Se pudéssemos chegar ao núcleo dos valores do Ocidente moderno, aquele que descendeu da organização político-jurídico de Roma, da filosofia grega e da teologia cristã, enxergaríamos o conceito de liberdade como uma das colunas fundamentais de sustentação de nossa civilização. Se existe algo que fundamentalmente nos diferencia das demais civilizações, esse algo é o nosso apreço primordial pela liberdade de ideias, culto, expressão e demais liberdades individuais; e, ao lado da liberdade, outro conceito fundamental perdido no Ocidente após o Iluminismo — principalmente nos dois últimos séculos — foi o da consciência da limitação racional do homem, a certeza de que o homem que não pode ser Deus.
Para um estudo aprofundado desse tema, recomendo fortemente o excelente, se não o melhor, livro sobre o tema: Inventing the Individual: The Origins of Western Liberalism, do saudoso professor de Oxford Larry Siedentop. Lendo essa obra, descobriremos que quem inventou o indivíduo, isso é, o ente autônomo ligado ao meio, à sociedade, mas diferente dela e dono de direitos e deveres específicos, foi o cristianismo e suas releituras da filosofia aristotélica, do estoicismo e da aplicação dos conceitos jurídicos romanos. Em suma, mostra-nos Siedentop, a liberdade, tal como entendemos hoje, é fruto da herança filosófica de Cristo.
Não há ligação direta, ao que parece, entre o livro acima citado do professor Siedentop, e o romance histórico de John Steinbeck, A Leste do Éden (Editora Record), todavia, se há um romance que sintetizou de maneira brilhante a alma ocidental estudada pelo filósofo oxfordiano, centrada no conceito de liberdade e limitação humana, com certeza esse é o texto de Steinbeck.
A Leste do Éden é uma releitura de Caim e Abel, mas não só uma “releitura”, pois, ao mesmo tempo, é um romance histórico que desvela a alma do homem norte-americano de meados do século XIX a meados do século XX, e é assim mesmo, acompanhando a história das famílias Hamilton e Trask, que vamos adentrando no mais profundo dos dilemas da humanidade: somos pré-determinados por uma vontade divina maior, ou somos homens de destinos resenhados? Temos liberdade para escrever nossas tramas, temos livre arbítrio e poder de ação autônoma ou somos seres pré-programados? Como filósofo, posso afirmar que essa temática talvez seja a mais profunda e inquietante da humanidade.
A trama se passa no Vale de Salinas, Califórnia, a cidade natal do autor, e por isso já notamos, desde o início que a obra, que, além de ser uma ficção histórica, é também um recorte autobiográfico, pois, ainda que a família Trask seja fictícia, a família Hamilton não é, a mãe de John Steinbeck descende realmente dessa última — ainda que as citações a ele próprio e à sua família nuclear, no romance, sejam quase irrisórias.
Ao longo das suas 686 páginas, acompanhamos a construção moral e psíquica de homens e mulheres que, guardadas as proporções, dizem respeito a todos nós, pois todos nós temos um pouco das características centrais desses personagens. Os paralelos entre a história bíblica de Caim e Abel, num primeiro instante, parecem apenas um panorama distante, no entanto, aos poucos, eles começam a ganhar forma ao ponto que, ao final, não temos apenas uma releitura, mas a própria história de Caim e Abel com personagens e tramas de Steinbeck.
Na trama, cada personagem ganha um papel quase metafísico e canônico, por exemplo, Adam Trask faz as vezes do Deus bíblico, benevolente e misericordioso, e, ainda que golpeado pelo mal, em sua misericórdia, é incapaz de abandonar os seus filhos e sua esposa, dando sempre aos seus a liberdade para que sejam seres autônomos, mesmo que a expressão dessa liberdade o machuque. Samuel Hamilton é o trabalhador incansável da terra, um símbolo idílico do que representa o mito da alma americana; é sábio e religioso somente ao ponto de ter uma fé pragmática, mas não religiosa, tendo por esteio a sua esposa, Liza Hamilton, esta sim fervorosamente religiosa, apegada à Bíblia e, apesar da sua rabugice e abstemia tão religiosas quanto sua fé batista, é uma mulher que, nas necessidades, socorre os amigos e defende o marido a todo custo. Temos ainda Lee, o sábio criado chinês de Adam, simbolizando, no início, a verdade benevolente, e, no final, o robusto e virtuoso conselheiro; ele representa, acima de tudo, a voz e a postura daquela verdade sábia advinda do Oriente, a Verdade que sustenta com simbolismo e serviço toda a estrutura moral e jurídica ocidental. Há também a sombria Kate Trask — depois tornada Cathy Ames —, esposa de Adam, que encarna a maldade absoluta, tem em seu espírito a pura perversão, é a personagem que dá o tom à obra, principalmente na segunda metade do livro. E os irmãos Aron e Cal Trask, os redesenhos de Caim e Abel. E, por fim, mais sutil, porém não menos importante, Abra Bacon, namorada de Aron, a representante da paciência divina e da acomodação moral das limitações do homem.
Por meio de personagens profundos e bem edificados, Steinbeck constrói seu livro de uma forma tão profunda que, em termos reais, acaba nos brindando com uma continuação de Gênesis 4. Ele praticamente nos conta, em forma de romance histórico, o que ficou subentendido no citado texto sagrado, quando Caim, envergonhado por seu ato homicida, encontra na reprimenda de Deus uma condenação absoluta, quando, na verdade, Deus estava pronto para o perdão e anunciando a ele, no versículo 7, que, se Caim quisesse, ele poderia dominar o mal que jazia dentro dele, que o pecado e sua condenação não estavam predeterminados e irrevogavelmente selados por Deus.
Vamos ao texto de Gênesis 4, 7: “Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se precederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo”. No romance, há uma profunda discussão sobre esse capítulo, mais especificamente sobre esse versículo 7, ao ponto de Lee, Adam e Samuel encontrarem na palavra hebraica TIMSHEL, interpretada no livro como “tu podes” e, na tradução da citação acima, da Bíblia Ave Maria, “tu deverás”, a própria fundação e confirmação do livre arbítrio humano. A palavra TIMSHEL ainda é matéria de debate entre os linguistas especialistas, pois, em hebraico, תִּמְשָׁל, timshel ‒ ou timshol ‒ é uma conjugação do verbo mashal (משל), que significa “tu dominarás” ou “tu deves governar”. Mas, ainda assim, “tu podes” não muda o conceito refletido no livro de Steinbeck, pois o sentido geral da tradução está correto.
Quando Lee interpreta a citação, ele encontra nas palavras de Deus a afirmação de que o homem pode dominar o mal e sua natureza pecaminosa, que ao homem é dada sim a possibilidade de redenção por meio das suas escolhas, ele pode ser bom ou mal segundo suas ações: “[…] se precederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo”. Adam, Samuel e Lee localizam aí uma promessa divina de criação e manutenção da liberdade humana, se Caim poderia, e deveria, afastar-se do pecado, e, arrependido, encontrar o desafogo do espírito por meio de boas escolhas de arrependimento, então o homem é autônomo, é mais que uma besta acorrentada a instintos, sentimentos e destinos. O homem é livre para escolher como agir, pensar e se portar.
O romance A Leste de Éden é a mais bela ode à liberdade que encontrei na literatura ocidental produzida no século XX, todo o resto da trama, absurdamente bem escrita e construída, leva-nos a conhecer o significado profundo da redenção por meio da misericórdia poderosa e da liberdade indispensável. É um dos três melhores livros que li em minha vida, não porque condiz com meus valores, mas porque é absolutamente profundo, bem escrito e com reflexões completamente atemporais; é um cânone indispensável que diz respeito a cada ser que nasceu desde Adão até agora. Façam um favor a vocês, aos seus e ao Ocidente, leiam e absorvam esse livro, promovam-no aonde forem, ele tem um poder velado de reconstrução civilizacional, de revitalização psíquica e religiosa, se um dia captássemos tudo que Steinbeck deitou nesse romance, o Ocidente voltaria a acreditar em seus princípios fundamentais, ele retornaria à redenção que lhe foi prometida.
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Assisti filme com james dean. qual é a tradução boa para o português? de qual editora?
O filme é excepcional! Título: Vidas Amargas!