Entre as minhas preferências literárias, destacam-se, sempre, as distopias e as literaturas filosóficas. No entanto, minha primeira paixão foi o romance policial. Foi através dele que me tornei um voraz leitor. De Edgar Allan Poe e sua maravilhosa obra, A narrativa de Arthur Gordon Pym, passando por Agatha Christie e seu Assassinato no Expresso Oriente — primeiro livro que li da renomada autora do alto dos meus 15 anos —, a Stephen King e Joël Dicker, me recordo de passar horas a fio “comendo páginas de mistério”. Sei que muitos críticos literários discordarão de mim aqui — Harold Bloom sentiria até calafrios ao ouvir isso —, mas consigo notar como, dos mais banais aos mais complexos romances policiais, todos, de alguma forma, levaram-me a refletir sobre questões morais e existenciais profundas, o que mais tarde me faria desejar cursar filosofia, especializar-me no ramo e consumir literaturas mais requintadas e eruditas.
Com certeza, o autor de romance policial que mais me marcou foi Georges Simenon, um belga que escreveu aproximadamente 175 romances e mais incontáveis contos e críticas, criou um dos mais icônicos e bem desenvolvidos “heróis” desse gênero policial, o comissário Jules Maigret, um singular investigador da polícia judiciária francesa do século 20. Diferentemente do típico policial dos contos hollywoodianos das décadas de 1980 e 1990, uma mistura de Rambo com algum deus grego esquecido, Maigret era um homem que cultuava e defendia o tabaco e seu cachimbo, tinha um porte físico mais próximo de um gordinho sedentário, era casado e fiel ao seu matrimônio, além de ter como arma principal não o conhecimento em artes marciais e um porte físico invejável, mas sim a sua astúcia e capacidade de conectar pontos-chave de sua investigação apenas observando as pessoas e os arredores dos casos.
Maigret aparece em 75 romances de Georges Simenon e em mais uma dezena de contos esparsos. A discrepância constitutiva do autor na criação das narrativas, ante os demais protagonistas do mundo dos romances policiais de seu tempo, fez dele um sucesso na Europa, e, ainda hoje, depois de quase 35 anos de sua morte, seus livros e enredos soam ainda como originais. Em 2016, a ITV da Grã Bretanha serializou os romances de Simenon, e, em 2022, o diretor Patrice Leconte lançou um filme do comissário, Maigret e a jovem morta — ótimo filme que se encontra atualmente na Prime Video. Além das características de Maigret, que fazem desse policial algo único, controverso, uma mistura apaixonante de um estereótipo de fracassado com a inteligência perspicaz que o projeta para fora de suas limitações, destaca-se também a prosa direta e completamente fluida de Simenon.
No Brasil, em suma, três editoras lançaram amplamente as obras de Simenon sobre o comissário Maigret, a LP&M e a Companhia das Letras — e, anteriormente, Nova Fronteira —, ao que parece a atual detentora dos direitos de tradução no Brasil continua sendo a Companhia das Letras, ao menos não temos notícia do contrário. Todavia, desde 2018, infelizmente, não há nenhuma nova tradução do autor no país. Fica aqui meu protesto, Companhia das Letras.
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Os textos de Simenon caracterizam-se, principalmente, por sua descrição fundamental e ambientalização eficiente, isto é, ele descreve apenas o que é necessário para a trama em seus personagens e cenários, e ambientaliza de forma eficiente os panoramas que cercam os protagonistas, climas e locais. Tudo parece ser descrito com extrema argúcia, sem firulas esteticistas e poéticas. Tais características tornam os livros de Simenon uma fácil e rápida leitura, sem que se perca, no entanto, a beleza literária construída justamente a partir de tais atributos únicos de seu estilo narrativo.
Se um dia me perguntassem: qual o autor fundamental do gênero policial(?), Christie e Simenon com certeza encabeçariam a minha lista. Eles não só construíram protagonistas únicos no gênero, como criaram tramas extremamente difíceis e inventivas, dando ao segmento uma nova amplitude de público e possibilidades de vias literárias. Uma autora moderna que é uma síntese desses estilos, que mescla tanto Christie como Simenon, é a famosa P. D. James. Fato que nos mostra que, mais do que bons livros para diversão rápida, esses autores deixaram um legado literário mais extenso.
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Alguns leitores da minha coluna me perguntam constantemente como levar seus filhos, na maioria, adolescentes, ao gosto pela leitura. Ao contrário de muitos comerciantes de “how to live” que existem nas redes, não tenho uma receita pronta com resultados garantidos, mas com certeza os jovens se caracterizam por um natural interesse pelo mistério e pela busca de solucioná-los, e uma das recomendações que dou é Simenon, sempre que possível. De Willian Faulkener — para mim, o maior autor norte-americano do século passado — a John Gray — um dos filósofos britânicos mais influentes desse século —, ambos se renderam publicamente ao estilo e capacidades únicas de Georges Simenon.
Como esta coluna nunca prometeu somente análises de novidades, uma boa forma de indicar bons livros antigos é levá-los antes ao redil de Simenon e seus ótimos romances policiais. Tome, pegue, estou ofertando muitas horas deliciosas de mistério, cachimbadas literárias, bandidos improváveis, além de um policial extremamente excêntrico e politicamente incorreto.
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Vou providenciar a leitura hoje mesmo. Conhece Rex Stout?!
Na chamada do artigo, esta escrito “comissao”, ao inves de “comissario”…voces continuam sem copydesk ?
Leio romances policiais desde criança e confesso que muito pouco deles me decepcionaram, ao contrário de muita leitura “profunda, requintada e erudita” que li durante a minha vida. A aversão de alguns intelectuais a esse tipo de leitura é apenas e tão somente alergia ao que é popular e alcança todo tipo de leitor. O romance policial é uma (boa) porta de entrada para o mundo da literatura.