Acabo de terminar a leitura de mais um livro de Olavo de Carvalho, A Longa Marcha da Vaca para o Brejo — O que Restou do Imbecil: Volume I. Trata-se de mais uma coleção de artigos, variante literária essa das obras de Olavo que o popularizou editorialmente no Brasil desde O Mínimo que Você Precisa Saber para não Ser um Idiota. No entanto, nessa nova coleção de artigos, vemos um Olavo mais profundo no diagnóstico daquilo que ele chama de “imbecis da imprensa” e “intelectuais brasileiros”, permeando suas críticas não com o simples assombro ante os fatos bizarros de nossa intelligentsia, mas antes analisando, a partir de um solo fértil da mais profunda filosofia clássica e boa filosofia moderna, como o Brasil sistematicamente parou de fabricar pensadores capazes, sejam eles à esquerda ou à direita, para gerar contumazes ideólogos rasos e histéricos. O saudoso filósofo nos entrega assim um conjunto de textos que se transforma em uma exegese de nossa atual miséria intelectual.
Sim, atual. Pois, desde quando escreveu esses artigos, em meados de 1997 e 1998, nada na substância de nossa derrocada intelectual mudou, a não ser por um ressurgimento de pensadores independentes, na sua maioria incentivados pelo espólio do próprio Olavo, que ainda muito timidamente vem oferecendo uma oposição real à agenda ideológica das instituições de ensino e dos demais poderes oficiais no país.
Após virar a última página do A Longa Marcha da Vaca para o Brejo, lembro-me de pensar: “Olavo conseguiu realmente”. Conseguiu o quê? Primeiro, expor de forma compreensível todo lamaçal de corrupção intelectual que há no especialismo acadêmico nacional, e, segundo, e o principal, retirar o conhecimento filosófico, histórico e sociológico do bunker acadêmico dominado pelo progressismo esquerdista. Eu mesmo passei brevemente pela academia — e saí completamente desgostoso. Não por que não pude continuar, até tive a oportunidade de ingressar na PUC Minas após minha graduação, mas não quis. A academia me parecia um sistema feito para desapaixonar o conhecimento sincero, uma mistura de burocracias e empurrões ideológicos de acadêmicos que encaram suas funções como uma espécie de fordismo pedagógico. Não sou um “anti-intelectual”, “antiacadêmico”, só não sou um tarado por diplomas e papeis chanfrados, acredito no conhecimento que vai além dos muros da universidade.
Já sei que estão pensando: “Está aí mais um filhote de Olavo”. Desculpem-me frustrá-los, nunca fui aluno de Olavo, o Olavo que conheço é aquele dos livros. Nunca assisti às suas aulas, aliás, para ser mais exato, à exceção de umas duas ou três enviadas por amigos que queriam compartilhar sua análise de Kant — genial análise, diga-se de passagem. Minha admiração ao velho e rabugento pensador radicado nos Estados Unidos até à sua morte se dá na esteira das duas virtudes citadas acima; parecia-me — com duas exceções diretas, Paulo Francis e Nelson Rodrigues — que somente ele teve a coragem necessária para denunciar a miséria intelectual brasileira, idiotizada por ideologias esquerdistas acadêmicas, e somente ele conseguiu criar uma via de escape para que pessoas comuns chegassem com capacidade crítica e analítica ao conhecimento filosófico clássico e moderno. É bem verdade que ele era um conservador, e como tal expunha suas visões parciais, mas, quando escreveu sobre filosofia, por exemplo, em Aristóteles em Nova Perspectiva, tomou o cuidado real de apresentar ideias e análises sem cair no simplismo opinativo de um militante de uma causa.
Hoje, a mídia tradicional e as universidades não se cansam de vender um Paulo Freire pop, o dito pedagogo de todos nós, mas fato é que só lê Paulo Freire a casta dos especialistas. Ainda que o velho comunista tenha de fato tentado popularizar a filosofia pedagógica — e posso acreditar que o tenha sinceramente tentado —, é verdade, porém, que suas ideias hoje se encontram somente nas torres de marfim universitárias, sendo reviradas por profissionais do empolamento intelectual, dissecadas por acadêmicos que conhecem cada contorno de sua pedagogia. No entanto, pergunte à dona Ana ou ao seu Sebastião se eles sabem o que significa “a horizontalidade pedagógica”, ou o que é “o sentido dialógico da revolução” através da pedagogia proposta por Paulo Freire. Todavia, conheço pessoalmente “donas Anas” e “seus Sebastiões” que leram, ao menos, o Imbecil Coletivo e O Mínimo que Você Precisa Saber para não Ser um Idiota. Um amigo meu, há três anos, quando ainda trabalhava de pedreiro, havia lido a Metafísica de Aristóteles, seguido por outros livros de comentaristas, após ingressar no COF, as famosas aulas que Olavo ministrava on-line.
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Não tenho dúvidas de que a melhor maneira de criar uma população mais inteligente e crítica — isso no sentido erudito mesmo, capaz de analisar a realidade e as forças históricas que tentam moldá-la, e se fundamentar em ideias basilares de nossa civilização — é tirando a pompa e as paredes diplomais do conhecimento. Não estou falando que devemos ignorar a academia, estou dizendo que não devemos ser reféns dela. Temos de dar a ela a medida real de sua importância, um ambiente para vocacionados à especialização de um determinado conhecer, mas não um fim em si mesma. O conhecimento não deveria pedir crachás, a filosofia não deveria depender de uma apresentação do Lattes para ser séria ou real.
Olavo popularizou a filosofia mais alta, explodiu o bunker acadêmico nacional e trouxe para fora aqueles autores que eram reservados aos que tinham credenciais, apresentando-os, em seguida, a todos. Ainda se escuta aqui e acolá que esse mérito que purpurino aqui é justamente o pior defeito do velho, isto é, ele deixou à livre crítica e análise certos pensadores que demandam antes de um determinado grau de conhecimento para serem retamente criticado. Posso ouvir daqui o “ORA POURRA” de Olavo dizendo que “é justamente para isso que ele veio. Para f*der a p?*rr@ toda”.
Os méritos de Olavo de Carvalho
Deixo então para vocês a análise final desse imbróglio. Para mim, e adianto aqui minha opinião, quanto mais popular for a filosofia, a história e a sociologia, melhor; não que o conhecimento profundo da filosofia seja para todos, isso é tolice, nem todos querem pagar o preço de se dedicar à vida intelectual — e está tudo bem! —, mas, com certeza, ninguém deveria ser afastado dos conhecimentos humanos somente porque não tem uma carteirinha do MEC ou um Lattes de mais de 3 páginas.
Não concordo em tudo com Olavo, é bom dizer, pessoalmente não consigo me desvencilhar da percepção de que há em sua filosofia um tom esotérico e demasiado personalista do qual não comungo; talvez seja resquício de suas ideias antigas voltadas a uma espécie de astrologia filosófica oriental da qual ele tentou se libertar e reabilitar em sua fase madura por meio do catolicismo tradicional. Minha admiração, aqui, definitivamente não está na esteira do êxtase idolátrico. Porém, pedagogicamente falando, vejo em suas ideias uma reformulação idearia muito sofisticada, partindo da anamnese voegeliana, passando pela análises aristotélica do ser e do conhecimento, chegando ao ponto da reformulação dos princípios cartesianos, para no fim ampliá-los todos em sua filosofia, filosofia essa, aliás, muito embebecida das análises dos quatro Evangelhos.
Para Olavo, quanto mais acesso tivermos a diversos pensadores, das mais variadas crenças, melhor, principalmente se estivermos assentados sobre uma autonomia intelectual verdadeira. Sempre que vi curadores do conhecimento, eles pareciam mais com policiais da Gestapo do que com pedagogos desinteressados e sábios, e nisso concordo plenamente com Olavo. O conhecimento advém da autonomia de um ser racional e da busca sincera dele pela verdade, somente desses dois princípios e nada mais; não há chancelas a serem buscadas e nem pedágios a serem pagos, apenas a busca incessante e visceral pelo saber.
Prefiro que todos tenham um interesse profundo pelos estudos, e Olavo fomentou verdadeiramente tal interesse, do que ter que pedir sempre a benção aos pós-doc para virar uma página. Não que tais especialistas sejam todos dispensáveis, que sejam todos ideólogos imbecilizados, claro que não são, mas não deveriam ser eles uma condição sine qua non para se alcançar e conhecer algo com profundidade e verdade em termos de estudos. Não acredito no libertarianismo político, mas talvez creia no pedagógico. “Ora pourraa”, é justamente essa libertação que faz a intelligentsia e os poderosos tremerem; tornar os indivíduos capazes de entender o porquê do pão e do circo é algo apavorante aos tiranos.
Olavo, por fim, não foi odiado por suas opiniões conservadoras e palavrões desmedidos, mas porque tirou da mão dos especialistas os cativos interessados por conhecimento e interessou, como nenhum Paulo Freire conseguiu até então, uma multidão a buscar os estudos sérios da filosofia e demais ciências humanas. Minha cachaça, hoje, vai em honra a Olavo…
Lendo Olavo, abriu-me a mente para compreender Paulo Freire, ou, mais precisamente, sua obra Pedagogia do Oprimido. Não se trata de um livro de como obter um resultado pedagógico eficaz, no sentido de fazer o alunato compreender um assunto. Jamais! Trata-se de uma obra, brilhante, de como formar militante comunistas. Leia sob essa ótica, e o livro será fantástico. Vejamos: a) divida o mundo entre oprimido e opressores, sem clareza de quem é quem nem de quando quem é quem. Há um oprimido que o é em absoluto e há um opressor que o é em absoluto. Isso é uma regra distorcida da Análise Transacional de vítima, vilão e herói. b) o professor, então, será o herói a salvar o oprimido do opressor, mas cuidado para não reprovar aluno vagabundo, ou o professor será o opressor. c) o professor não age por si, ele age coletivamente, ou seja, segue as ordens do Partido. d) o conteúdo escolar é ‘bancário’, devendo ser substituído por um conteúdo ‘crítico’. e) tal conteúdo crítico consiste numa geopolítica rasa que divide o mundo entre países opressores e oprimidos, e, claro, o gostoso mesmo é se ver como oprimido. Sempre. f) Ato contínuo, a autoridade parental deve ser minada. Os pais são opressores naturais de seus filhos. g) Por fim, o objetivo máximo da Educação é a Revolução Comunista. Jamais se esquecer disso. Agora, releia Pedagogia do Oprimido sob essa lente e diga: Paulo Freire foi ou não foi um gênio?