Embora a interrupção das aulas tenha sido importante num 1º momento, manter as escolas fechadas por mais tempo será uma tragédia
Quase 50 milhões de crianças e adolescentes em idade escolar estão longe das escolas há quase 200 dias. Isso nunca havia acontecido em nenhum país, em nenhuma época da história. Aconteceu no Brasil. E não se pode prever quando voltará a vida normal interrompida em março, quando as instituições de ensino fecharam as portas por causa da pandemia de coronavírus.
É muito simples calcular o tamanho dessa calamidade. Basta comparar com os números da Europa. Na França, as crianças ficaram 56 dias sem aula. Na Alemanha, 68. Na Dinamarca, 30. No Uruguai, aqui do lado, as aulas voltaram depois de 93 dias. Embora a maioria dos especialistas reconheça que a interrupção das aulas foi inevitável num primeiro momento, quase todos temem as consequências da duração da anomalia.
Em São Paulo, cuja rede de ensino foi paralisada mais cedo que nos demais Estados, as escolas serão reabertas a partir desta terça-feira, 8 de setembro, começando pelos municípios que estão há mais de 28 dias na fase amarela do plano de retorno à vida como ela é. Pelo menos 128 cidades pretendem retomar as aulas presenciais. Embora a capital atenda a todas as exigências formuladas pelo governo estadual, o prefeito Bruno Covas (PSDB) já avisou que vai prorrogar a quarentena escolar.
A decisão provocará estragos econômicos e sociais que podem alcançar dimensões desastrosas, previne um estudo coordenado pelo médico Fabio Jung, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), divulgado na quarta-feira passada, dia 2, durante uma live da Associação Brasileira de Escolas Particulares (Abepar). Uma das conclusões: o adiamento da abertura deverá causar prejuízos que somam 1% do Produto Interno Bruto (PIB). Motivo: quase 30% dos pais são obrigados a reduzir a jornada de trabalho para cuidar dos filhos, diminuindo a renda familiar em cerca de 20%. Obviamente, as pessoas mais afetadas são as mulheres.
Os problemas não param por aí. “Devido ao menor aproveitamento do ensino a distância, um em cada três jovens pensa em largar a escola”, calculou em entrevista a Oeste o deputado estadual Daniel José (Partido Novo). “O custo do abandono escolar de cada jovem para a sociedade gira em torno de R$ 400 mil por ano. Cada dia sem aula é mais um dia que se soma ao grande problema que teremos no futuro.”
Os cálculos citados por Daniel José fazem parte de um estudo feito por Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto Ayrton Senna, numa parceria do Insper com a Fundação Roberto Marinho. Segundo a pesquisa, isso acontece por que os jovens que têm a educação básica completa passam, em média, mais tempo de sua vida produtiva ocupados, em empregos formais e com melhor remuneração. “Também têm maior expectativa de vida com qualidade — estima-se que cada jovem com educação básica viverá quatro anos de vida a mais que outro que não terminou a escolaridade — e tendem a ter menor envolvimento em atividades violentas, como homicídios”, diz o estudo.
Eleito em 2018 com um discurso concentrado em questões educacionais, Daniel José frequentou escolas públicas até ganhar uma bolsa de estudos para um colégio católico particular. “Se eu tivesse vivido a pandemia, não teria condições de acompanhar aulas a distância”, lembrou o deputado, que cresceu ao lado de dez irmãos. “Não tínhamos computador em casa nem espaço físico para estudar. Muitas famílias não têm conexão adequada e possuem apenas um celular, que é dividido entre todos. Pegue o problema que os alunos das escolas particulares estão tendo, multiplique por 100 e você terá uma noção do que está acontecendo com os da escola pública.”
Público X privado
Entre outras distorções, a pandemia escancarou essa disparidade entre o ensino público e o privado no Brasil. Enquanto a classe média permaneceu confinada em apartamentos espaçosos, com aulas on-line e conexão de alta velocidade, os pobres sobreviveram numa realidade oposta: a imensa maioria continuou a deslocar-se para o local de trabalho em ônibus lotados enquanto os filhos ficavam em casa — ou nas ruas —, tentando aprender com apostilas impressas, sem nenhuma espécie de tutor.
“As crianças estão na rua, empinando pipa, jogando bolinha de gude, pega-pega, como se estivessem todas de férias”, informou Gilson Rodrigues, líder comunitário de Paraisópolis, ao descrever o cotidiano da grande favela paulistana depois da chegada do vírus chinês.
“Já vivíamos uma grave crise educacional antes da pandemia”, observou Claudia Costin, especialista em educação e ministra da Administração Federal no governo FHC. “Nas escolas públicas, 55% das crianças saem do 3º ano do ensino fundamental não alfabetizadas e, quando chegam ao fim do ensino médio, menos de 10% sabem o suficiente de matemática. O fechamento das escolas na maioria dos lugares apenas agravou essa realidade e temo o que possa acontecer caso o fechamento se prolongue por mais tempo.”
Para Daniel José, além da desigualdade entre o público e o privado, a pandemia também evidenciou a incompetência dos gestores, sobretudo municipais, para atender os estudantes de forma adequada. “Boa parte dos prefeitos acreditou que o fechamento seria por pouco tempo e não fez nada”, disse. “Como demorou para a escola abrir, muitos alunos permaneceram sem nenhum tipo de aula.”
O vírus e a infância
O estudo de Fabio Jung inclui constatações que desmontam a teoria segundo a qual a volta às aulas comprometeria a saúde dos alunos ou aceleraria a transmissão do vírus. Muito menos suscetíveis à covid-19, crianças representam apenas 2% dos casos confirmados. O coronavírus é 4,5 vezes menos agressivo que a gripe (influenza) na faixa etária até 14 anos.
O fechamento das escolas também ameaça a saúde psiquiátrica de crianças e adolescentes, compromete a segurança alimentar e os torna mais expostos a abusos e maus-tratos, às drogas e à violência. Cerca de 30% das crianças em confinamento podem passar a sofrer de transtorno do estresse pós-traumático.
“É importante entender que a escola vai muito além da aprendizagem”, lembra Cláudia Costin. “Lá é o espaço de socialização, de vivências, além de ser uma rede de proteção social à infância.”
Eduardo Lyra, diretor do Instituto Gerando Falcões, organização social sem fins lucrativos localizada em Poá (SP), lembrou no estudo de Jung que as escolas muitas vezes são a única infraestrutura de bem-estar e desenvolvimento para inúmeras crianças. Sem isso, elas “ficam em estado total de vulnerabilidade e isolamento”, observou Lyra, que promove o desenvolvimento social através do esporte e da cultura. “Elas já estão na rua, mas sem uma agenda, expostas a drogas, aliciamento, a ver o que não devem.”
A reabertura no mundo
Em outros países, a reabertura das escolas que permaneceram muito menos tempo fechadas registrou um aumento pouco significativo no número de infectados. Medidas singelas, como limitação dos alunos presentes, atividades em grupos fixos, distanciamento entre os estudantes, lavagem das mãos e limpeza dos espaços físicos foram suficientemente eficazes.
“Frequentemente reportagens destacam no título o aumento no número de casos, mas quando se lê o texto não foi bem assim”, afirma Cláudia. “Recentemente a Alemanha fechou apenas duas escolas no norte do país, porque houve contágio. Isso aconteceria mesmo se fosse um vírus semelhante, como o H1N1.” O caso mencionado por Cláudia é um entre milhões. A prevalência de notícias que estimulam a epidemia do medo foi um dos efeitos colaterais mais graves da pandemia.
Um estudo da Universidade Harvard também comprovou que crianças até 9 anos têm três vezes menos probabilidade de transmitir a covid-19. “Após a reabertura das escolas, não houve aumento de casos”, contou o imunologista Roberto Zeballos na mais recente edição da Revista Oeste. “Talvez porque as crianças não sejam os vetores que a gente achou que fossem, como elas são, por exemplo, para o H1N1.”
“O excessivo medo da volta à escola ficou cristalizado porque, no início da pandemia, a criança foi colocada como o grande disseminador da doença por ser pouco sintomática, tanto que ela foi afastada dos avós”, lembrou Evandro Baldacci, infectologista da Universidade de São Paulo (USP), no estudo de Jung. “Era falso, mas a desconfiança permaneceu.”
Divulgado na semana passada pelo Estadão, um trabalho realizado pela consultoria Vozes da Educação analisou a reabertura das escolas em 20 nações. Na Dinamarca, os colégios foram reabertos depois de um mês, antes de restaurantes, lojas e parques. Em maio, 90% das crianças já tinham voltado e não houve aumento de contágio.
Na França, sete escolas tiveram de ser fechadas na primeira semana por causa de contaminações, mas não ocorreram picos de contágio mesmo com o retorno obrigatório em junho. “Países que entendem a importância da educação também entendem que ter escolas fechadas não é um problema banal e, apesar das dificuldades, se esforçam para retomar as aulas presenciais”, declarou ao Estadão David Saad, diretor-presidente do Instituto Natura.
Ao determinar a reabertura no Reino Unido ainda em setembro, o primeiro-ministro Boris Johnson foi enfático. “Manter nossas escolas fechadas mais que o absolutamente necessário é socialmente intolerável, economicamente insustentável e moralmente indefensável”, afirmou.
A politização do vírus
Diante desses fatos, por que manter as escolas fechadas por mais tempo? Antes mesmo que o retorno às aulas fosse autorizado, sindicatos e associações de professores de escolas públicas e particulares ameaçaram recorrer à greve. “Não há nenhuma possibilidade de voltarmos agora, nem gradativamente”, avisou no começo de agosto a deputada estadual petista Maria Izabel Noronha. “Sempre fizemos greve por outras questões e desta vez será pela defesa da vida.” Conhecida pelo apelido de Bebel, a parlamentar preside o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) há 12 anos. Ela acredita que 30% a 40% dos docentes poderiam aderir à paralisação.
“Muitos professores querem voltar às aulas”, garante Daniel José. “Mas há também aqueles que já desistiram e os que são ruins, que não têm compromisso com seus alunos.” Para Cláudia Costin, os pais é que devem decidir se mandam ou não os filhos para a escola, mantendo em confinamento apenas professores que estão no grupo de risco ou impossibilitados de lecionar por outros motivos.
A campanha eleitoral é outra agravante: muitos candidatos não querem briga com sindicatos e associações de classe nem correr o risco de ser acusados de estimular a disseminação da covid-19. A polarização política nacional se estendeu ao sistema de ensino. Se já estão abertos restaurantes, bares, lojas, shoppings, supermercados, pet shops, academias de ginástica, cursos de idiomas e tantos outros serviços, por que prolongar a paralisia do ano escolar? Nenhum outro direito é tão essencial quanto o acesso à educação. Tudo somado, quem perde são as crianças — e o Brasil.
[…] que a escola vai muito além da aprendizagem”, lembrou Cláudia Costin, na reportagem “A educação pode ser a maior vítima da epidemia de medo”, publicada em Oeste. “A escola é o espaço de socialização, de vivências, além de oferecer […]
[…] Leia também: A educação pode ser a maior vítima da epidemia de medo […]
Parabéns pela matéria! Como podem ser tão inescrupulosos???
Finalmente alguém falou a verdade. Parabéns Oeste, parabéns! Vemos ver se agora alguém (governo) faz alguma coisa.
Branca: sensacional.
Artigo lúcido com transmissão (!) de opiniões abalizadas.
Conclusão certeira.
Parabéns.
Discordo de que a Educação possa ser a maior vítima da pandemia.
Nossa educação, leia-se instrução, já é a maior v´tima desde Gramsci e Paulo Freire.
A parada em razão da pandemia, poderia ser utilizada no intuito de reordenar e dar-lhe rumo correto.
O País não sairá do atoleiro e tão pouco mudará se não mexermos e alterarmos o que de mais nocivo foi implantado aqui; as diretrizes do MEC e o aparelhamento de nossas escolas!
Branca, genial sua matéria, como sempre!
Evidentemente, mais um inescrupuloso posicionamento da “corja amante do vírus chinês” para destruir a sociedade. Como sempre, a tese do quanto pior, melhor… A politização, que até aqui era da saúde, também chega à educação, prejudicando quem? Os mais pobres…
Mas para a corja do vírus não importa…o que vale são suas ideologias macabras…
Como digo sempre: não valem a poeira onde pisam!
Alguma dúvida?