Pular para o conteúdo
publicidade
Foto: Montagem Revista Oeste/Shuterstock/Divulgação
Edição 88

33 siglas infestam o deserto de partidos reais

A farra das legendas irrelevantes também é financiada pelos pagadores de impostos

Augusto Nunes
-

Quatro vezes prefeito de Taquaritinga, meu pai estreou em campanhas eleitorais no fim de 1947 e só deixou de lutar por votos no crepúsculo de 1986, quando a morte o impediu de completar o último mandato. Fiquei fora da primeira campanha por um impedimento incontornável: ainda não tinha nascido. Não perdi nenhuma das batalhas seguintes, aplaudindo no meio da plateia ou arengando no palanque. Ouvi muito foguetório, muito palavrório, muita marchinha laudatória, muita salva de palmas, muito grito de “apoiado!” (além de muito insulto ao candidato adversário). Também vi todo tipo de santinho, faixa, cartaz, retrato ou reprodução de cédulas preenchidas (além do indispensável bêbado de comício e do igualmente essencial moleque pendurado a 2 metros do microfone, garantindo com poderosas aspirações que a coriza permanecesse entre o nariz e a boca). Mas nunca vi nem ouvi uma única e escassa referência ao partido que abrigava aquela gente aglomerada na carroceria do caminhão.

Meu pai foi filiado ao PTB, ao PTN, ao MDB e ao PMDB. O resultado da eleição teria sido o mesmo caso fosse candidato pelo BNDES ou pelo FBI. Brasileiro não vota em partido, sobretudo em eleições municipais. Escolhe uma pessoa, seja qual for a sigla que habite. Foi assim antes do bipartidarismo inventado pelo regime militar. Continuou a ser assim nos tempos em que grupos distintos tiveram de espremer-se em sublegendas da Arena e do MDB. E assim será até que apareçam partidos de verdade, como os que existem nas democracias maduras. Nessas paragens, os que efetivamente importam são dois ou três. Nos Estados Unidos, por exemplo, o eleitorado se dá por satisfeito com o permanente duelo entre o Partido Democrata e o Partido Republicano — o que não exclui a existência de legendas liliputianas nem proíbe o lançamento de candidaturas avulsas. Democratas e republicanos abrigam correntes que disputam nas eleições primárias o direito de indicar o candidato à Presidência. Consumada a escolha, os grupos desavindos se unem no esforço para derrotar o inimigo principal na corrida rumo à Casa Branca.

Tanto o PT quanto o PSDB fracassaram por excesso de corporativismo e falta de vergonha

O Brasil é um deserto de partidos reais infestado por 33 siglas. Duas delas quase conseguiram tornar-se adultas: o PT e o PSDB. Tanto o Partido dos Trabalhadores quanto o Partido da Social Democracia Brasileira fracassaram por excesso de corporativismo, falta de vergonha e escassez de condutores de multidões. Depois que os militantes engoliram sem engasgos a roubalheira do Mensalão e a ladroagem do Petrolão, o PT virou uma seita cujos devotos enxergam seu único deus num corrupto condenado duas vezes em segunda instância. Como o chefe é maior que a legenda por ele cavalgada, já não existe o petismo. O que há é o lulismo, da mesma forma que houve o janismo, o ademarismo ou o getulismo. Esses ismos acabam quando morre quem os gerou.

O PSDB assemelhou-se a um partido de verdade nos trabalhos de parto e durante a primeira infância. A escolha do tucano como símbolo inspirou-se no elefante dos republicanos ianques e no burro dos democratas. Fundado em junho de 1988 por dissidentes de um MDB submerso no pântano da corrupção, a sigla resultante da diáspora de políticos honestos deixou o partido de origem com cara de Quércia — e transformou-se numa espécie de opção pela honradez. Fortalecido pelos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso, o PSDB parecia a caminho da maioridade até dezembro de 2005, quando cometeu o primeiro de dois grandes equívocos que o tornariam igual a todos os outros. Confrontados com a descoberta do mensalão mineiro, os caciques do PSDB não tiveram suficiente coragem para afastar da presidência nacional do partido o ex-governador Eduardo Azeredo.

Dez anos depois, o desastre foi reprisado pela absolvição de Aécio Neves, no mesmo dia da divulgação da conversa telefônica com Joesley Batista que escancarou Mr. Hyde escondido sob o jaleco do Dr. Jekyll. Graças à desastrosa reincidência, o PSDB hoje é o partido que poderia ter sido e não foi. Jamais será, constatou-se neste 21 de novembro. Pode governar o país uma tribo incapaz de promover uma eleição doméstica com menos de 50 mil votantes? Não pode, responderia se soubesse falar qualquer tucano da linhagem que vive na mata e só abre o bico para alimentar-se. A variante loquaz e engravatada que é vista em cidades ainda acha que sim — e vai tentar concluir neste domingo a escolha do candidato ao terceiro lugar na eleição de 2022.

A votação foi interrompida ainda em seu início pelo colapso do aplicativo concebido por sumidades de uma universidade gaúcha. Nenhum dirigente fez a gentileza de esclarecer o que houve, ninguém tampouco procurou justificar o preço do fiasco: a modernidade consumiu R$ 1,5 milhão. Os grão-tucanos limitaram-se a encomendar um segundo aplicativo a outro especialista — e vida que segue. É compreensível que os partidos brasileiros torrem dinheiro sem remorso nem medo da polícia. Todas as contas são espetadas nos bolsos dos pagadores de impostos, forçados por lei a bancar também a farra das siglas inúteis.

Nas democracias modernas, partidos políticos e duelos eleitorais são financiados por eventos organizados pelos comitês e contribuições feitas às claras, sem truques nem camuflagens, por indivíduos ou empresas. O governo não desperdiça um único centavo. No País do Carnaval, duas brasileirices — o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral — usam dinheiro dos pagadores de impostos para bancar as atividades e a sobrevivência de 33 sopas de letras. Entre janeiro e outubro, por exemplo, o Fundo Partidário distribuiu R$ 783 milhões entre 23 partidos. É compreensível que os tucanos, presenteados com quase R$ 49 milhões, não percam o sono com preços de aplicativos. A lista é liderada pelo PSL (R$ 93,5 milhões). Segundo colocado (com perto de R$ 80 milhões), o PT nem vistoriou a pequena fortuna que patrocinou o giro europeu de Lula, sua mulher e quatro companheiros. Sobra dinheiro. E em 2022 a verba anual do Fundo Partidário será engordada pelos bilhões doados a cada dois anos pelo Fundo Eleitoral.

Em 2020, uma chuva de mais de R$ 2 bilhões irrigou todas as siglas. A fila dos beneficiários foi puxada pelo PT (R$ 201 milhões) e molhou até o G-6 formado por meia dúzia de inutilidades, cada uma com direito a R$ 1,2 milhão. Nesse buquê de vogais e consoantes figuram o Partido da Causa Operária (PCO) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), cujos simpatizantes, somados, caberiam numa van. Talvez até sobrasse lugar para os eleitores da Democracia Cristã (DC), controlada por José Maria Eymael — aquele mesmo da exasperante musiquinha ouvida no horário eleitoral nas cinco temporadas em que foi candidato à Presidência. Eymael já não sonha com o inquilinato no Palácio do Planalto. Agora prefere ficar em casa durante a campanha, decerto pensando na melhor maneira de gastar os R$ 4 milhões que o Fundo Eleitoral lhe reservou. Administrar partidos, reais ou inexistentes, virou um negócio e tanto.

YouTube video

Leia também “Lula inventou o impostour”

16 comentários
  1. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Parabéns, mestre Augusto! Mais uma pérola de artigo! Obrigada!

  2. Jamicel Francisco Rocha Da Silva
    Jamicel Francisco Rocha Da Silva

    Ei,ei,eimael…

  3. ANTONIO DE PADUA CRUZ045775823868
    ANTONIO DE PADUA CRUZ045775823868

    Grande Augusto Nunes, é tudo verdade, temos que admitir. Mas é muito triste porque estamos muito longe ainda de modificarmos esta estrutura. Se é que um dia o faremos!

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Genial como sempre. Parabéns Mestre Augusto.

  5. Flávio Figueiredo de Andrade
    Flávio Figueiredo de Andrade

    Novamente brilhante MESTRE.

  6. Reginaldo de Oliveira Manata
    Reginaldo de Oliveira Manata

    Matéria para chorar se não fosse as pitadas de humor colocadas no texto de Augusto Nunes, vejam só , o povo financia as siglas para elegerem seus politicos para novamente roubarem do povo!

  7. Ruy
    Ruy

    E daí ? Está tudo errado. Mas continuamos com medo de mencionar a(s) solução(ões)!possível(eis), que está(ão) na Constituição. Haja falta de coragem !!!

  8. Daniel BG
    Daniel BG

    Como são sinceros quando defendem o Fundão. Afinal, vampiro sincero mantém seu corpo sempre bem alimentado.

  9. Wellington Gomes da Silva
    Wellington Gomes da Silva

    E uma verdadeira farra com nosso dinheiro.

    1. Geraldo Manoel Guimarães
      Geraldo Manoel Guimarães

      Verdade inconteste, infelizmente. Esse pluralismo partidário apagou de vez com ideologia enraizada de seus membros, integrantes. Lutava-se por um ideal, por uma forma de governar alinhada com propósitos práticos dos partidos, quer sejam de esquerda, quer sejam de direita.
      De uns tempos pra cá, virou ” o samba do crioulo doido”; uma salada de aproveitadores, sem conotação política alguma, só sugando dinheiro público.

  10. Jonas Ferreira do Nascimento
    Jonas Ferreira do Nascimento

    Como sempre, um show do Mestre!

  11. R.F. Nobre
    R.F. Nobre

    Pois é, votamos em um candidato para deputado federal no qual acreditamos que possa fazer alguma coisa contra esses absurdos mas, não é eleito porque não está “pidurado” no Tiririca. Votamos em senador mas, dois de São Paulo chegaram lá por serem suplentes e, alguém sabe qual a posição da senadora Mara Gabrilli?

  12. Eliane Cristina da Cunha
    Eliane Cristina da Cunha

    Só no Brasil mesmo…

  13. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Acabar com essa exploração sem nenhum cabimento, fundo partidário e fundo eleitoral. É mesmo que você alimentar um ladrão dentro de sua casa

  14. Mário Frota
    Mário Frota

    Por que, como povo permitimos que esses arremedos de partidos subtraíssem somas tão elevadas, milionárias, dos impostos que o nosso povo paga com o suor do rosto? Em que outro país do mundo civilizado esse tipo de pouca vergonha, de despudor em termos absolutos, isso acontece? Esse artigo do grande jornalista que é o Augusto Nunes nos enche a todos de vergonha, de vergonha de sermos um povo que engole calado o que esse Congresso entupido de vigaristas e bandidos nos impõe a cada eleição.

  15. Rachel Marotta Romualdo da Silva
    Rachel Marotta Romualdo da Silva

    Sempre preciso em seus comentários, sem parcialidade, informa sobre o que é relevante e precisa ser dito.

Anterior:
Fernando Vítolo: ‘Não tente imitar alguém que você não é’
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 245
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.