Nos últimos anos, fomos bombardeados com todos os tipos de alardes envolvendo o clima e sua variabilidade natural, a qual foi transformada em “mudança climática” para incluir a ação humana — só que essa, com um peso muito maior. Atualmente, essa sobrecarga se intensificou de uma forma voraz, especialmente porque as agendas políticas que permeiam o tema ficaram bastante transparentes, enquanto a ciência climática cada vez mais mergulha na obscuridade.
No meio desse tempo, várias especulações surgiram, misturando-se com a ação de alguns fenômenos atmosféricos, os quadros meteorológicos locais e regionais e as oscilações de grande escala. Nessa última, o fenômeno Enos — El Niño/Oscilação Sul — La Niña também foi arrastado para ser arregimentado dentro do quadro catastrofista, entrando até mesmo nas fileiras da especulação financeira.
O slogan segue a fórmula tradicional padrão: se X já é terrível, pior com o “aquecimento global” causado pela influência humana. Assim, substitua X por “o El Niño”, ou “a La Niña” e terá um exemplo de aplicação. Claro que teremos algumas variações, onde “aquecimento global” poderá ser substituído por “mudanças climáticas” toda vez que for necessária uma adaptação.
Enos é um fenômeno oceânico-atmosférico de grande escala. Ele ocorre na área tropical do Oceano Pacífico e suas tele-conexões são abundantes, interferindo na variabilidade climática por toda a América, parte do Leste da Ásia, Oceania, alcançando até o setor oriental do Oceano Índico. As alterações mais drásticas envolvem a quantidade de chuva precipitada sobre esses lugares, com variações significativas na cobertura de nuvens, moderação da incidência da radiação solar e as temperaturas do ar em superfície.
Atualmente, sabemos que o Enos apresenta três fases marcadas pelo campo de pressão atmosférica sobre o oceano Pacífico que atuam como uma espécie de gangorra, alterando a circulação dos ventos, nível médio do oceano, circulação das correntes, a temperatura da superfície do mar entre outras coisas.
Em uma explanação breve das fases, as duas opostas de forma marcante são classificadas como El Niño e a La Niña. Denomina-se de El Niño o quadro onde a temperatura superficial das águas tropicais se eleva além do normal, estendendo-se por um perfil de profundidade por volta dos 150 a 250 metros e a circulação dos ventos sobre a região equatorial, em geral, passa a soprar de Oeste, invertendo seu fluxo normal de Leste. Isto ocorre numa localização próxima ao meio do Pacífico tropical, atingindo até a costa da América.
Quando não se observa o quadro definido anteriormente, teremos as outras duas fases onde em ambas, o fluxo dos ventos de Leste é o predominante na área tropical sobre o Pacífico. Quando ele é moderado, estamos observando parte da fase normal da Oscilação Sul, mas quando essa circulação de ventos se assevera, passamos e verificar uma situação inversa ao El Niño. Os ventos intensificados deslocam grande quantidade de águas superficiais do Pacífico tropical em sentido à Oceania, alterando todo o regime de chuvas da Austrália, por exemplo. Com o intenso deslocamento de águas superficiais, em contrapartida, surge uma apófise fria no Pacífico tropical, onde antes as águas estavam mais quentes. Sua origem vem tanto do afloramento de águas do fundo oceânico da costa Oeste da América do Sul, como do grande avanço da corrente fria de Humboldt. Essas são algumas características observáveis do estado de La Niña.
Ambas as fases opostas trazem consequências, pois interferem nas condições meteorológicas regionais do Brasil, mas por mais extremas que possam se apresentar, sua alternância não é imediata. Ela não ocorre do dia para a noite. Justamente nesse ponto que nascem as especulações, as quais visam atrapalhar ou interferir nas decisões empresariais e financeiras do setor agrícola no Brasil.
Sobre esse tema, no início de dezembro de 2023, fui contatado pelo diretor de um canal de notícias agrícolas da internet que pediu que eu concedesse uma entrevista em um de seus programas para relatar sobre uma suposta brusca mudança de estado de El Niño (que estamos presenciando desde o meio do ano de 2023, sendo que de setembro/2023 a janeiro/2024, mais intensamente). Segundo ele, as mídias do setor agrícola anunciaram o fim das chuvas causadas pelo fenômeno já em janeiro de 2024, devido a uma alteração para a fase de La Niña. Isto alteraria as decisões empresariais do setor do agronegócio em boa parte do Brasil, envolvendo desde plantio, venda de safras entre outras consequências. O diretor desconfiava que isto era uma especulação para ocasionar fortes oscilações de preços no mercado e, é claro, sua suspeita estava correta.
Acabamos por realizar a gravação e deixei bem claro que a chuva continuaria em janeiro, dentro da normalidade até pontos de excepcionalidade, porque as condições de El Niño não mudariam como propuseram os especuladores, especialmente porque seu índice de determinação estava muito alto. Essas condições poderiam se estender normalmente até março. E foi justamente o que observamos. Por vasta área do Brasil, as chuvas continuaram. Na região amazônica, as bacias hidrográficas se recompuseram com o retorno da Zona de Convergência Inter-Tropical — ITCZ. No Sul e Sudeste, as chuvas estiveram bastante presentes, atingindo o Centro-Oeste também, muitas delas ocasionadas por sistemas frontais, bem como por trovoadas isoladas.
E quando poderemos aguardar uma mudança? A NOAA — Administração Nacional do Oceano e Atmosfera (National and Oceanic Atmospheric Administration) dos EUA anunciou que uma alteração de estado está prognosticada para os meses de junho ou julho, segundo reporte de 8 de fevereiro de 2024. Antes disso, teremos que passar pela fase Neutra, quando as características da Oscilação Sul apresentam a sua costumeira “normalidade”, com ventos não tão intensos soprando de Leste sobre o Pacífico tropical. Essa fase Neutra foi prognosticada para ocorrer entre abril, maio e com grande chance ainda em junho.
Isso deixa bem claro que as mudanças entre os extremos das fases não são imediatas, pois há toda uma inércia do oceano — são áreas vastas. Os prognósticos ainda poderão ser alterados, conforme chegam os novos dados sobre as temperaturas das águas do Pacífico, a circulação dos ventos e os campos predominantes da pressão atmosférica em superfície. De qualquer forma, há uma chance muito boa de que a fase La Niña se estabeleça para agosto ou setembro de 2024, indicando que as chuvas poderão se escassear na entrada da primavera no Brasil, justamente quando o ano hidrológico se inicia em boa parte do país, com o retorno da precipitação.
A severidade da nova suposta fase de La Niña não é previsível e muito menos se teremos outro “mergulho triplo”, ocasiões em que a fase se perpetuou por três anos consecutivos. Os registros históricos nos mostraram três momentos pretéritos destas ocorrências, em 1954-1956, 1973‑1976 e 1998-2001 (onde essa última ocorreu dentro da Era dos Satélites) e a quarta “nova edição”, em 2000-2023 com um breve hiato de quatro meses (maio a agosto de 2021) registrando –0,4oC de anomalia da Temperatura da Superfície do Mar — TSM, na região de controle Niño 3.4.
Deve-se ressaltar que o prognóstico da mudança para a fase de La Niña ocorre bem na abertura da temporada de furacões de 2024, aumentando as chances que essa seja bem intensificada, especialmente nos meses de setembro e outubro, quando a atividade de ciclones tropicais no Atlântico Norte tem se mostrado mais intensa, segundo o longo histórico de dados. Quanto às atividades do agronegócio, sempre recomendaremos que não acreditem prematuramente em supostas informações climáticas ventiladas sem verificarem primeiro seu embasamento. Se as especulações atingem fenômenos relativamente bem conhecidos e estudados como o Enos — La Niña, imaginem então os que envolvem alterações geográficas de zoneamento agrário, derivados de “mudanças climáticas”. São pura fantasia.
Leia também: “O caráter do pecuarista”, artigo de Evaristo de Miranda publicado na Edição 209 da Revista Oeste
Parabéns Ricardo Felício por ser um defensor do pensamento científico com toda sua complexidade e ausência de sensacionalismo. A ciência normalmente é encantadora para quem a pratica, essencial para quem se beneficia de suas informações mas insossa para a mídia e para a política. Por isso, parabéns de novo!