De quem é a responsabilidade sobre o conteúdo publicado anonimamente nas redes sociais? O debate que mobiliza governos de países de vários continentes e as big techs abriu a edição deste ano do Fórum da Liberdade, organizado pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE).
O cientista político português João Pereira Coutinho detectou que “as redes sociais contribuem para a ilusão de um dos valores mais importantes da democracia: a autonomia individual”.
Quando as plataformas são capazes de determinar quem fala e quem não fala, garantindo total anonimato de qualquer usuário, trata-se de um poder que não pode vir desacompanhado de alguma responsabilidade.
Murillo de Aragão, presidente da Arko Advice e participante do painel, expôs a contradição das redes ao indagar por que um jornalista pode responder judicialmente por um conteúdo publicado e outro cidadão, usuário de redes sociais, não. “Não pode existir liberdade individual sem responsabilidade individual”, acrescentou Coutinho. “Não é possível que haja uma arena pública minimamente saudável sabendo que o anonimato está garantido”, sustentou o cientista político.
Alexandre Ostrowiecki, empreendedor e criador do site Ranking dos Políticos, lembrou que o anonimato é um direito estabelecido pelo artigo 5º da Constituição Federal. “Mas há limitações dessa liberdade de expressão, como a incitação à violência, a difamação etc.”, ponderou.
Mesmo em casos assim, os gigantes da tecnologia se protegem no princípio da neutralidade da rede, que proíbe as operadoras digitais de priorizar o acesso a determinado site ou de condicionar o consumo de certa informação à cobrança de uma quantia em dinheiro. Segundo Coutinho, isso torna a internet uma espécie de faroeste. “Seria bom se as plataformas conseguissem limitar o anonimato que existe nas redes e que pudessem identificar, judicialmente, aqueles que as utilizam de forma perniciosa”, defendeu o cientista político português.
Apesar de acreditar que as redes sociais ameacem mais os regimes não democráticos, Aragão lembrou que essas plataformas alegam não ser veículo de comunicação para não arcar com a responsabilidade sobre o conteúdo que circula por elas. Nesse caso, para o executivo, é preciso haver mecanismos de identificação daqueles que estão postando.
Para que a solução seja encontrada, no entanto, Aragão reconhece que deve haver um pacto global, envolvendo todas as nações onde as redes operam. “Seria como uma cultura de compliance, que já existe no mundo dos negócios”, explicou. Diante da extrema dificuldade da implementação do mesmo pacto em diferentes países, o executivo acredita que cada nação deva discutir sua regulação e investir na educação de quem usa os serviços das plataformas. Do contrário, as redes se tornam parte dos instrumentos capazes de ameaçar a democracia, sustentou.
Duplo discurso das plataformas
O discurso ambíguo das big techs — que, para Coutinho, às vezes gostam de ser tratadas como veículos jornalísticos, às vezes como plataformas — é prejudicial à democracia. Empresas como Facebook, Google e Twitter falham com a sociedade não apenas na falta de responsabilidade com que atuam, mas principalmente ao deterem o monopólio da comunicação global.
“Dá um medo enorme o fato de haver duas ou três empresas no controle da comunicação, empresas que não são democráticas”, disse Ostrowiecki. O domínio das big techs fere o princípio liberal da livre concorrência, ou seja, elas jogam um jogo contrário ao de ser um “espaço livre”, tal como pregam. “Não vejo como normal que o presidente dos Estados Unidos seja simplesmente silenciado e que presidentes de outras nações se mantenham ativos nas redes com discursos genocidas”, sinalizou Coutinho.
É papel do Estado regular as redes?
Coutinho acredita que não. E vai além: usando a pandemia como justificativa, 17 países aprovaram, nos últimos meses, legislação contra o que chamam de fake news. “O problema foi que esses governos aproveitaram a pandemia para colocar limites cada vez mais brutais à liberdade de expressão”, afirmou. “É como se a luta contra o discurso de ódio tenha se convertido em um instrumento de ódio para calar a liberdade de expressão.”
Em episódios de tamanha arbitrariedade dos governantes, a democracia é quem mais sofre ao afastar aquilo que o público deseja daquilo que o poder público decide. Um dos casos mais evidentes foi a aprovação do aumento do Fundão Eleitoral pela Câmara dos Deputados, ainda que 98% dos eleitores afirmassem ser contrários à medida. Ao lembrar o episódio, Ostrowiecki alertou: “O Congresso pode se comportar como uma gangue que beneficia a si mesma”.
Como falar de “representatividade” num cenário como este?
São tais miopias da democracia que enfraquecem o regime tal como ele existe na atualidade. Coutinho lembrou que os fundadores da democracia norte-americana tinham a clareza de que, ao decretarem a independência da Inglaterra, se libertavam da coroa britânica. “Mas não queriam cair noutro tipo de tirania: a tirania da multidão”, destacou.
Ao questionar o público se estamos caminhando para uma democracia plebiscitária, o Fórum da Liberdade de 2021 sublinhou as fragilidades do regime das maiorias. Coutinho reforçou: “Se a multidão quiser outras coisas que não sejam a liberdade ou o fim da corrupção, as consequências podem ser nefastas”.
O Fórum da Liberdade acontece até amanhã, 13 de abril, de modo on-line, e as inscrições são gratuitas.