Em 5 de maio deste ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou o fim da pandemia da covid-19. Fiquei particularmente aliviado. Em 2020, contraí a doença e passei vários meses internado, sendo quase 66 intubado. Ainda convivo com os efeitos da chamada “covid longa”, ou seja, apesar de clinicamente curado, algumas debilidades me acompanham. Esse diagnóstico eu penso compartilhar com algumas empresas brasileiras, as quais, desde a crise pandêmica, nunca se recuperaram propriamente.
As Lojas Americanas são o exemplo mais midiático, mas a derrocada dela não é um fato isolado e, apesar da grande repercussão do escândalo contábil, a parte mais intrigante dessa história continua desapercebida do debate pública, escondida entre uma infinidade de reportagens sobre as supostas conspiratas de seus executivos.
Como uma empresa centenária, de grande adesão popular, foi capaz do entregar tamanho fiasco financeiro e o que isso diz sobre o mercado de varejo no Brasil?
A verdade é que o varejo é implacável até com os profissionais mais experientes. A margem é muito pequena para um comércio com tantas complexidades. A conferir que, nos últimos tempos, muitas das gigantes do Brasil acabaram patinando. A Americanas, não fosse a suposta fraude contábil (a ser debatida nos tribunais), seria apenas mais uma tentando se organizar entre resultados ruins.
No segundo trimestre deste ano, a Magalu apresentou um prejuízo de R$ 301,7 milhões. A Via Varejo (Casa Bahia) registrou R$ 492 milhões no negativo. Marisa (-R$ 63,4 milhões), Guararapes (-R$ 17,6 milhões), Grupo SBF (-R$ 32,6 milhões) e C&A (-R$ 126,3 milhões) são outros exemplos.
Mais lojas físicas: um erro no setor do varejo
Cada empresa tem motivos particulares para tanto, é verdade. Ainda assim, podemos encontrar alguns erros que, de um jeito ou de outro, esbarram na atuação de todas elas. A começar pelo básico. A simples abertura de novas lojas, independentemente do volume de vendas, não acarreta contribuição marginal obrigatória.
Em 2021, no auge da crise, foram abertas 204 mil novas lojas no setor. Esse volume representa um grave erro. Abrir uma nova loja traz o risco de represamento excessivo de capital em estoque. Quando esse crescimento (do estoque) não acompanha a rotação dos produtos, a empresa se vê em apuros.
Esse movimento está muito entrelaçado com o financiamento bancário. Na última semana, o Banco Central voltou a baixar a taxa básica de juros. A Selic agora está em 12,75%. Altíssima, mas ainda assim em seu menor patamar desde maio de 2022. Tomar dinheiro anda mesmo muito caro. Agora pense que o investimento imobilizado em novas lojas foi financiado a esse elevadíssimo custo.
E tem mais (sobre o varejo e a Americanas)
No Brasil existe uma cultura importante de permitir aos clientes a possibilidade de financiar as próprias compras. Não é difícil encontrar uma loja que permita o pagamento parcelado de um produto banal, como um sapato, em até 24 vezes. Isso obriga o lojista a buscar dinheiro de curto para financiar o seu estoque. Então, quem atua nesse segmento é forçado a exercitar a arte do palpite. Quem entende do comportamento dos juros tem mais chance de gerenciar melhor os seus empréstimos.
Mas, como se bem sabe, a futurologia nunca é bom negócio. Quem não mudou de postura acabou preso nesse ciclo vicioso. Pegou no curto para cobrir o estoque, esperando uma taxa mais favorável surgir no horizonte. Deparou-se, no entanto, com um cenário de anomalia. As projeções mais conservadoras deram errado.
Vale lembrar que o endividamento das famílias orbitou a casa dos 70, 75%. Logo, além de tomar dinheiro caro, as empresas pararam de receber em dia e ainda viram as vendas despencarem.
E aí que vem o aspecto mais impiedoso do varejo. Saber gerir o próprio estoque. Por exemplo, quase todo mundo trabalha com linha branca e eletrônicos, certo? E se eu dissesse que a venda de aparelhos celulares deu rasteira em muita gente?
Poucos anos atrás, 70% dos usuários trocavam de aparelho anualmente, mas agora esse percentual é de apenas 20%. A demanda simplesmente caiu, paralisando um estoque caro. O preço de um celular, por vezes, é o triplo do que se paga em uma geladeira. Quem apostou alto se deu muito mal.
O fator estoque até para o e-commerce
Então, existe uma dificuldade nada desprezível em prever e administrar o próprio estoque. Essas linhas trazem uma margem muito pequena, possuem uma concorrência feroz e ainda tomam um espaço enorme nas lojas.
O erro do e-commerce está nos centros de distribuição. O mercado acreditava que ter vários centros de distribuição perto dos consumidores seria o nome do jogo. Não é bem isso. Joga melhor quem tem o menor número possível de centros, desde que estejam 100% automatizados.
E-commerce, em razão da margem ainda menor, não pode ter tanto estoque e nem gerar um custo administrativo elevado. As Lojas Americanas, por exemplo, abriram duas dezenas de centros de distribuição ao mesmo tempo. Com isso subiu o volume de produtos estocados. No final, apenas criou mais despesas.
A meu ver, esses quatro pontos demandam mais atenção do que recebem de empresários e investidores. A crise da Covid-19 apenas reforçou lições antigas do espinhoso varejo. Repito, a Americanas não entrou em crise por causa da maquiagem contábil. Ela fez essa maquiagem porque, muito provavelmente, já estava em crise. Assim como estão seus pares.
Na minha visão, diante de tamanha dificuldade, o segmento ainda vai levar uns anos para se recuperar totalmente. Impossível cravar uma data. Mas, já que falei sobre exercícios de futurologia, o meu palpite vai para 2026. Apenas um palpite.
Por Luiz Cezar Fernandes, empresário, banqueiro, e um dos fundadores do Banco Pactual (atual BTG Pactual). Com colaboração de Humberto Nader.
Matéria muito bem escrita, de quem entende do riscado.
O pessoal, com toda a computação, esqueceu da velha fórmula do giro do estoque, fundamental a um bom desempenho.
Levaram anos para entender que o estoque de loja física e de e-comerce é o mesmo e tem de girar na mesma velocidade.
Mas a crise vai ensinar todos a trabalharem melhor.