Edmund Burke é comumente considerado o pai do conservadorismo político, e o livro que fez ele ser assim conhecido é o agora famoso Reflexões Sobre a Revolução na França. Na realidade, tal livro foi antes um panfleto escrito em forma de carta a um amigo francês, Chaerles-Jean François Depont. Ainda é discussão se a carta foi uma espécie de desculpa para um panfleto crítico à Revolução Francesa, ou se, de fato, a intenção era uma carta com considerações a um amigo que, posteriormente, foi publicada ao grande público em 1º de novembro de 1790. Independentemente da intenção do autor, é fato que o escrito se tornou um dos mais profundos de seu tempo com relação aos problemas criados pelas ações e pressupostos filosóficos da Revolução Francesa. Se não foi a intenção criar um tratado filosófico, foi isso que o texto se tornou ao passar dos anos.
No Brasil, ele tem pelos menos três edições em circulação, a da editora Edipro, com tradução de José Miguel Nanni Soares; da Vide Editorial, com tradução de Marcelo Gonzaga de Oliveira e Giovanna Louise Libralon; e da Topbooks, com tradução de Eduardo Francisco Alves; sem citar a histórica 1ª tradução integral do texto feita pelo Renato Assumpção Faria, pelo Denis Fontes de Souza Pinto e pela Carmem Lidia Richter Ribeiro Moura, da Editora Universidade de Brasília, lançada em 1982.
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Na realidade, o livro fez sucesso nos primeiros 50 anos após a publicação do original, pois carregava, além de uma evidente genialidade analítica com relação aos eventos e ideias da revolução, mas também um caráter de profecia ante o que se desenrolaria na França nos anos seguintes. No entanto, com o passar dos anos, o título caiu no esquecimento popular, sendo efetivamente redescoberto pela academia e parte da população intelectualizada no fim do século 19, especificamente pelos acadêmicos ingleses, e, na primeira metade do século 20, pelos literatos conservadores norte-americanos. E aqui cabe uma nota a um intelectual esquecido de nosso Brasil, José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, que foi o primeiro grande intelectual brasileiro a fazer referência e a traduzir partes de Reflexões Sobre a Revolução na França, em 1822, na obra intitulada Extratos das Obras Políticas e Econômicas do Grande Edmund Burke — reeditada no Brasil pelo Clube Ludovico, da Editora LVM, em 2020.
Naquele momento de 1790, não existia uma vertente política clara que pudéssemos denominar “conservadorismo”. Na verdade, o conservadorismo tal como conhecemos, como corrente de ideias e vertente política, é algo muito novo, podendo ser plenamente identificado somente em meados do século 19 na Inglaterra e na França. Não é estranho, assim, que um whig — partido liberal inglês — tenha sido o invólucro do dito “pai do conservadorismo moderno”. A liberdade de ideias, de transição de pautas e defesas políticas entre os liberais e os conservadores do século 18 na Inglaterra eram incrivelmente comuns naqueles dias, sendo que muitos “conservadores” habitavam o partido Whig, assim como muitos “liberais” estavam nas cadeiras torys ‒ partido conservador britânico.
O livro é composto basicamente de duas partes. Na primeira, Burke compara a Revolução Gloriosa de 1688-1689 à Revolução Francesa, mostrando-nos que esta última tinha motivos extremamente diferentes e intuições filosóficas completamente diversas daquela revolução inglesa. A primeira tinha como princípio a reforma das instituições e o empoderamento popular através de um guarda-chuva constitucional reformista, e não de ruptura; os ingleses não queriam derrubar as instituições históricas e as tradições culturais, mas criar instrumentos políticos e jurídicos para combater o absolutismo. Quando a Carta Magna foi assinada, sendo escrita e pensada por clérigos católicos, políticos e intelectuais da época, o princípio fundamental do texto era a limitação do poder do rei, a autonomia das instituições, a previsibilidade das regras constitucionais, a garantia das liberdades individuais e a criação de instrumentos políticos e jurídicos contra a tirania. A Revolução Francesa, por sua vez, partia do sentimento de revanche, apoiada em Rousseau, Diderot e Voltaire, fazendo da tomada do Estado apenas um passo de ação. O que se visava antes era destruir as instituições tradicionais, a cultura católica, bem como a organização social do país. Em suma, os revolucionários queriam começar uma sociedade do zero a partir de ideias racionalistas.
Burke argumenta que a sociedade necessita das experiências acumuladas da humanidade para constituir uma nação coesa; que a religião, as instituições sociais — que ele chama de “pequeno pelotões” — e a moral pública não são membros mortos de um conglomerado humano, mas entes ativos que renovam e mantêm a plausabilidade da comunidade; afirma ainda que destruir tais aparatos com desculpas racionalistas e ideológicas é o mesmo que planejar o próprio suicídio com ótimos argumentos: tudo faz sentido até que se chegue à conclusão do que foi planejado. Desta maneira, mostra-nos Burke, o caminho do racionalismo francês, da Liberté, Egalité, Fraternité, palavras bonitas, mas vazias de significado real em uma sociedade sem bases confiáveis, destruída por revolucionários simplórios, era o caminho para a pior das tiranias.
Tais impressões, que foram escritas ainda no início dos eventos da revolução, não demorou muito para se concretizarem ante às vistas de todos que acompanhavam os eventos naquele país; o que era então uma carta/panfleto, reveste-se de uma profundidade e genialidade absurdas. Robespierre sequer tinha tomado o poder; as execuções compulsórias, ainda que já comuns, não tinham ganhado os ares de morticínio caótico — como afirmam os historiadores Mona Ozouf e François Furet no ótimo Dicionário Crítico da Revolução Francesa.
Na segunda metade da obra, Burke expõe, pelas vias práticas da economia básica, como a desapropriação de terras dos nobres e da Igreja seriam, por fim, a pá de cal na economia francesa. Isso geraria não só caos público, desconfiança popular e fuga de capital, como a desvalorização massiva da moeda e das propriedades. O que se viu, novamente, foram as previsões do parlamentar whig se concretizarem aos olhos de todos. Os revolucionários, partindo de ideias e decisões simplórias, afundaram a França na pobreza e na balbúrdia pública; séculos de instabilidade social e econômica se seguiram após a revolução jacobina e, até hoje, a França vive com constante arroubos de instabilidade política.
Burke, assim, com as considerações sobre a Revolução Francesa, estabelece vários pressupostos que depois seriam adotados como princípios régios da mentalidade conservadora, categorizadas, conceituadas e investigadas por homens do calibre de Michael Oakeshott, Russell Kirk e Roger Scruton. Do princípio da manutenção tradicional da ética comum, respeito às heranças culturais e institucionais do Ocidente, à abertura econômica ao modelo do livre mercado, quase todos os atuais valores conservadores derivam de alguma forma desse panfleto de Burke. Obviamente que, quanto mais complexas a realidade e a política se tornam, mais atualizações são agregadas ao modelo de pensamento, sendo que, hoje, não só Burke é o fundamento do conservadorismo moderno, mas também Adam Smith — principalmente com sua Teoria dos Sentimentos Morais —, os escritos de Lord Acton e de G. K. Chesterton agregaram muito à dita mentalidade conservadora moderna. Mas, sem dúvida, foi Edmund Burke quem cimentou a maior parte — e mais basal — desta estrutura hoje denominada “pensamento conservador” ou “conservadorismo”.
Reflexões Sobre a Revolução na França, desta maneira, não é só o ponto de partida para os conservadores, mas também o escrito fundamental para a sanidade política de todo ocidental, pois, de muitas maneiras, os vícios, erros e absurdos dos revolucionários franceses de outrora mantêm-se até hoje sendo os vícios, erros e absurdos dos “progressistas” contemporâneos. Mudaram-se as bandeiras, os porquês, os instrumentos e até mesmo a retórica, mas a essência das ideologias “progressistas” nunca mudou. Ela continua querendo reconstruir a sociedade, a realidade e o ser humano segundo suas ideologias de gabinete. Burke é, por fim, o pensador que jamais envelhece, e por isso precisa ser constantemente redescoberto por nós. Para cada suposto programa progressista de salvamento da humanidade, Burke, há mais de 200 anos, tem argumentos destruidores que colocam de quatro qualquer arrogante arquiteto de sociedades perfeitas.
Excelente abordagem a respeito do Burk, obrigado.
*Burke…