Um instrumental pesado do rapper 50 Cent é a trilha de fundo do filme Anatomia de uma Queda. Em vez de uma leve sinfonia, própria para ser ouvida nos Alpes franceses, onde se passa a trama.
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Tal contraponto logo pode ser percebido no início do enredo, dirigido por Justine Triet, quando o escritor Samuel (Samuel Theis), marido da famosa escritora Sandra (Sandra Hüller), é encontrado morto na neve, depois de cair do sótão do chalé onde moram.
Há um turbilhão de ódio e opressão por trás daquela aparente vida pacata. Percebido já na cena inicial, em que, de forma um tanto despudorada, Sandra flerta com a jornalista Zoé (Camille Rutherford), que vai entrevistá-la.
Mas a conversa não pode continuar porque, lá de cima e enciumado, o marido coloca a tal música no último volume.
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Minutos depois, ele foi encontrado morto, pelo filho Daniel (Milo Machado-Graner), de 11 anos, quando o jovem chegava de um passeio junto com o cão Snoop, companheiro da família. Teria sido jogado por alguém ou cometido suicídio?
A pergunta permeia o filme, vencedor entre outros do Palma de Ouro de 2023. E incita os confusos argumentos da escritora. Ela é a única suspeita e busca esconder uma relação familiar tumultuada.
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As falas do inteligente promotor contrastam com as do competente advogado de defesa, Vincent (Swann Arlaud), um antigo amigo dela, que também vai se surpreendendo com revelações que mostram um lado opressor e hipócrita da protagonista.
O filme está disponível por streaming na Amazon Prime, Google Play, Apple TV e YouTube.
Visão da realidade
Em determinado momento, vem à tona o hábito infantil de Sandra em culpar o marido pelo acidente com o filho, que deixou o menino com dificuldades para enxergar. Do lado dele, ficam nítidas a insegurança e a vitimização excessivas.
O garoto, porém, é quem melhor vê a realidade, com sua sensibilidade e sua coragem para ouvir todas as revelações, em público, sobre o conflito do casal. A atuação de gala de Milo Machado-Garner contribui para isso.
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Juntamente com o fiel cão, com sabedoria, ele se coloca acima das picuinhas dos pais. Compreende-as, com compaixão.
E entrega para os adultos a conclusão de que aquele vazio existencial, de agressões gratuitas, sempre foi típico de muitos casais, independentemente do local e da época. Para além das aparências.
Não à toa, o nome dos personagens é o mesmo dos protagonistas. Em vez de viverem felizes para sempre, sentem-se dormindo com o inimigo. Mas deixemos essa discussão para outro filme.