Ao chegar à escola, o menino de 4 anos disse todo faceiro à professora: “Hoje é o vovô quem vem me buscar, ele já voltou da academia”. “Vovô atleta é vovô saudável”, disse a professora, “que bom que ele frequenta a academia, tua mãe já tinha avisado que ele viria te buscar”. Deu um abraço no menino e o conduziu à sala para juntar-se aos outros.
No fim da tarde, a professora pode ter ficado desapontada. Garoava em São Paulo e o vovô chegou de chapéu à escola, vestia um blazer e não parecia um atleta. Vinha realmente de uma academia, como resumira seu neto, mas era outro tipo de academia. Ele desembarcara naquele dia em São Paulo para visitar a filha antes de seguir para o Rio, depois de um compromisso na Academia das Ciências de Lisboa. Era o autor destas linhas.
As palavras já tiveram outros significados hegemônicos consolidados. Mas tudo tem mudado muito ultimamente e, à primeira lembrança, academia designa preferencialmente lugar onde se faz ginástica. Deu-se algo semelhante com a palavra ginásio, que veio do grego guymnásion, estabelecimento para a prática de exercícios físicos, passou pelo latim gymnasium, mas quando chegou ao português já tinha mudado de significado e tornou-se sinônimo de escola de ensino médio. O motivo da mudança semântica foi que gregos e romanos passaram a estudar no intervalo. E na sala de aula também faziam exercícios, mas eram de outro tipo. Depois de mais algum tempo, os exercícios físicos vieram a constituir o que conhecemos por educação física.
Academias de letras, também com o significado de grupo seleto de autores de obras referenciais, tornaram-se outra coisa, e este é um assunto que o vovô prefere tratar à la Cervantes: “Em algum lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar, vivia há muitas décadas uma atriz de nome Arlete Pinheiro Monteiro Torres, mais conhecida por Fernanda Montenegro, que foi eleita para uma Academia de Letras sem obra literária nenhuma”.
Prosa é tecido e um assunto puxa outro. A palavra academia veio do grego akadémeia, formada de ékas, longe, e démos, povo, isto é, longe do povo, em separado dele. Designou originalmente um terreno perto do cemitério de Atenas onde estava a estátua do herói Akadémos, guarnecida por cem oliveiras, e onde tinha sido erguido um altar à principal deusa da cidade-estado e que por isso lhe dava o nome: Atenas.
Como os deuses eram imortais, os acadêmicos passaram a ser considerados assim também, por obras que, como os atos de deuses e de heróis, fariam com que fossem lembrados eternamente. Era nesse bosque que Platão perambulava ensinando filosofia a seus discípulos. Ele tinha 390 alunos, dois dos quais eram mulheres disfarçadas de homem para poder entrar: Asioteia de Filos (muito bela) e a professora de Sócrates, Lastênia de Mantineia (menos bela).
Platão ensinava ali porque as leis não lhe permitiam erguer um prédio no centro de Atenas para esse fim. Faz tempo que governos mais atrapalham do que ajudam. A saída jurídica foi comprar o terreno onde estavam as estátuas de Apolo, de Atenas e de outros deuses e heróis, inclusive das musas, aos quais ele e seus discípulos renderiam cultos e isso não era proibido.
Morto Platão, Aristóteles fundou um liceu, do grego lýkeion, que quer dizer “da luz”, epíteto de Apolo, o deus da luz. No latim, a palavra tornou-se lyceum, origem de liceu em português. Pela manhã, os estudos eram esotéricos, isto é, só para os iniciados. À tarde, eram exotéricos, para quem quisesse. Passou o tempo e liceu consolidou-se no português para designar estabelecimento de ensino secundário profissionalizante e agremiação cultural com fins didáticos. Aos poucos, o que entendíamos por liceu foi absorvido pelo que designamos escola.
A primeira escola é, porém, a família. E os pais, os primeiros professores. Pais, avós, outros parentes próximos, os vizinhos, os mais velhos. A educação passou a ser concebida como tarefa comunitária desde os tempos mais remotos e houve sempre os intrometidos do bem, uma vez que, se a criança não fosse educada, seus atos vindos dessa falha seriam prejudiciais a todos.
Embora o ensino com o reforço da escrita tenha começado entre os antigos sumérios por volta do ano 4000 a.C., fora da família e ainda sem prédio, foi na Antiguidade greco-romana que a palavra escola designou a instituição que hoje conhecemos depois que o ensino deixou de ser ministrado ao ar-livre.
Foi nesses começos, no ano 343 a.C., que o filósofo Aristóteles teve um aluno ilustre: Alexandre Magno. O homem não sabia manejar uma espada e nada entendia de guerra, mas ensinava o jovem a pensar. E o aluno, quando comandante militar, resolvia problemas com estratégias, táticas e técnicas que ainda hoje são estudadas nos centros estratégicos de altos estudos da arte da guerra.
O rei Felipe, pai de Alexandre, como mais de dois milênios depois faria o nosso Dom Pedro I, cuidou da educação do filho, como fazem tantos pais. Os mais antigos mestres de um sistema organizado de ensino no Ocidente surgiram, pois, no século 4 a.C., na Grécia antiga. Eles ensinavam gramática, música, poesia, oratória e matemática.
Embora as referências acerca das primeiras universidades não levem em conta instituições muito semelhantes surgidas no Egito, no Marrocos e na China, da escola à universidade demorou mais de um milênio e entre os séculos 11 e 12 surgiram as primeiras universidades. Paira uma controvérsia sobre qual teria sido a primeira, mas provavelmente foi a Universidade de Bolonha, na Itália, embora outras reivindiquem a primazia, entre as quais Oxford e Cambridge, na Inglaterra, e Salamanca, na Espanha. No mundo lusófono, a primeira universidade foi a de Coimbra, em Portugal, no século 13. Esta última, aliás, tem um lema muito bonito, escrito em latim: Scientiae thesaurus mirabilis (o admirável tesouro da ciência). O latim está presente nos lemas das outras também porque esta era a língua da ciência até o século 18. Foi em latim que Isaac Newton escreveu a sua obra clássica Philosophiæ Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural).
A divisão procedida ao correr da História levou a arte de ensinar e de aprender a especificar seus nomes: jardim da infância, maternal, pré-primário, primário, grupo escolar, ginásio, escola normal, colégio, faculdade, universidade, etc. A experiência é mestra, às vezes também do que não se deve repetir, mas consagrou algumas concordâncias célebres a respeito de escolas e universidades. Por exemplo: bons professores são indispensáveis. Um grande luminar em qualquer área, quando deu os primeiros passos na aprendizagem, teve bons professores para ajudá-lo.
E nós, no Brasil, qual é o nosso lugar no mundo da educação? As primeiras escolas brasileiras só surgem 50 (cinquenta!) anos depois do Descobrimento: uma na Bahia; duas em São Paulo. E a primeira escola privada do Rio de Janeiro foi fundada em 1871 pelo médico e professor Joaquim José de Menezes Vieira e por sua esposa Carlota. Ficava no número 26 da Rua dos Inválidos e oferecia os cursos primário, secundário e profissional em três regimes: externato, internato e semi-internato.
Era ainda um tempo em que cada classe tinha o seu bedel, palavra radicada no frâncico antigo com o significado de porteiro e também oficial de Justiça, mas que designava encarregado de ajudar o professor a manter a ordem na classe para poder ensinar. Não foram os positivistas os primeiros a reconhecer que a ordem é requisito para o progresso. Goethe já dissera muito antes que preferia a injustiça à desordem. Não existe mais o cargo de bedel nas escolas, mas ainda encontramos no Rio professores aposentados que foram bedéis no célebre Colégio Pedro II, que, para desespero dos pais, decretou que as aulas, interrompidas na pandemia, só voltam a ser ministradas em abril do ano que vem.
Se demoramos tanto a ter nossas primeiras escolas de ensino fundamental, quando tivemos nossa primeira universidade? A pioneira foi a Universidade do Paraná, fundada em 1912. Todas as outras universidades brasileiras têm menos de um século, diferentemente do mundo hispânico, que as teve ainda no século 16. Entre as primeiras estão a Universidade de São Domingos, na República Dominicana, e a de São Marcos, no Peru.
Em próxima coluna voltaremos a palavras-chaves do mundo que a educação inventou e está levando adiante.
Deonísio da Silva é professor e escritor. Seus livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina. Os mais recentes são De Onde Vêm as Palavras e o romance Stefan Zweig Deve Morrer.
Leia também: “A escola antiga era melhor, não era?”, artigo de Deonísio da Silva publicado na Edição 84 da Revisa Oeste
Excelente artigo!
Não encontrei o artigo “A escola antiga era melhor, não era?” sugerido, na edição 82.
https://revistaoeste.com/revista/edicao-84/a-escola-antiga-era-melhor-nao-era/
Uma entrelinha dedicada à Academia Brasileira de Letras e sua mais nova imortalizada sem livro.
Vai que a Academia hoje considera suficiente plantar uma árvore e gerar um filho…