhões. Faz parte da estratégia aumentar a participação das energias solar e eólica dos atuais 11% da matriz energética para 25%.

Segundo Virginia Parente, seria necessário que as hidrelétricas passassem a ter reservatórios maiores de água para garantir o abastecimento de energia nos períodos de seca. A pesquisadora também integra o centro de pesquisas RCGI (Research Centre for Greenhouse Gas Innovation), ligado à USP e à Shell.

Atingir os objetivos delineados pelo ministério será um grande desafio, de acordo com Paulo Ferrer, pesquisador de governança de projetos da Universidade de São Paulo e consultor da Omnicomm. “Para realizar um programa como esse é preciso pensar em todas as dimensões da sustentabilidade”, observou. “Ele tem de ser viável economicamente, gerar benefícios sociais e não prejudicar o meio ambiente.”

Para Losekann, o grande erro que levou à crise global foi subestimar a complexidade da busca pela energia limpa. “A transição energética já é um movimento consolidado”, disse o economista. “Não existe o risco de retroceder ou a história voltar para trás. Mas acho que subestimaram um pouco os custos dessa transição”.

Leia também “A segunda revolução elétrica”

4 comentários
  1. Luiz Antonio Fraga
    Luiz Antonio Fraga

    Muito bom, bastante esclarecedor.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo texto. Bastante esclarecedor.

  3. Rodrigo Arrelaro Silva
    Rodrigo Arrelaro Silva

    É o que eu sempre venho falando: Não adianta modernizar grande parte da Infraestrutura do país se não consolidar o crescimento e até mesmo a auto suficiência no campo da geração de energia. Esse projeto já deveria estar em expansão há pelo menos 2 décadas atrás.

  4. Maria Emília Rezende
    Maria Emília Rezende

    Trabalho com desenvolvimento tecnológico da produção de carvão vegetal desde o início da década de 80. Em 1994 devido a minha percepção de falta de espaço nas grandes empresas do setor, criamos a BIOCARBO. Tem sido muita luta e resiliência e hoje estamos finalizando a implantação de acoplamento de recuperadores de alcatrão em fornos retangulares de produção de carvão vegetal. Acreditamos que em fevereiro/22 iniciaremos a operação da primeira biorefinaria de coprodutos da carbonização da madeira.
    Hoje são produzidos anualmente 7,3 milhões de toneladas ente aço e ferro gusa; que consomem cerca 4,0 milhões de toneladas de carvão vegetal. Se acoplados recuperadores e melhorias radicais nos fornos de produção de carvão, se teria 0,4 milhões por ano de alcatrão vegetal. Para o qual a Biocarbo vem desenvolvendo diversos usos. Vamos focar na substituição do óleo combustível em fornos e caldeiras industriais, se teria a produção de 142 milhões de BEP (Barris Equivalentes de Petróleo). Em outros termos ao atual preço do Barril 80 dólares, jogamos R$800 milhões/ano como fumaça poluente pelas carvoarias do Brasil afora. Coprodutos da carbonização, energia limpa, renovável e competitiva com o petróleo.
    Acompanhem nosso trabalho https://www.facebook.com/biocarbobrasil

Anterior:
Sergio Bruni: ‘Acorde e durma sempre no mesmo horário’
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 214
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.