Do medo de morrer ao desespero de não ter como pagar aos fornecedores, como estão vivendo os trabalhadores informais das ruas de São Paulo
“Nós não é [sic] vagabundo, não.” Esse é um resumo do que a reportagem de Oeste ouviu nos dois dias em que esteve nas ruas de São Paulo para observar os primeiros comerciantes de volta à ativa muito antes de o governador João Doria falar em Plano São Paulo: os ambulantes.
Aparentemente, a categoria não está sozinha. Para chegar aos locais visitados, optou-se por utilizar o transporte público, as artérias percorridas por quem produz a riqueza da capital: os trabalhadores. Não importando o horário, às 11 da manhã ou às 3 da tarde, vagões e coletivos estavam sempre cheios.
Situação bem diferente da que se via um mês atrás, em meados de abril, quando o confinamento ainda era percebido pela população como a única solução possível para se proteger do coronavírus. “Voltei pra rua quando falaram que tinha de usar a máscara”, explica Wander Cardoso, que trabalha na Lapa de Baixo, na Zona Oeste. “Achei que ia ser mais difícil alguém espirrar ou tossir na minha cara.”
Cardoso é um dos entrevistados que vendem cigarros contrabandeados do Paraguai. Segundo ele, e outras fontes ouvidas, o fornecimento desse tipo de produto “importado” continuou normal, mesmo durante a fase mais dura do confinamento. “Nunca vi faltar produto pra gente vender”, afirma.
Momento de oportunidade
Em frente às grades de uma grande loja de eletroeletrônicos fechada, perto do Hospital de Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte, Antônio José Lopes montou seu ponto de venda de… eletrônicos. “Acontece muito do cliente que vem aqui para comprar na loja e vê que está fechada, só tem essa placa aí, com um número de WhatsApp para fazer pedido”, conta. “Só que ele quer o produto agora, não daqui a uma semana. Aí eu ‘dou meus pulo’ [sic] e vejo o que consigo para ele.” Fones de ouvido, ventiladores USB, carregadores portáteis de celulares e uma infinidade de outros gadgets estão disponíveis, mas Lopes garante que a variedade é bem maior e o estoque fica pertinho, é só o cliente pedir.
Outro produto que também está em alta nas banquinhas dos ambulantes é a máscara de proteção. Por R$ 5, compra-se um item de qualidade um tanto quanto duvidosa, mas bastante criativo — pode ter o brasão do time do coração, a palavra “fé” ou até mesmo a reprodução de A Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Se o artigo for handmade (artesanal), como na barraca de Aracely Pruillo, pode custar um pouco mais caro: R$ 10.
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“Não posso receber o auxílio do governo”, lamenta a boliviana. “Vim com meus filhos para cá, mas estou ilegal.” De acordo com ela, as máscaras que vende são feitas de malha dupla de algodão, o que lhes confere mais proteção do que as de outros materiais, como o TNT, por exemplo. E isso faz com que ela consiga vender mais, mesmo com o preço um pouco mais alto: “Tem dias em que vendo umas 12, 15. Mas, se dá dez no dia, já está bom”.
Com dois filhos, de 12 e 8 anos, ela antes vendia milho assado no mesmo ponto, na Lapa de Baixo. “Depois do coronavírus, vender comida ficou mais difícil, as pessoas estão mais cismadas”.
“Coronavoucher” e trabalho
Das 17 pessoas entrevistadas pela reportagem de Oeste, apenas Aracely e Clédson Augusto — que não quis dizer o sobrenome — não conseguiram se cadastrar no programa do governo federal para receber o auxílio emergencial de R$ 600.
Apesar de agora estar trabalhando, Clédson havia acabado de deixar o Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, por, conforme diz, ter dado alguns “maus passos na vida”. “Aquela coisa que a mãe da gente fala, né? Anda com as pessoas erradas, faz besteira. Mas agora vendo minhas roupas, ganho meu dinheiro, tudo no direito”, garante.
Situação diferente é a de Antônio Casemiro da Silva, vendedor de doces e salgadinhos no terminal de ônibus do Largo 13 de Maio. Para ele, o auxílio foi um alívio inesperado. “Quando esse negócio [coronavírus] chegou, fiquei com medo, achei que ia matar todo mundo”, lembra ele.
“A gente via TV e só falava disso. Parei de trabalhar e fiquei pensando como ia ser quando as coisas acabassem em casa. Aí, do nada, veio a história de fazer o cadastro e receber o dinheiro do governo”, acrescenta. “Seu” Casemiro diz que chegou a pensar que a informação era fake news e que só acreditou mesmo quando a primeira parcela caiu na conta.
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Também vendedora de máscaras e de roupas, só que no Capão Redondo, Maria Isabel dos Santos Lopes afirma que o dinheiro salvou a família — ela, o marido e dois filhos, de 3 e 4 anos — de passar necessidade nos quase dois meses em que permaneceu em casa. O marido, Joelson, também “marreteiro”, conseguiu fazer o cadastro para receber o benefício e, de acordo com Maria Isabel, o valor ficou quase empatado com o que a família tira em um mês de trabalho nas ruas, por volta de R$ 1,8 mil.
“Se não tivesse os outros boletos, por mim esse bichinho podia era ficar mais um tempo”, brinca Cardoso. “Mas, se eu não pagar o fornecedor [dos cigarros que vende], a coisa fica feia.”
“Não aguentava mais ficar em casa, não, minha filha”, diz “seu” Casemiro. “Minha mulher e eu já não tinha [sic] mais assunto e ver esse coronavírus o dia todo na TV já estava me deixando doente.”
Unanimidade entre os entrevistados, voltar ao trabalho foi um alívio da tortura de ficar preso em casa, com a sensação de estar pagando por um crime não cometido. “Mal saí da cana e já tive que aguentar essa”, ri Clédson. “Depois de uns dois meses em casa, resolvi que preferia ficar doente na rua, trabalhando, do que ficar doente da cabeça em casa.” A maioria voltou há aproximadamente 15 dias às ruas da capital paulista.
Fiscalização
Foram visitados, na terça e na quarta-feira da semana passada, os seguintes locais:
- Vila Nova Cachoeirinha
- Brasilândia
- Lapa
- Capão Redondo
- Terminal Largo 13 de Maio
- Rua 25 de Março
- Brás
- Terminal e estação de metrô de Santana
- Rua Santa Ifigênia
Na Rua 25 de Março, no Brás e no terminal de ônibus e estação de metrô de Santana, a reportagem presenciou fiscais da prefeitura de São Paulo que retiravam os ambulantes dos locais e apreendiam a mercadoria. Em um dos casos, no Brás, foi possível ouvir o fiscal dizer a uma mulher, que implorava para não ter a mercadoria recolhida: “Reclama lá com o prefeito, foi ele quem determinou que a prioridade agora é dar fim em vocês”. Assistindo à cena, três guardas municipais faziam as vezes de segurança do homem.
Na Santa Ifigênia, a reportagem chegou pouco depois de uma operação na Rua 25 de Março, bastante próxima, levar todo o material de ambulantes. Ao notarem que perguntas eram feitas, três homens cercaram a repórter, um deles com um cachorro preso a coleira e outro com o que parecia uma arma na altura da cintura. “Seus ‘amiguinhos’ [jornalistas] ficam mandando helicóptero aqui em cima e tomamos um baita prejuízo na 25 [de Março] hoje”, disse um dos “seguranças”. “Vaza daqui.”
Nitidamente, todos os ambulantes têm medo de falar com a imprensa. A maioria pede para não ser identificada, fotografada e teme represálias da polícia e do governo por causa do trabalho que têm. E eles acreditam que jornalistas dificultam uma vida que já é complicada: a de ser trabalhador informal e autônomo no Brasil.
Excelente reportagem !!!!
reportagem fantástica, continuem assim e conquistem mais um leitor.
Mais uma excelente reportagem; ela mostra o quanto o populismo nos torna refem do atraso com anos a fio de investimento na miséria, lula e dilma não havim acabado com a miséria?!?! Estes tipos de governantes necessitam da miséria para poder jogar uns contra os outros…..triste Brasil.