A poetisa Cecília Meireles faleceu em 9 de novembro de 1964. Considerada por Carlos Drummond de Andrade “o próprio nome da poesia”, a escritora carioca marcou definitivamente a literatura não só brasileira, mas de todo o mundo lusófono. Profundamente sensível, a poesia de Cecília é altamente simbolista e pessoal, um convite à reflexão sobre a vida, a morte, o amor e a eternidade.
Para falar sobre a vida e a obra da escritora, Oeste entrevistou Fernandinha Meireles, neta da poetisa brasileira. A também carioca Fernandinha é designer e estilista, e conviveu com Cecília até os 8 anos.
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A neta da escritora revela que alguns dos poemas mais conhecidos de Cecília Meireles foram dedicados a ela. E conta também que outros membros da família Meireles contribuíram diretamente para a cultura nacional, como a atriz Maria Fernanda, filha da poetisa “libérrima e exata”.
Confira os principais trechos da entrevista.
De que forma a poesia de sua avó marcou a sua infância?
Em 1964, eu estava na casa dela, com ela, no quarto dela, ela me disse pessoalmente que escreveu dois poemas para mim: A bailarina e Ou isto ou aquilo. Foi no dia que os pacotes dos livros Ou isto ou aquilo, da Editora Giroflê Giroflá, chegaram na casa dela. Meu avô trouxe os pacotes para o gabinete dela, ao lado do quarto deles, onde estávamos eu e minha avó Cecília. Então, ela me pediu para que eu fosse ao gabinete e abrisse o pacote, tirasse um livrinho e trouxesse para ela. Foi o que fiz, busquei o primeiro livro Ou isto ou aquilo que eu e ela iríamos ver e ler pela primeira vez no mundo! Era a primeira edição, com ilustrações de Maria Bonomi. Peguei um exemplar e o trouxe para as mãos dela, e sentei novamente ao seu lado, na cama. Ela procurou e leu os poemas que escreveu para mim, “queria me mostrar”, “queria que eu visse e ouvisse” os poemas que dizia ter escrito para mim. O primeiro que leu foi A bailarina. E eu me via dentro do poema enquanto ela o lia e comentávamos sobre o ballet que eu dançava sobre o tapete da sala, e comentávamos também sobre a ilustração de Bonomi — uma bailarina em xilogravura.
Há algum poema em especial que tenha marcado sua convivência com a Cecília?
Quando, naquele mesmo dia em 1964, ela leu Ou isto ou aquilo eu também me reconheci dentro do poema, porque eu calçava a luva sobre o anel, nunca queria gastar o dinheiro que ela me dava para comprar, em sua companhia, os casadinhos de doce de leite na padaria, e nós ríamos encantadas com os poemas. Nos versos de Pescaria que dizem “as mãos do mar vem e vão em vão”, os seus olhos verdes encheram-se de lágrimas e os meus também, fomos nos afogando juntas e perdendo o ar. Ela, mais forte que eu, pediu para que eu pegasse uma caneta no pote, ao lado do telefone. Escreveu a dedicatória: “Para a Fernandinha ler as histórias da avó Cecília aos irmãozinhos” e assinou, “Avó Cecília”. Sua lágrima caiu cinza e “oblonga” na página branca da dedicatória, enquanto escrevia. E eu pensava na palavra “oblonga” do poema. Fui para a varanda do seu gabinete e, olhando para o Cristo Redentor, fiquei cantando uma música que nós cantávamos juntas: “Vamos passear no Jardim das flores, Giroflê, Giroflá para não te encontrar!”.
Ter tido contato com a literatura ainda na infância ajudou você a entender a importância da poesia para a indivíduo?
Nesse dia, ainda tão pequena, eu entendi que a maior maneira de escrever algo é escrever um poema. Lá estão todas as coisas imensas que as crianças sabem. Lá naqueles poemas está a poesia com aquela luz acesa para sempre. E sempre acessível. E mais: depois que aprendi a dizê-los, ficaram preciosamente dentro de mim por todos estes 58 anos. A poesia entrega sabedoria de forma concisa e é uma linda companhia para toda a vida. Sei todos os poemas desde o dia que recebi o livro. A poesia não é o poema. A poesia é o que fica vivo e suspenso e é o que o poema guarda. Atravessa a minha vida e é o mais precioso presente que alguém pode dar. Então a importância da poesia na formação do indivíduo é o encontro desde a mais tenra idade do ser com a sua própria sabedoria, e o encontro da fonte da poesia nos poemas. O indivíduo que tem fome de sabedoria, ao ser apresentado à poesia na infância, tem grande possibilidade de despertar em si mesmo e na sua formação pessoal a arte, podendo inclusive aprofundar-se infinitamente como fazem todos os sábios e os autodidatas.
Cecília Meireles marcou a literatura lusófona. Você acha que, no Brasil, o trabalho de sua avó é reconhecido hoje? Por quê?
O Brasil e a literatura lusófona têm a poeta universal Cecília Meireles e sabem que têm. Nem todos conhecem a obra, mas sabem que é importante. E é importante saber que é importante, porque o que Cecília Meireles escreveu visto da eternidade é mesmo magnífico, enxuto e exato universalmente. Para a humanidade. Não só para a literatura lusófona. Portanto eu me alegro com todos os tradutores que reconhecem que só nela encontram o que ela apresenta e me preocupo com aqueles que não estão lendo Cecília, porque estão perdendo muito! Estão desperdiçando sabedoria de uma grande intelectual e livre pensadora brasileira que leu e viveu numa biblioteca de 15 mil livros e que escreveu enriquecendo a língua portuguesa com superior qualidade, jamais pensada ou escrita. O Brasil e a literatura lusófona merecem Cecília Meireles porque ela os acolhe e é maior que eles. Alguém duvida? Leia Cecília Meireles.
Cecília também foi professora, tendo, inclusive, lecionado em universidades no Brasil e no exterior. Qual imagem do Brasil e poetisa ajudou a divulgar no âmbito internacional?
A imagem de um Brasil interessado no entendimento em harmonia com toda a humanidade. Numa educação que privilegiasse a formação de indivíduos conscientes do que é permanente e o que é provisório neles mesmos. Que isso criasse a compreensão da importância de saber distinguir esses valores como ela escreveu: “Estudar para saber, saber para viver e viver para quê?” Foi assim na Índia, no Texas, na Holanda e em toda parte onde ela lecionou. Sugiro que leiam os livros que ela escreveu, Notícia da Poesia Brasileira, Batuque Samba e Macumba, As Crônicas de educação, Elegia para Gandhi, a Elegia dedicada a Avó Jacintha, Artes populares, Romanceiro da Inconfidência, Cânticos, o teatro, as conferências, as crônicas de viagem, as aulas de crítica literária, a História do Teatro, os livros de literatura infantil, Ou isto ou aquilo, Rute e Alberto resolveram ser turistas, Criança meu amor… Diário de bordo, Episódio Humano… Ah!…que conheçam a primeira biblioteca infantil que ela criou e que leiam os trabalhos dos pesquisadores, mestres, doutores e pós doutores de Cecília Meireles. Não conheço local de maior concentração e desenvolvimento de inteligência.
A poesia de Cecília Meireles é, segundo os críticos literários, fortemente simbolista e pessoal. Você acha que a política e a cultura do Brasil atual interessariam a poetisa? Por quê?
Creio que Cecília Meireles é algo extraordinário, como o ponto fora da curva. Ela tem luz própria e é inapreensível. Todos os grandes intelectuais com autoconhecimento e arejados universalmente souberam e sabem falar da obviedade na excelência de Cecília Meireles. E ela está mesmo acima do país, da política, das religiões, dos times, dos gêneros, porque ela é norte. Continua centenas de anos à frente de todos, e aqueles que desconhecem o seu trabalho perdem muito. Ainda não alcançamos a sinceridade e a honestidade dela no nosso dia a dia, nem a mesma prática de suas virtudes e valores. Aquilo que Manuel Bandeira escreveu sobre ela: “enxuta e exata”. Ou o que Mario Quintana escreveu: “nada estará perdido enquanto não esquecermos teu nome: Cecília”. Ela é uma grande filósofa e antropóloga, de uma inteligência magnífica e ímpar para a humanidade. E ainda cega, com tanta luminosidade que expõe a seus leitores com seus livres pensamentos, a consciência, a sensatez e a presunção nacional e internacional.
Nós temos acompanhado as discussões acerca da linguagem neutra. Abstraindo-se o juízo moral da questão, o que você acha que sua avó diria sobre o tema?
Creio que ela nos diria que o assunto é muito antigo, binário, excludente e certamente nos apresentaria uma sugestão, porque ela gostava de penetrar nos idiomas e era por natureza agregadora. Por exemplo, soube recentemente que num estudo comparativo de cerca de sete mil línguas, apenas duas palavras estão presentes em todos os idiomas e são “isto e aquilo”. É muito possível que ela mesma já tivesse identificado isso. Quando ilustrei o livro cujo título ela deu — o mesmo do poema que disse pessoalmente ter escrito para mim, Ou isto ou aquilo —, fiz na primeira capa uma borboleta e na quarta capa uma lagarta, e dentro do livro uma “metamorfose”, porque ninguém sai de uma experiência incólume. Logo, pode ser muito fácil acomodar-se no binário, mas a metamorfose é a vida da natureza e algo genuíno e autêntico. É a natureza com suas verdades e a poesia é algo vivo no interior do poema, que percebemos quando nos debatemos entre isto e aquilo. Assim, também creio que todos os que desejam a paz e a harmonia devem estudar qual idioma ou língua resolveu essa questão de modo eficaz. Adotar o critério. E eliminar toda e qualquer infelicidade que o idioma ou língua possa causar a quem quer que seja.
A família Meireles não presenteou o Brasil apenas com a poetisa Cecília. Isso porque a atriz Maria Fernanda, filha da escritora, foi uma das pioneiras do teatro nacional. Quais outros membros de sua família se destacaram no âmbito cultural brasileiro?
Meu avô materno, Fernando Correia Dias (1898-1935), foi um grande designer, revolucionou o mercado editorial com seu traço, era chamado de “O Irrivalizável Correia Dias”. O meu segundo avô, padrasto da minha mãe, Heitor, era engenheiro agrônomo e professor catedrático de fitopatologia, ele fundou o CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas, atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a Universidade Rural, onde foi reitor. Minha tia Maria Elvira, irmã mais velha da minha mãe, criou o Serviço de Pesquisa e Biblioteconomia, semelhante ao Google, onde por telefone trocavam dados e fontes de pesquisadores no mundo. Ela estudou japonês, tendo lecionado português na Universidade de Tóquio.
Seus pais, assim como sua tia, a atriz Maria Fernanda, também tiveram relevância no país?
Minha mãe Maria Mathilde ingressou na Faculdade Nacional de Direito aos 40 anos, formando-se advogada e especializando-se em direito autoral, ela defendeu os direitos autorais da minha avó Cecília Meireles no poema Marcha apropriado indevidamente como “Canteiros” por Raimundo Fagner e gravadora. Minha mãe também estudou árabe e falava e escrevia nesse idioma, tendo inclusive criado uma cartilha para o aprendizado da língua. Já meu pai Hélio, engenheiro civil, recuperou o famoso “Esqueleto” para criar a UEG/UERJ e calculou sozinho o viaduto que une a zona norte à zona sul no Rio de Janeiro. E minha tia Maria Fernanda estudou teatro no Old Vic, em Londres, e teve companhia de teatro, sendo atriz também de televisão e cinema. Criou com Tio Oscar Araripe, seu segundo marido, a montagem da peça teatral Romanceiro da Inconfidência e excursionou pelo Brasil divulgando a poesia de sua mãe, assim como fazia recitais em inglês, francês e português da poesia traduzida de minha avó. Ela foi casada com o diretor de televisão Luiz Gallon. E tia Elvira foi casada com Harold Strang, engenheiro agrônomo, botânico e ambientalista; ele atuou na criação da Fundação Brasileira para Conservação da Natureza, e de diversas reservas ambientais, como a da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Minha avó deixou cinco netos: Ricardo, Alexandre, Fernanda (eu), Fátima e Luiz.
Na sua opinião, qual poema de sua avó traduz o esforço daqueles que, longe das ideologias, preocupam-se com a cultura no Brasil?
O Romanceiro da Inconfidência é um grande poema. E a Canção mínima é outro. Percebe-se claramente que um grande poema não é necessariamente um poema grande. E que num grande poema cabem paisagens e assuntos gigantes que não caberiam em outro local que não fosse a poesia, que é uma linguagem precisa, concisa e de dilatação, ressonâncias e repercussões infinitas. Ambos os poemas que citei são magníficos, mas não são os únicos. O Romanceiro é considerado a obra máxima de Cecília Meireles, mas também não é a única e concorre com outras obras como por exemplo Solombra, Cânticos, Viagem e Ou isto ou Aquilo.
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Sobre Cecília Meireles, cumprimento e aplaudo a ideia de entrevistar quem bem conheceu a magistral poetisa, e ainda, por, em meio a tantas más notícias, acalmar a alma e o coração dos leitores ao tratar da vida e da produção de Cecília. Se interessar, minha dissertação de Mestrado -USP- trata de obra ceciliana- METAL ROSICLER, o linguístico e o poético( Do fundo da memória extrai-se o Metal Rosicler).
Que ótimo, Maria. Obrigado!