A viagem ao passado começa já na entrada do prédio localizado em uma das ruas que margeiam a Praça da Sé onde está, três andares acima, o “médico das canetas”. O edifício, na Barão de Paranapiacaba, conhecida como a Rua do Ouro, pela variedade de joalherias, ainda ostenta escadas de mármore branco, com parapeito de ferro e corrimão de carvalho que exalam cheiro de coisa antiga. Subi-las é como entrar num túnel do tempo que leva de volta à década de 1940.
A portaria dispensa os visitantes de apresentações de documentos pessoais, fotografias computadorizadas, catracas e crachás. No hall apertado, o porteiro sexagenário com roupas folgadas e semblante cansado informa a novatos o caminho que conduz à “oficina do doutor Roberto”. Ao chegarem à loja, uma placa de aço escovado avisa que ali funciona o negócio que tem mais de cinco décadas.
A sala com paredes brancas tem várias prateleiras de vidro com todos os tipos de canetas que se possa imaginar. A organização minuciosa das peças lembra uma exposição de museu, e a boa iluminação do ambiente faz os objetos reluzirem como joias. Parker, Montblanc e Crown são algumas das inúmeras marcas expostas. No canto direito da sala, perto de uma galeria de quadros com notícias de jornal estampando o rosto de Roberto, fica Patrícia. A mulher de cabelos loiros e olhos verdes, escancara um largo sorriso ao falar sobre o pai. Ela assumiu o negócio depois de ele ter falecido, em 2017. Como os irmãos não quiseram tocar a empresa, ela “manteve o legado”, diz.
Ao chegar uma encomenda, ela pede à secretária que entregue a Cícero Cristiano, que fica em uma sala no fundo da loja. Ali, uma luminária sobre a mesa bagunçada revela os primeiros contornos de uma oficina escura, com armários antigos que guardam peças e ferramentas de trabalho. Em uma cadeira de couro surrado, senta-se o homem de 48 anos, tímido e compenetrado nas canetas. Ele acaricia a barba com alguns fios brancos enquanto examina as “pacientes” em cima de um pano branco sujo de tinta. Cícero começou a trabalhar com Roberto aos 15 anos, como motoboy. Depois, tornou-se consertador de canetas. Ao longo de 33 anos, aprendeu tudo com o mestre. Em razão da morte do mentor, herdou o título de “médico das canetas”.
“Perco a noção do tempo quando estou na oficina”, disse, ao manusear uma caneta-tinteiro de colecionador, de quase cem anos. Cícero remove a pena com facilidade e logo identifica o problema. “Está quebrada na parte interna da ponta, mas já sei o que fazer nesse caso.” Ele separa algumas ferramentas, a centímetros de distância, e põe a caneta perto delas, para arrumá-la depois. Na sequência, pega uma esferográfica antiga e vê que o problema está no bocal. “Vai precisar de uma ferramenta nova que terei de fazer”, observou, ao mencionar que também cria seus instrumentos de trabalho.
Além de consertar, Cícero também faz o trabalho de restauração, que vai do desentortar de penas (operações que chegam a durar cinco horas) à básica substituição da haste das tampas (não mais que dez minutos). Ele não pensa em largar o ofício, apesar de saber que sua profissão corre o risco de deixar de existir. Indiferente a isso, diz que “faz tudo com gosto” e segue como mantra um dos ensinamentos do mestre: “Não enganar o cliente jamais”.
Leia outros perfis na reportagem “Profissões em extinção”, publicada na Edição 152 da Revista Oeste
Preciso que a Revista Oeste me envie o endereço completo da loja, com CEP, telefone de contato. Meu e-mail de contato é [email protected]. Muito obrigado.
Obrigado à Revista Oeste por essa notícia. Vou providenciar o envio de minhas canetas para colocar cargas nelas e talvez alguma restauração. Valeu!!!
Grande matéria. Tenho certeza que isso ajudará muitos proprietários de boas canetas encostadas, receosos de entregá-las a mão inexperientes – como comentou o sr.Josué. Parabéns.
Fantástico! Só não sei se a turma do emoji sabe utilizar uma caneta. A caligrafia diz das nossas emoções, personalidade, e ao escrevermos dispomos de tempo para planejar e organizar as idéias. Nada como uma folha em branco e uma caneta!
Que satisfação é saber que a oficina ainda existe! Meu pai era cliente e eu também fui até que não vi mais a loja ali no térreo. E isso já faz tempo. Tenho ainda uma Parker implorando manutenção lá do fundo da gaveta, mas nunca arrisquei com outro “doutor”. Mas agora vai!
Obrigado Oeste!