Isaiah Berlin é um dos filósofos políticos liberais-conservadores mais ignorados de nosso tempo, e ainda que goze, nos círculos liberais-conservadores mais refinados, de um prestígio sensato que lhe é devido, é ainda um ilustre desconhecido do público intelectualizado liberal e conservador no Brasil. Judeu letão, com nacionalidade russa, e, posteriormente, naturalizado britânico, foi um homem de extensão literária e abrangência intelectual únicas. Escreveu inúmeros ensaios e até contos; seus livros, na grande maioria, são reuniões de ensaios, principalmente porque se especializou em escrever em periódicos e jornais da época. A força das ideias e As raízes do romantismo, o primeiro uma coletânea de ensaios, e o segundo transcrições de um colóquio, são obras primas da filosofia política moderna ainda pouco valorizadas no país.
Suas análises políticas misturam a percepção acurada de um filósofo que tenta abster-se de suas ideologias e vieses particulares, com uma crítica ajustada e fina às construções ideárias do século 20. Por ter sido um autor que se comunicou mais por meio de ensaios e palestras, ao invés de longos tratados e teorias desenvolvidas exaustivamente durante a carreira, como vários filósofos políticos contemporâneos a ele, textos introdutórios às suas ideias principais se tornam necessários para um compreensão factual de seus insigths. E esse é o caso do quase “livreto” — em termos de quantidade de páginas, e não diminutivo em seu excelente conteúdo — Uma Mensagem para o Século XXI, editado pela editora Âyné.
O livro é feito de dois ensaios de Berlin, A procura do ideal e Uma mensagem para o século XXI. Em ambos, o filósofo está aguçado na arte de expor aquilo que ele rastreou como os principais problemas do século XX no campo da cultura e produção de ideias, isto é: o racionalismo político, que ele caracteriza pela busca de uma exatidão científica de resultados por meio de cartilhas ideológicas, como nos casos do marxismo e positivismo, e na descrença pessimista dos valores liberais clássicos da liberdade individual como meio de prosperidade civilizacional e da tolerância cultural com o diferente como via de manutenção ordeira da sociedade.
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O que mais diferencia Berlin dos demais críticos liberais-conservadores que ombrearam suas análises no século XXI, foi sua crítica constante e profunda ao totalitarismo político e às ideologias, que ele chamava também de “totalitarismo das ideias”. Como um digno sobrevivente ante duas ideologias macabras e mortíferas do século 20, o nazismo e comunismo, o pensador liberal não era inocente no que tange às vias de massificação e coisificação do indivíduo por ideologias. Ele mesmo viu os horrores perpetrados pela Revolução Comunista em sua cidade natal, Riga, capital da Letônia; horrores esses que deixaram em seu espírito uma aversão acentuada contra quaisquer tipos de totalitarismos políticos e imposição de ideias — após ter sofrido com os ataques dos revolucionários comunistas, sua família emigrou para Grã-Bretanha. Em uma de suas afirmações mais marcantes do livro, onde é possível enxergar uma crítica pautada não só em pesquisas e conclusões acadêmicas, mas também nas experiências de vida do autor, ele afirma: “Há homens que matam e ferem com uma consciência assaz tranquila sob a blindagem de palavras e escritos daqueles que possuem a fé inabalável de que a perfeição pode ser alcançada”. Nessa frase há toda a crítica central de suas ideias e teses.
Mas Berlin não permitia murchar em si a esperança de uma sociedade que valorizasse o ser humano como princípio ético inalienável e a liberdade como condição de dignidade e prosperidade, alcançando não uma perfeição social, mas uma convivência assaz possível e plausível, com uma relativa paz perceptível, ainda que não completa. O pensador letão acreditava, assim, numa ética universal, natural, que unia os indivíduos sob um guarda-chuva de dignidades e deveres inatos. Esse tom de ceticismo misturado a um otimismo esclarecido fez de suas ideias um paradoxo interessante de ser analisado, pois, ao mesmo tempo que criticava a classe dos produtores de ideias, os intelectuais, por se venderem a ideologias utópicas e claramente mentirosas, temperou tais críticas com uma visão positiva dos valores liberais do Ocidente, acreditando, assim como outros liberais e conservadores de seus dias — tal como Mortimer Adler e Leo Strauss —, num plano plausível de educação moral e intelectual do Homem ocidental. Ao mesmo tempo que pedia larga tolerância a culturas diferentes, não se escondeu num relativismo multiculturalista pueril, criticou antes, com Karl Popper, a ideia bisonha de que devemos tolerar aqueles que querem nos destruir, como se isso fosse alguma espécie de virtude, e não uma completa idiotice suicida.
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E ainda sob tal ceticismo humeniano, Berlin desconfiava previamente de qualquer vendedor de sociedade perfeitas e melhorias humanas demasiado marqueteiro. Para ele, o ser humano é naturalmente falho e sua razão é constitutivamente limitada, sendo qualquer planificação política que prometa qualquer grau de perfeição e solução final à humanidade um embuste ideológico que acabará sempre em desgraça. Nenhuma ideologia, por mais bem construída que seja, pode encapsular toda diversidade e dinamismo dos seres humanos, aponta Berlin, “a receita para a perfeição [política] me parece a fórmula para o derramamento de sangue, ainda que receitada pelo maior dos idealistas, com o mais puro dos corações”.
No entanto, o filósofo acreditava que a humanidade tinha um senso básico que unia a todos sob uma mesma ética, uma percepção racional, sim, mas também experenciada, um senso comum que nos fazia capazes de dialogar e buscar vias sensatas de coexistências; “[…] todo homem tem um senso básico do bem e do mal, não importa a qual cultura pertença”, dizia Berlin, e completou: “Existe, se não valores universais, uma taxa mínima sem a qual as sociedades não conseguiriam nem ao menos sobreviver”.
Dessa forma, sua defesa de um direito natural, isto é, numa ética universal, unida à sua crítica central do desejo ideológico de planificação da sociedade, são os arrimos que sustentaram suas teses e conclusões como um todo. Foi um autor que fundamentou sua filosofia num resgate liberal de uma visão positiva do homem, aliado a um ceticismo político típico dos conservadores do século 20.
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É preciso redescobrir esse grande pensador e popularizá-lo, tal como, em 2014, foi feito aqui com Ludwig von Mises e F. A. Hayek. Um pensador que reuniu um profundo conhecimento filosófico e capacidade de exposição de ideias, escreveu desde uma biografia de Karl Marx, até uma crítica sofisticada ao neorromantismo — sempre um prelúdio de épocas ideologizadas. Quer ser iniciado nessa grande mente liberal-conservadora de nossos dias, Uma mensagem para o século XXI reúne duas das mais centrais críticas de Iasaiah Berlin de seu espólio filosófico, além de uma escrita contagiante que te levará a querer outros livros dele. É um filósofo para nossos dias, seus ensaios — e podem ler para comprovar — são mais atuais e profundos do que a grande maioria dos ensaios de filósofos que sairão ainda esta semana nos jornais e revistas do Brasil. Um pensador que — novamente eu friso — ousou ser um paradoxal, cético, otimista, tornando-se o exato meio entre a crítica aguçada às ideologias antiliberais do século 20 e a esperança consciente naqueles valores que nos forjaram ocidentais.
Pedro,meu filho, texto excelente como sempre.
Um prazer ler a sua coluna,livro comprado.
Vida longa e próspera.
Agradeço o apreço e carinho, meu amigo.