Confesso que tenho uma quedinha por distopias, a possibilidade de escrever um romance num ambiente imaginário, a fim de criticar com exatidão psicológica um regime ou postura política, a partir de uma licença poética típica das ficções, tem sua inegável sedução própria. Principalmente para aqueles que pisam diariamente esses dois terrenos, a literatura e a política.
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Certa vez me pediram para listar as três melhores distopias do século 20, e para espanto de todos que estavam naquela roda de debate, nenhuma das obras que citei eram de George Orwell. Para mim, a obra mais impressionante e profunda, e, paradoxalmente, uma das mais curtas e esquecidas do século passado, é Kallocaína, de Karin Boye — seguido de Lasca, de Vladimir Zazúbrin; e Admirável mundo novo, de Aldoux Huxley. Hoje falarei do meu campeão, Kallocaína.
Lançado em 1940 pela poeta lésbica sueca, e ex-comunista, Karin Boye, seu livro foi uma espécie de continuação no mergulho nas entranhas abertas da mentalidade totalitária feito anteriormente por Huxley — inspirando-se notoriamente no romance deste autor —, bem como se tornaria, posteriormente, influência marcante para 1984, de George Orwell.
Karin nasceu em 26 de outubro de 1900, em Gotemburgo, Suécia. Filha de um engenheiro e de uma dona de casa com ascendência alemã, teve uma educação profunda e erudita, tendo os livros sempre com companhia indispensável. Sua educação foi liberal, no sentido mais literal possível, misturando o protestantismo luterano de seus pais com a liberdade de ler desde Marx até Nietzsche. Após uma educação aberta como essa, em sua adolescência, numa mudança abrupta de seu pai, foi enviada para um internato cristão de meninas, o que parece tê-la marcado negativamente por toda a vida.
A juventude de Karin Boye
Já na juventude, na universidade de Uppsala, havia se decidido pelas ideias socialistas, não demorando para que adentrasse em grupos abertamente militantes. Aquele que ela publicamente abraçou foi o Clarté, encabeçado pelo escritor francês Hanri Barbusse, um grupo nominalmente apartidário, mas que atuava explictamente pró-comunismo, defendendo não só a Revolução Bolchevique como, posteriormente, os avanços diversos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Na época, assinava editoriais e escrevia seus textos pró-União Soviética em várias revistas especializadas em literatura. Em 1928, recebe um convite para visitar a URSS, e lá tem a maior decepção de sua vida, decepção essa que não superou até a sua morte, ao que parece.
Em relatos a amigos, ela dizia que enxergou a olhos nus aquilo que os críticos do comunismo relatavam no Ocidente, comprovando a sua realidade, que o abafamento ideológico às liberdades mais primordiais dos indivíduos era o tom comum da vivência sob comunismo soviético. Ela, então, convencida da perversidade daquela ideologia, aos poucos vai se distanciando dos grupos dos quais fazia parte, iniciando até uma famosa colaboração com uma revista de literatura, pró-Ocidente, a Spektrum, responsável por apresentar o poeta conservador T. S. Eliot ao mundo nórdico e ao leste europeu livre.
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Quando escreveu Kallocaína, em 1940, ela também já tinha outra referência de totalitarismo bizarro, o nazismo, que viu nascer direto da Alemanha, onde estava quando da ascensão de Adolf Hitler. O nazismo, para ela, não foi exatamente uma “decepção”, pois não havia se deixado seduzir por ele, tal como havia se deixado enganar pela ideologia da foice e do martelo. Porém, assistir à Alemanha se enamorar por uma ideia tão abertamente perniciosa e intolerante acabou por acentuar a depressão existencial de Karin. Essa depressão, com muitos porquês, advindo desde a sua infância no internato, a sexualidade reclusa, decepção política e incapacidade de lidar psicologicamente com tudo isso, acabou terminando em suicídio por ingestão cavalar de remédios para dormir, um ano após o lançamento de Kallocaína.
Kallocaína
O enredo da distopia se dá num mundo fictício, onde só existe o Estado mundial e os outros, além dos desertores que, literalmente, vivem no deserto à revelia do Estado — por vezes, sendo caçados e expurgados como exemplos. A estória é contada por meio de Leo Kall, um engenheiro e cientista que está desenvolvendo uma droga capaz de fazer qualquer pessoa se tornar extremamente verdadeira, incapaz de mentir, simular e até se calar. O Estado, obviamente, usa isso para instilar medo e controlar as mentes de seus servos.
No entanto, com o passar dos testes — tudo isso relatado em forma de anotações no diário do próprio cientista —, Kall percebe que até mesmo os mais aguerridos e fiéis defensores do Estado, aqueles que, pela postura, pregação e conduta diária, jamais seriam dados como suspeitos, após tomarem a droga, revelam uma espécie de liberdade interior, senso de consciência e autonomia crítica, que são justamente os princípios básicos que o Estado mundial sempre tentou suplantar em seus cidadãos por meio de sua doutrinação e censura. Como diz o slogan do Estado mundial ‒ e constantemente repetido na obra ‒ “sabemos que o Estado é tudo, e o indivíduo é nada”.
Tudo é investigado por meio do romance de Boye com uma profundidade absurda para um livro de 251 páginas
O cientista, aos poucos, começa a ganhar consciência de uma realidade comum que ele, criado e doutrinado desde criança pelo Estado, jamais tinha observado com aqueles olhos; em suma, Kall entende que tem autonomia, ainda que desesperadamente tente não tê-la. O homem, assim, não é engrenagem de uma máquina estatal — como faz querer crer o Estado mundial —, mas é antes um indivíduo com desejos e aspirações de liberdade intrínsecos.
Os diálogos que se seguem são impressionantes, desde a profundidade psicológica com que é abordado o tema da liberdade humana, até as questões mais banais sobre amizade e relacionamentos amorosos, tudo é investigado por meio do romance de Boye com uma profundidade absurda para um livro de 251 páginas, sob o formato de 15×16. A edição brasileira de 2019, pela Carambaia — com maravilhosa tradução direta de Fernanda Sarmatz Åkesson —, conta ainda com o ótimo posfácio de Oscar Nesterez, onde ele afirma que “durante a leitura do relato […], tem-se a impressão de que as paredes ao redor estão se aproximando, de que o oxigênio começa a rarear”.
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É exatamente a sensação, a de que podemos sentir a angústia de Leo Kall ao se descobrir indivíduo e livre dentro de uma máquina de compressão de homens e liberdades, a cada nova fresta de possibilidade que a consciência livre do cientista tenta dar como alternativa, o sufocamento da máquina de Estado e da mentalidade doutrinada vêm para engoli-lo por completo. Mas cessarei aqui minha descrição da obra, pois a intenção desta coluna não é, exatamente, ser um paraíso de spoilers.
Por fim, esse é um daqueles livros que um indivíduo não deveria morrer sem ler. É, entre os pares distópicos do século 20, o mais imersivo e exasperador; não raro, mesmo em condições diversas, nos vermos em desespero com Leo Kall. São pouquíssimos os autores capazes disso, talvez, dos modernos, mal possam ser contados em uma mão.
Karin Boye trouxe suas experiências, percepções aguçadas, sensibilidades e depressões todas para dentro dessa obra, chegando a prometer para seu editor que jamais voltaria escrever um livro tão “assustador e macabro”. Se quisermos realmente saber o que é uma mente enclausurada e amassada pelo totalitarismo, sem ter que nos tornarmos uma vítima dele, temos que ler Kallocaína.
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