As discussões sobre a realidade política no Brasil, hoje, vêm com um flagrante enviesamento ideológico. Mas, afinal, isso é ruim? Por quê? Convidamos a professora de filosofia Natália Sulman para nos ajudar a entender a realidade da ideologia presente nos discursos sobre política a cultura na mídia.
Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco, Natália é autora de A poética de Platão: Conteúdo e Forma nos Diálogos. Ela contribuiu com o artigo Filosofia: experiência e ideologia, para o livro Guerra Cultural na Prática, organizado por Gustavo Lopes. Confira abaixo a entrevista completa.
Como um dos autores dos artigos do livro Guerra Cultural na prática, você, que é especialista em filosofia, falou sobre a relação entre a experiência da realidade e as ideologias. De que forma as narrativas ideológicas podem afastar as pessoas comuns da realidade?
A ideologia, em sua essência, é uma construção linguística que se distancia da realidade, um exemplo é o conceito de gênero. Para o ideólogo, a relação entre as palavras (‘mulher’ ou ‘homem’) e a realidade física (órgão genital) é inexistente, permitindo que alguém, como Maria, reconfigure sua identidade simplesmente por meio da expressão verbal. A afirmação ‘Eu sou homem!’ pretende ter o mesmo efeito para o ideólogo do ‘Abrakadabra!’ para o bruxo. Trata-se da ambição de transmutar a realidade por meio da palavra. Por isso, o filósofo Eric Voegelin chama a ideologia de bruxaria. E essa artimanha não é exclusiva dos especialistas, até mesmo pessoas comuns podem cair nessa cilada; até mesmo jovens sinceros que, devido à sua inexperiência, tendem a confiar mais no discurso do que em suas próprias experiências. Um exemplo literário desse fenômeno é Ignatius Reilly, personagem do romance A Confederacy of Dunces de John Kennedy Toole. Ignatius critica a superficialidade do mundo moderno e da revolução industrial, embora dependa financeiramente de sua mãe, que trabalha em uma fábrica. Essa contradição é notável, já que sua própria subsistência está ligada à vida industrial que ele critica. Além disso, há jovens que adotam jargões e formulam seus posicionamentos com base em frases prontas, como se a verdade emergisse da linguagem, em detrimento da realidade do mundo.
Tais narrativas são instrumentos exclusivos da esquerda política ou a direita também se vale desse recurso?
A direita, longe de ser imune à ideologia, demonstra, ao contrário, uma crescente adoção de jargões que tendem a obscurecer a realidade com o poder da linguagem. Percebo isso nos meus seguidores do Instagram. Certo dia um deles me falou com convicção que as megacorporações têm um plano pró aborto. De imediato fiz uma série de perguntas: o que são essas corporações? Quantas delas, pelo menos, estão envolvidas? Como elas planejam suas ações? Com o que exatamente estão relacionadas? Onde estão localizadas? Há quanto tempo estão atuando? Sob quais circunstâncias? Qual é o estado atual delas? Quais são os mecanismos de ação que empregam? Como o público ou os Estados respondem a essas corporações? Como eu esperava, nenhuma dessas perguntas recebeu resposta. O autor da afirmação era igual aos esquerdistas que ele criticava, uma vez que não tinha um entendimento sólido da realidade, mas sim uma frase feita, uma ideologia de impacto. O fundamentalismo, nesse contexto, equivale a uma forma de ideologia.
Como e por que a maioria da população, cristã e conservadora das suas tradições, submete-se aos ditames de uma minoria espalhafatosa — como a classe universitária?
Esse fenômeno ocorre porque as massas continuam a viver como se estivesse tudo bem, permanecendo em silêncio diante de decisões sórdidas, disfarçadas sob rótulos atraentes. As massas estão mergulhadas naquilo que a filósofa Hannah Arendt chama de “banalidade do mal”, que consiste na mediocridade do pensamento, na maldade não planejada, e incorporada pelas ideologias. Na banalidade, o mal não se manifesta de maneira explícita. O revolucionário compreende que expor abertamente os seus planos não é atraente ao público; portanto, opta por se apresentar como defensor de princípios como a liberdade, a igualdade e a fraternidade. A Revolução Francesa é um exemplo. Por trás das belas palavras, o que eles realmente queriam era assassinar Luís XVI e Maria Antonieta, tirar a posse de terra dos aristocratas, perseguir clérigos, etc. A palavra “fraternidade” era tão desprovida de substância que eles perseguiram até os seus camaradas. Maximilien Robespierre, um dos líderes da Revolução, foi executado pelos seus comparsas em 1794. Todos os que receberam o título de “inimigos da Revolução” foram assassinados.
Os universitários têm papel decisivo nesse processo?
A classe universitária utiliza conceitos pseudocientíficos para abordar realidades mal compreendidas, resultando em discursos pedantes, repletos de histórias incoerentes, mas adornadas com uma fachada de sofisticação intelectual. Como o público não tem vocabulário especializado, ele se sente inibido em participar dos debates e, consequentemente, permanece em silêncio. Por exemplo, para promover a ideologia de gênero entre a população, a classe universitária cria conceitos como “direito sobre o próprio corpo” e “direito de personalidade”. Quem teria a coragem de se opor ao direito que alguém tem sobre si mesmo? Quem ousaria se opor a princípios universais como liberdade, igualdade e fraternidade? Como todo mundo quer ser bonzinho, mais vale calar do que se tornar opressor.
Como a filosofia pode ajudar as pessoas comuns a se libertar da opressão ideológica e, consequentemente, da opressão política?
Os jargões revolucionários podem vir como violências disfarçadas de beleza retórica. Vencer essas armadilhas exige a coragem de filosofar, pois é por meio da filosofia que conseguimos nos libertar das amarras da bondade aparente e abraçar uma bondade autêntica. A prática filosófica desempenha um papel crucial ao redirecionar a linguagem para a realidade, conferindo substância às palavras, em vez de permitir que se tornem apenas clichês de beleza superficial.
O Brasil vive um momento de restauração cultural, ou estamos perdidos para sempre?
Felizmente, muitos brasileiros estão saindo da banalidade do mal. Eles têm deixado de querer ser simplesmente “bonzinhos” para desejar a verdadeira bondade. Esse movimento envolve a crítica às palavras que soam bonitinhas e a recusa em aceitar as chantagens dos maus. Há alimento melhor do que aquele para o espírito e o intelecto? A busca por essas coisas levou a uma onda de conversões, resultando em novos leitores e educadores, com a internet desempenhando um papel crucial ao facilitar o acesso a uma variedade de ideias e experiências para além das influências da mídia convencional. Entretanto, fora da bolha, ainda existem aqueles que aceitam benefícios superficiais em troca de apoio político. Somos da terra em que votos são vendidos por cestas básicas, vale combustível ou Pix. Há corrupção política e corrupção simbólica. Os nossos velhinhos assistem à Rede Globo e viram comunistas sem o saber; assim como os nossos jovens assistem à Netflix e viram feministas sem o saber. Eis a execução do plano gramsciano. Os inimigos e o desavisados são tantos que a necessidade de leitura e ação é contínua. O livro Guerra cultural na prática pode ser um passo promissor nessa jornada de libertação das amarras ideológicas, sendo acessível a todos e servindo como um ponto de partida valioso.
A cabeça do esquerdista, infelizmente, não funciona de um modo normal, claro, harmonioso, num continuum processo de análise do fluxo de informações recebidas e recuperadas de si, para que, possam concordar ou não em exposições sensatas e lógicas restritas aos fatos. Não funciona num processo normal mecânico cognitivo, mas como no fluxo revoltoso de um fluído sujeito a áreas de diversas pressões, provocando seções sujeitas a cavitação (convulsões, fugas, ataques, ódio, inveja, ameaças, agressões, etc.). Antes de tudo doentes mentais que tentam incontinente e ininterruptamente levar os assuntos para o campo de seus complexos e frustrações, em vãs tentativas de minimizar suas dores psíquicas.
Excelente entrevista. Uma luz para meu tormento mental sobre o assunto uma vez que muitas pessoas próximas e queridas habitam a nuvem oposta aos meus pensamentos.
Ainda resta um fiozinho de esperança quanto à revista Oeste! Ainda há esperança nos textos maravilhosos do Guzzo e em tesouros esporádicos e espasmódicos como o encontrado nessa entrevista. Que sopro de ar fresco em meio a “matérias” tão fracas, mal redigidas e mal apuradas. (E quanta pegadinha publicitária muito tenuamente caracterizadas como tal, simulando artigos jornalísticos e enredando nossas telas mentais como se fôssemos meios e não fins.) Mas, retornando ao ponto principal, que lucidez, coragem e clareza a dessa senhora Natália Sulman! Pena que a matéria tenha sido exígua, quase telegráfica. Gostaria de ver a Oeste com textos de conteúdo (e de forma) de qualidade, como nos havia sido prometido. Encontrar essa matéria nos infunde, neste sábado pela manhã, um cadinho de alento nessa revista cujo padrão jornalístico (e éticos, vide suas políticas tão agressivas de loteamento de nossas telas mentais) parece aquém do aceitável. Que a Oeste saiba conduzir uma saudável autocrítica e redirecionar suas diretrizes editoriais e, não menos importantemente, suas práticas de inserções publicitárias mal-disfarçadas, enredantes e esteticamente grosseiras, como aquelas que nos afrontam, no café da manhã, com fotografias bizarras de doenças de pele e com outras imagens igualmente grotescas e bastante desagradáveis. Que bom, então, em meio a tudo isso, haver encontrado essa entrevista! Que mais coisas boas aconteçam na Oeste! Saudações fraternas a todos!
Há vida inteligente como na entrevista de Natália Sulman e em comentários como o seu. Obrigado a ambos.