Recentemente, depois de finalizar a leitura do meu primeiro livro de Flannery O’Connor, me questionava: “Como pude ficar tanto tempo sem lê-la?” Mas não sou o único. Muitos brasileiros, até entre os mais intelectualizados, nunca leram nada de Flannery, como percebi conversando com muitos bons amigos da área. Alguns aspectos de sua escrita talvez esclareçam um pouco o porquê disso: talvez por seu espólio literário ser basicamente composto por contos breves e críticas esparsas, tendo escrito apenas dois romances durante sua curta vida; talvez seja o fato de ter sido uma confessa tomista católica; ou, quem sabe ainda, uma mulher católica, com escrita quase gótica de teses existenciais muito distantes das que as escritoras mulheres engajadas da época, a primeira metade do século XX, teoricamente deveriam defender pelo simples fato de serem mulheres. Enfim, fato é que Flannery já é dona de uma das escritas mais profundas que conheci: seus textos são como estiletes da alma, aliam um realismo brutal das paixões humanas e trazem uma leitura psicológica completa dos personagens com um fundo tragicômico constante, expondo as misérias humanas em cada linha que escreve.
Essa descrição retirei das minhas observações durante a leitura de seu primeiro romance, Sangue Sábio, mas serve para toda a sua obra escrita; inclusive para seus diários e anotações, que foram recentemente publicados pela editora É Realizações em dois volumes: Mistério e Costumes e Diário e Orações. Esse trabalho de redescoberta editorial de Flannery contemporaneamente passa pela editora Sétimo Selo e É realizações, mas foi significativamente impulsionado lá em 2008 pela Cosac Naify com a publicação dos Contos Completos da autora norte-americana — livro que estou lendo neste momento.
Em Sangue Sábio — que julgo ser um bom começo para a leitura da autora — temos uma “trama gótica” em seu sentido mais obscuro, e uma trama existencial em seu sentido mais fantástico. Se tivéssemos de resumir a obra em um parágrafo sem dar spoilers, poderíamos tratá-la como um ensaio completo sobre as nuances da decadência moral do homem moderno. Flannery O’Connor nos leva até uma cidade do interior dos Estados Unidos, porém, mais especificamente, para dentro da mente de Hazel Motes, um militar que lutou na Segunda Guerra, foi dispensado do Exército americano e está voltando para o interior, a fim de lidar com seu passado e viver com sua renda fixa de ex-militar ferido. Motes é atormentado por uma infância marcada por pais pouco virtuosos e por seu avô, pregador protestante itinerante e fanático, o qual teria dito que Motes era uma espécie de amaldiçoado — afirmação que mudaria toda a sua percepção de vida e de dignidade.
Não fica claro ao certo — e esse é um dos charmes da escrita de Flannery — se pela guerra, pela infância, ou por ambos, Hazel se tornou fanático de uma seita que ele mesmo criou, a Igreja sem Cristo — depois, Santa Igreja sem Cristo. Misturando uma raiva patológica de Jesus e de seus pregadores, e uma ideia quase cartesiana de “verdade pura” como nova religião do homem, o neto amaldiçoado do pregador aos poucos se torna pregador para purgar terceiros do mal de Jesus e de seus pregadores — a redundância é proposital. Durante a sua chegada a uma cidade remota, Taulkinham, no Tennessee, atormentado pelas noções de salvação e pecado que recebeu das pregações do avô, ele conhece Enoch, um solitário e igualmente atormentado funcionário de um parque/museu da cidade. Esse personagem, que foi colocado em um internato de estudos bíblicos para meninos durante a infância, vivia aflito com a ideia de que encontraria um novo Jesus que o transfiguraria numa pessoa virtuosa.
A tônica da obra é, assim, o tormento de ambos os homens diante da consciência do pecado e da redenção humana. Motes renega qualquer possibilidade de redenção divina, de que Cristo tenha morrido por nossos pecados e purgado nossas falhas morais; Enoch, por sua via, renega o Cristo com seus mandamentos restritivos e teologias intelectualóides, busca antes um novo Jesus que se adeque ao que ele espera, e o que ele espera é ser um novo homem glorificado e não um homem que deva glórias a alguém. O primeiro se depara com o vazio e a consciência do nada, com o despropósito da existência típica de quando se tira Deus da equação, e aqui já podemos adiantar que, tal como em Demônios, de Fiódor Dostoiévski, o niilismo é o alvo das críticas internas da obra — consciente ou inconscientemente; o segundo, Enoch, se vê na missão de substituir Deus por um que seja submisso às suas vontades, e para tal missão qualquer coisa serve, até uma múmia roubada de um museu.
Confesso que essa é uma das obras mais impactantes que li este ano: meu imaginário e minha percepção crítica “explodiram” depois da leitura. Não pelo estilo, nem pela temática, mas Flannery me lembrou muito Dostoiévski — a menção a ele logo acima não foi à toa. Gostaria de poder perguntar à escritora, aquela católica devota e perspicaz, se especificamente esse livro, Sangue Sábio, teria sido escrito para responder a pergunta retórica e irônica de Jesus em São Lucas 6,39: “Pode acaso um cego guiar outro cego? Não cairão ambos num buraco?”. Parece-me que Sangue Sábio é justamente sobre esse buraco onde a humanidade se enfiou depois de renegar a Cristo e aos valores morais do cristianismo como um todo.
Motes era o exato cego que tentava guiar outros cegos com suas teorias filosóficas modernas, um pregador de uma igreja sem Cristo e sem nada, de uma verdade que mal se sustenta até a próxima esquina, tão relativa quanto banal, tão inerte quanto um mapa velho nas mãos de um cego, uma verdade esfarelante que, no final, se resumia ao nada existencial. Enoch, por sua vez, era a personificação do homo ideologicus moderno, o indivíduo que, na ânsia de recusar o cristianismo e Cristo, por pose ou por desespero, cai na tentação de substituir Deus por qualquer coisa que gere nele algum nível de fidelidade e conforto mental, e isso pode ser um ídolo ou uma crença política, quiçá uma quinquilharia filosófica que tenta dar conta de explicar o universo diminuto e familiar de um grupo qualquer.
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Trata-se de um livro de maturidade perceptiva que assombra, ainda mais quando sabemos que é a primeira grande obra da autora. Flannery foi, para mim, a grata surpresa em meu hall literário em 2023 e 2024. Gostaria de ter conhecido seus escritos antes — isso me pouparia muitos esforços intelectuais e palavras mentais para explicar a crise do homem moderno. Isto é, a crise das crises, a crise ontológica e teológica da qual nós tentamos fugir a todo custo, apartando as mãos dos cegos de ocasião e pedindo-lhes constantemente ajuda para chegar a qualquer lugar que aparente haver menos sofrimento e menos consciência.
Para finalizar, recentemente li, numa crítica de blog, que deveríamos dar menos importância a Flannery O’Connor, pois seus escritos se resumiriam em “uma busca constante de crueza e realismo existencial”, “caindo sem cessar na morbidez barata”. Acredito que esse tenha sido antes um dos melhores elogios à autora, pois a “crueza” existencial que ela expõe, que resulta nessa percepção de “morbidez barata”, é justamente a morbidez barata que nossa consciência decaída carrega com certo orgulho atualmente, é a realidade que escondemos em nossas prateleiras de teorias baratas, as falsas felicidades e engajamentos rasteiros que nos orgulhamos em ter. No fundo, creio que a escritora traz em suas obras a lembrança da redenção e não da corrupção invencível, pois há aqueles que veem a realidade do pecado e se conformam a ele, mas também existem aqueles que somente diante da vista “crua” e “mórbida” dos erros encontram forças para mudarem suas vias, ideias e vidas.
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