Costumo dizer que nutro algumas dívidas literárias toscas demais para serem reveladas. Uma delas era com Senhor das moscas, de Willian Golding, e o pior, ele pode ser considerado — e de fato é — uma distopia, o que deixa meu relapso de leitura ainda mais inexplicável, dada a minha tara por distopias. Na verdade, preciso explicar melhor meu pecado. Esse foi um dos pouquíssimos livros que iniciei e não tinha terminado. Tenho um princípio quase sagrado — que poderia também se tratar de uma mania ao estilo clínico de patologia — de ir até o fim de um livro que inicio, não importando se esteja gostando ou não da leitura.
Em 2018 — já muito tarde para se ler um livro dessa envergadura, eu sei — abri Senhor das moscas para lê-lo e, lá pela página 100, o abandonei. A trama não me cativou, achei enfadonho, e, por vezes, repetitivo. Rasgando meu tique de ler um livro até o fim mesmo sem vontade, deixei a obra em alguma pilha de livros qualquer na minha biblioteca pessoal. Há algumas semanas, após o desmonte da biblioteca por motivos de mudança encontrei o clássico de Golding, tristonho, logo embaixo de O reacionário, de Nelson Rodrigues, e, com um remorso que somente os católicos bibliófilos com tiques podem ter, recomecei imediatamente a leitura do referido livro — desde a primeira página, que fique claro —, e em três dias havia terminado a leitura; a sensação era completamente diferente daquela má fadada primeira tentativa.
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William Golding conseguiu um enredo cativante de “largados e pelados” e, ao mesmo tempo, altamente reflexivo, aliando uma poderosa capacidade analítica da psique e instintos humanos com uma crítica filosófica sutil e poderosa à famosa tese pedagógica da “tábula rasa” e à do “bom selvagem” iluminista, que praticamente foram os dois pilares filosóficos para as ideologias modernas.
Certo dia um avião lotado de alunos de uma escola militar britânica cai em uma ilha deserta, nenhum adulto sobrevive, apenas as crianças. Com o passar dos dias, a sociedade, literalmente juvenil, tenta se estabelecer com alguma organização advinda da educação militar dos alunos. Assim, líderes e guardas são respectivamente votados e designados, perímetros e regras básicas são demarcados, até mesmo uma espécie de junta de engenharia de emergência é organizada pela cúpula dos adolescentes. Num primeiro instante, os jovens parecem se agarrarem à ordem às regras herdadas da civilização. A organização racional surge como a única maneira de se ter a mínima chance de sobrevivência no caos do desconhecido. Contudo, com o passar do tempo, a desesperança e a falta de comida levam os jovens a se tornarem céticos à ordem estabelecida, as regras são contestadas em seu princípio régio: se não há uma ordem prévia segura, algum direito natural observável, a ordem consensual se torna pueril. O caos paulatinamente vai se instalando e se tornando a manta da realidade da ilha.
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A obra, aos poucos, vai se revelando uma das descrições mais fundamentais de como o instinto básico de sobrevivência do homem, aliado ao ambiente hostil, pode transformar simples crianças em hordas de latrocidas, déspotas e bárbaros primitivos; o mito do “bom selvagem” se desmancha ante os olhos de todos que leem Senhor das moscas, dando ao romance de Golding um caráter duro e realista, cético e até melancólico, mas extremamente necessário.
No final, o livro é se tornou, para mim, um clássico filosófico em defesa da ordem social, mostrando que a paz acontece não quando os indivíduos se encontram puros em estados de natureza, mas quando as instituições de uma sociedade são regulados por tradições de liberdade e por bom senso comunitário. É a civilização que é o milagre, o estado de natureza é selvagem, caótico, amoral. É fato que talvez o romancista inglês não tenha buscado criar um tratado filosófico em seu romance, mas criou, e um dos mais belo papers contra a tese de “contrato social” de Jean-Jacques Rousseau, entre outros; parafraseando o suíço, “o homem nasce livre, mas por toda parte se encontra preso a grilhões sociais”, a mensagem de William, em Senhor das moscas, não poderia ser mais diametralmente oposta: “o homem em sociedade se encontra ordeiro e livre para realizar suas potencialidades, quando em estado de natureza está fadado à selvageria e ao caos ético”.
O bom selvagem é um mito, dos mais tolos, a tábula rasa, um dos embustes pedagógicos mais idiotas; Senhor das moscas desapaixona os amantes dos contos de fadas rousseaunianos, coloca no eixo cético e pessimista aquele progressista otimista dopado por suas ideologias fofinhas e mentirosas. Querem saber o que liberta o homem? A ordem civilizacional, as tradições sociais, espirituais e jurídicas ocidentais; sabe o que é liberdade(?), é ter a mínima ordem política e jurídica, liberdade individual respeitada. Um clássico para desiludir hippies e injetar uma dose cética nos românticos ideológicos chapados.
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